Prédica: Mateus 6.1-4
Autor: Mariane Beyer Ehrat
Data Litúrgica: 13º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 28/08/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — Considerações Preliminares
Nosso texto faz parte de uma série de três perícopes que, em sua estrutura, são semelhantes e lembram algo como uma poesia (cf. vv.2-4, 5-8, 16-18). Embora não se possa falar em antítese nos moldes de Mt 5.21 ss, verificamos que a forma antitética implicitamente está presente: não… como os hipócritas… tu, porém,…
O tema geral destas perícopes é: como os cristãos devem praticar a piedade, isto é, a nova justiça deles exigida quanto à prática da esmola, da oração e do jejum. Jesus quer instruir os seus ouvintes (discípulos e povo = Mt 5.1;7.28) a respeito do seu modo de vida, mostrando-lhes qual a conduta errada e qual a correta. Estas perícopes têm, pois, um caráter catequético. Objetivam ensinar aos cristãos um novo comportamento, mostrar-lhes a conduta daqueles que não somente ouvem a Jesus, mas também abrem seus corações a ele.
O nosso texto de Mt 6.1-4 fala a respeito de como se deve dar esmolas. No judaísmo se observava rigorosamente a prática da esmola, da oração e do jejum. A lei não regulamentava estas práticas, mas elas faziam parte da vida de todo o piedoso; eram formas de expressar culto e serviço a Deus. O judeu de então dá esmolas porque:
— está implícito na vontade de Javé (Lv 19.15-18);
— é um ato de reconhecimento da ação libertadora de Deus (Lv 19.34;25.35-38);
— a terra e tudo o que nela há é de Deus (Lv 25.23, Jo 31.15-22). (Gamberoni, p. 357)
Não obstante, praticando a caridade, o piedoso supunha ajuntar tesouros no céu, e, ao mesmo tempo, já ser recompensado aqui na terra pelo seu ato benevolente. A caridade, também, era um meio através do qual o piedoso conseguia méritos pessoais. Além disso, acreditava-se que os atos de caridade produziam o perdão dos pecados, tinham poder expiatório. É por isso que a caridade era tão estimada e praticada veementemente. E, para atender esta prática, o judaísmo desenvolveu um aparato organizado para prestar assistência aos pobres. As dádivas eram periodicamente (semanalmente! ) recolhidas pelos assistentes sociais e depois distribuídas aos pobres. Ao lado dessa assistência comunitária, havia a assistência particular. As doações particulares eram muito apreciadas, porque ai os doadores ocupavam lugares especiais nas sinagogas, e os seus nomes e a soma doada eram divulgados. Como hipótese, é possível aceitar que, no momento em que era anunciada uma doação elevadíssima, era dado um toque de trombeta (Schweitzer, p.89; Grundmann, p. 192s). Porém, também existiram, no judaísmo de então, advertências quanto a este modo de proceder. Havia os que ensinavam que a esmola deveria acontecer em secreto, e não ser motivo de publicidade.
II — Considerações exegéticas
V.1: Este primeiro versículo introduz não somente a perícope 6.1-4, como também as demais, vv. 5-15 e vv. 16-18. Ele fala da justiça que deve ser exercida na caridade, na oração e no jejum. Justiça, aqui em Mateus, tem algo a ver com o comportamento da pessoa. Praticar a justiça é viver a sua vida em conformidade com a vontade de Deus, é a prática da fé. (Brakemeier, p. 87)
É exigida uma nova justiça, isto é, uma nova conduta que excede em muito a dos escribas e fariseus (5.20). A justiça dos cristãos se diferencia da dos demais pela intenção com que é praticada. O que motiva o cristão a fazer a justiça não é a lei, nem o mérito pessoal, e, sim, o amor a Deus e ao próximo,
A esmola, a oração e o jejum não eram exigidos pela lei judaica; porém, eram tidos como obras meritórias e como obras que tinha poder expiatório, isto é, que anulavam infrações cometidas à lei. Jesus sentiu que muitos piedosos da época praticavam boas obras a fim de colherem estes méritos, e é contra isto que se dirige sua crítica.
V.2: Sob ELEËMOSYNË entende-se especialmente a esmola aos pobres, mas o termo, em sentido abrangente, inclui todos os benefícios e assistência prestada aos necessitados.
Jesus inicia, dizendo o que não se deve fazer, quando se pratica a esmola. A caridade nos moldes em que estava sendo praticada no judaísmo é aqui violentamente criticada. Os praticantes são chamados de hipócritas. HYPOKRITÊS originalmente designa um ator, alguém que somente está representando um papel, o que para nós, no texto, significa um falso devoto. Hipócrita é a pessoa que pratica a piedade com o intuito de querer aparecer, de se projetar a si mesma, para buscar glórias diante das pessoas. Mascarando-se no seu falar e agir, o hipócrita tenta atrair a si atenção, fama e reconhecimento. No caso da caridade, o necessitado passa a ser o meio, através do qual ele procura sua projeção, demonstrando sua benevolência.
No Evangelho de Mateus, os escribas e fariseus são criticados como hipócritas (cf. Mt 23; 15.7; 22.18). Os hipócritas são comparados aos sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos, e de toda imundícia (Mt 23.27).
Os que tocam a trombeta diante de si, isto é, aqueles que dão algo a fim de chamar a atenção sobre si, com interesses próprios, já receberam a recompensa. APECHÕ é um termo usado na linguagem comercial e corresponde a dar um recibo de quitação de pagamento. Os que amam interesseiramente, portanto, nada mais têm a receber de Deus. Sua recompensa é a mera glória passageira dos homens.
Pelos seus atos de caridade, os judeus piedosos supunham que, na vida futura, seriam amplamente compensados e que, ao mesmo tempo, já aqui na terra, receberiam uma parte do seu galardão. Esta concepção judaica pode ser sintetizada na seguinte comparação: as obras eram computadas numa espécie de caderneta de poupança no céu; o capital permanecia lá, fixo para o futuro, enquanto que os juros já se gozavam aqui na terra. (Grundmann, p. 194; Schweitzer, p. 89)
V.3: Aqui, é dito diretamente como se deve dar esmola. Mas, será possível imaginar que a mão esquerda realmente não saiba o que faz a direita? Não. Isto é um paradoxo. Jesus, contudo, quer mostrar o quão desprendido de si mesmo se deve praticar a caridade, ao ponto de nem mesmo a mão esquerda saber o que faz a direita, e assim, então, muito menos o coração ou a cabeça, os quais normalmente contam com vantagens e recompensas. A boa obra não deve apenas ser realizada em secreto, como também permanecer oculta diante do próprio praticante. E essa atitude de desprendimento, de despretenciosidade, de abnegação exige uma mudança radical do praticante. E exatamente isto que Jesus quer dos seus seguidores, que eles ajam de uma maneira nova, isto é, como novas criaturas, como pessoas que pertencem à era de Deus. Os seguidores de Jesus não precisam mais fazer como os demais, que necessitam de publicidade para serem reconhecidos, que se esforçam para alcançar misericórdia, pois eles sobretudo se sabem amados e libertos por Deus. Quem vive desse amor e dessa libertação é capaz de amar ao ponto de se sentir livre para doar, pensando exclusivamente na necessidade do próximo.
V.4: Deus é aquele-que nos sonda, que nos conhece até as entranhas, que reconhece nossa intenção. E este Deus que vê em secreto, este dará recompensa. Já o versículo introdutório (v.1) fala em recompensa do Pai. Como devemos entender essa recompensa de Deus, da qual Jesus fala? É assim que todos os que praticam boas obras podem contar com uma recompensa, quer na terra, quer no céu? Esta ideia de recompensa pelos méritos efetuados, quer aqui, quer no além, estava profundamente enraizada no judaísmo. Jesus, no entanto, aqui, justamente promete a recompensa de Deus àqueles que agem em favor do próximo, não contando absolutamente com qualquer compensação. Os piedosos que cumprem as normas a fim de obter recompensa, estes já receberam a recompensa, nada mais têm a receber. O pensamento de Jesus, portanto, difere do dogma dos judeus. Diante do anúncio do Reino de Deus, a ideia da recompensa de Deus recebeu um sentido completamente novo. Antes, recompensa era o motivo para praticar a boa obra; agora, a boa ação é resposta frente ao chamado e á mensagem do Reino de Deus. E os que ouvem o chamado de Deus e cumprem a sua vontade, estes serão recompensados. Isto é, estes têm a promessa de que Deus estará do seu lado (Bornkamm, p. 129), estes têm o reconhecimento de Deus (Brakemeier, p. 89).
III — Meditação
Quando apontamos ao nosso redor para um caso de miséria e pedimos auxílio, a frase mais flagrante é: Pois é, a gente precisa ajudar. Esta simples frase expressa muita coisa. Enquanto dizemos a gente precisa ajudar, ainda estamos presos a nós mesmos. O motivo primeiro ainda continua sendo a nossa obrigatoriedade, e não a necessidade do outro. A gente precisa ajudar — quem exerce coerção sobre nós para que precisemos ajudar? A consciência, a moral, o status, o mandamento divino? Quem é coagido a praticar a caridade, isto é, quem precisa ajudar, faz tudo, menos caridade. Diferente, no entanto, é se dizemos fulano precisa de ajuda. Pois ai a necessidade do outro está em primeiro plano. Ai o centro se desloca da minha obrigatoriedade para a necessidade do próximo. A caridade não é um ato de obrigatoriedade, mas de espontaneidade, que nasce exclusivamente do amor ao próximo. Quando atrás de um gesto de caridade não existir a força original do amor, este ato se torna rotina e hipocrisia, mesmo sendo aparentemente a maior prática da caridade.
A caridade em nosso meio comumente vem acompanhada de publicidade. Com isso o autor da boa ação se destaca e se projeta, ao passo que a situação do necessitado se torna ainda mais humilhante. Infelizmente, temos piedosos que, quando dão algo, já têm calculada a recompensa. Infelizes destes, pois é exatamente no cálculo do lucro que está a sua perda! Os que ajudam o necessitado, visando compensação, não o fazem por amor, mas por interesse, e isto é pecaminoso, porque fazem uso da miséria alheia para conquistar glórias. A pessoa necessitada passa, assim, a ser objeto, às custas do qual se obtém projeção. O alvo da crítica de Jesus é justamente esta atitude dos que ele chama de hipócritas, pois a sua demonstração de amor ao próximo é uma farsa. A boa ação dos hipócritas só vem embalada com o rótulo de amor ao próximo, mas a ação em si visa interesses próprios. De nada adianta a pessoa vangloriar-se, pois para Deus isto é glória vã.
Jesus exige um novo comportamento dos seus seguidores, que implique uma mudança radical dos interesses e da atitude da própria pessoa, pois somente o homem bom e justo realiza obras boas e piedosas (Lutero). Esta nova justiça é consequência do anúncio do Reino de Deus. Diante do anúncio do Reino de Deus, aquilo que recebemos é dádiva, que provém do reconhecimento da graça. Assim, em última análise, quando praticamos a caridade não damos nada de nós mesmos, damos apenas aquilo que também recebemos. E quem, verdadeiramente, se sabe agraciado não busca mais a sua própria glória, e, sim, apenas o bem-estar do desfavorecido, desprotegido e desprezado.
Caridade em si só acontece lá, onde o amor tomou conta do egoísmo, lá onde, movido pelo amor e em abnegação total, e se possível secretamente, auxilio o próximo necessitado, servindo-lhe como irmão, isto é, entregando-lhe do que também recebi do Pai.
Quem dá abnegada e despretenciosamente tem a promessa da recompensa. Nisto justamente consiste a dialética: Deus promete recompensa àqueles que absolutamente não contam com recompensa; àqueles que, segundo Mt 25.31ss, surpresos perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome… sede… nu… ? As obras em si não são recompensadas, mas a fé e o amor que praticam boas obras são reconhecidos por Deus.
IV — Indicações para a prédica
A prédica não deveria estar interessada em emitir fórmulas de como se deve dar esmola. Antes disso, importa confrontar a nossa maneira de praticar a caridade com o texto e deixar que ele nos critique e oriente.
— Como praticamos a caridade? Tocamos a trombeta diante de nós ou agimos em secreto? Não tendemos a ser como os hipócritas que usam a miséria alheia para projetar-se, e servem, à vista de todos, para angariar elogios e vantagens pessoais?
— Jesus exige um novo comportamento dos seus seguidores. Quem tem fé em Jesus Cristo já tem tudo quanto precisa: e tem até de sobra para dar de si aos outros. Portanto, não precisa mais correr atrás de glórias nem tentar conquistar a benevolência de Deus através de boas obras.
— Quem foi atingido pelo anúncio de Jesus e pelo Cristo vivo, tem prazer em servir a Deus e ao próximo.
— A caridade é praticada lá, onde o amor não busca os seus próprios interesses, mas está inteiramente voltado à necessidade do semelhante.
— Os que têm prazer em auxiliar, os que agem com amor desinteressado, os que se esquecem de si em função do outro não permanecem despercebidos aos olhos de Deus; eles têm o seu reconhecimento.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, tu nos sondas e nos conheces profundamente. Ato os nossos pensamentos e nossas intenções não te são desconhecidos Diante de ti, ó Senhor, não conseguimos esconder nada. Por isso, neste momento confessamos-te a nossa culpa. Reconhecemos que faltamos com o verdadeiro amor ao próximo, que o egoísmo tomou conta de nós. Por isso, ferimos os que conosco vivem e trabalham, com palavras duras e ações recriminatórias Admitimos, Senhor, que fomos capazes de amar com segundas intenções, prestando auxilio, mas visando somente a recompensa. Senhor, confessamos-te que agimos de acordo com os nossos interesses, esquecendo-nos completamente da tua vontade. Sim, Senhor, servimos mais a nós mesmos do que a ti e ao nosso semelhante. A nossa culpa, Senhor, é sem limites e a tua misericórdia, sem fim! Por isso te pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: O teu convite, Senhor, colocou-nos a caminho, movimentou-nos, levou-nos a sair de nossas casas para a tua casa. Agora, aqui estamos, fala tu mesmo a nós. Orienta-nos através da tua Palavra. Faze com que ela renove o nosso ser e agir. Reveste-nos de força, coragem e perseverança, para que vivamos conforme o teu querer. Acompanha-nos com o teu Espírito no ouvir e praticar a tua Palavra. Rogamos-te isto em nome de Cristo. Amém.
3. Oração de intercessão: A ti, Senhor, que és todo-poderoso e misericordioso, dirigimo-nos e intercedemos: pelos fracos e tentados na fé — transmito-lhes a tua Palavra que gera confiança, e a força do teu Santo Espirito, a fim de serem fortalecidos; pelos abandonados — Senhor, teus olhos veem os milhões de abandonados em nosso país; abre os olhos dos milhares de acomodados, a fim de que se sintam responsáveis pelos seus irmãos e irmãs que vivem em abandono e miséria; pelos doentes e enlutados — tu, ó Senhor, mais do que ninguém, sabes o que significa suportar a dor; por isso, fica ao lado dos doentes e ajuda-os a carregar o seu fardo; consola os enlutados através da tua experiência da ressurreição e promessa de vida eterna; pela nossa comunidade e seus membros — acende em todos a chama da fé, a fim de que se tornem membros ativos neste teu corpo; faze com que nós, os cristãos, testemunhemos com mais fervor a tua misericórdia, o teu amor, o teu perdão, tua libertação e tua salvação; vivifica a nossa comunidade e permanece para sempre sendo o seu Guia e Mestre; pelos governantes e líderes políticos — que governam em justiça, em verdade, em amor e em fidelidade ao teu plano para com a humanidade; dá, ó Senhor, que os governantes e lideres tomem consciência de que eles terão que prestar contas do seu governo a ti; lembra-os de que assumiram a responsabilidade de proporcionar o bem-estar a todo o teu povo. Tudo isso te pedimos, Senhor, porque em ti confiamos. Amém.
VI — Bibliografia
– BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré. Petrópolis, 1976.
– BRAKEMEIER, G. Mateus. São Leopoldo, 1971 (Polígrafo).
– BREIT, H. Meditação sobre Mateus 6.1-4. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 7. 3. ed. Stuttgart, 1976.
– GAMBERONI, J. Esmola. In: Dicionário de Teologia Bíblica. Vol. 1. São Paulo, 1973.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Matthäus. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol. 1.3. ed. Berlin, 1971.
– SCHWEITZER, E. Das Evangelium nach Matthäus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 2. Göttingen, 1976.