Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 6.1-6, 12-21
Leituras: Joel 2.1-2. 12-17 e 2 Coríntios 5.20b-6.10
Autor: Scheila dos Santos Dreher
Data Litúrgica: Quarta-Feira de Cinzas
Data da Pregação: 05/03/2014
1. Introdução
Ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita.
(Mt 6.3b)
A Quarta-feira de Cinzas marca o início do tempo da Quaresma. Cinzas, no contexto bíblico, são utilizadas nos rituais de arrependimento e purificação do que precisa morrer, virar pó, ser desconstruído, para renascer com vitalidade.
Em nosso calendário civil, estamos saindo do carnaval, uma festa que oportuniza situações diferenciadas, conforme o desejo e a compreensão de cada um e cada uma: descanso, dias nos quais “todo mundo pode tudo” (como canta Adriana Calcanhoto), dias oportunos para retirar-se da rotina e estabelecer maior comunhão com pessoas da mesma fé.
O texto do profeta Joel aponta para o Dia do Senhor, dia de juízo e castigo para os pecadores e as pecadoras. Daí a admoestação do profeta ao arrependimento e à confiança na ação de Deus, o qual pode fazer novas todas as coisas. O apóstolo Paulo, por sua vez, destaca que Cristo já carregou sobre si os nossos pecados e intercede para que não percamos a graça que ele nos concedeu, inclusive como “companheiros no serviço de Deus”. No texto de Mateus, o próprio Jesus chama ao arrependimento e à novidade de vida na perspectiva do reino de Deus.
2. Exegese
A comunidade em meio à qual foi escrito o Evangelho segundo Mateus tem raízes profundas na cultura e na religião judaicas. A menção, por diversas vezes, do que foi dito pelos profetas bem como a genealogia que abre o evangelho dão provas disso. Ao longo do evangelho, é perceptível o processo que a comunidade está vivendo de atualizar a Escritura, fazer a releitura para dentro da nova realidade de fé que se inaugurou com a vinda do Messias, Jesus de Nazaré, sua morte e ressurreição.
A comunidade de Mateus experimentou o cotidiano ditado pela Pax Romana por volta dos anos 70, que também resultou na destruição do templo de Jerusalém. Por isso também essa comunidade passou a reunir-se em sinagogas, como indica o nome: “lugar de reunião”, provavelmente na cidade de Antioquia, ao norte de Israel, na Síria, e redigiu o evangelho em torno do ano 85 d. C.
O Evangelho segundo Mateus possui uma organização clara. Está dividido em cinco grandes discursos, que constam após narrações de ações de Jesus, indicadas pela expressão: “E aconteceu que, quando Jesus terminou estas palavras […]”. O texto previsto para a pregação está inserido no discurso proferido por Jesus no início de seu ministério, o primeiro dos cinco mencionados anteriormente, no âmbito maior do “Sermão do Monte” ou das “Bem-aventuranças”, como também é conhecido, que abrange Mateus 5.1 até 7.28. Diante da multidão de pessoas que vinha seguindo Jesus (Mt 4.23ss), nesse momento ele subiu em um monte e, aproximando-se o grupo mais próximo de discípulos, passou a ensiná-los (Mt 5.1).
O centro dos versículos mencionados está, em verdade, na oração do Pai–nosso, que é omitida na leitura. As três “obras de piedade” em questão, duas de caráter mais pessoal/interior (a oração e o jejum) e uma de caráter exterior (auxílio aos necessitados/esmolas), eram atitudes esperadas dos fiéis no judaísmo. Elas eram familiares à comunidade de Mateus. Na Bíblia, segundo a tradução de Almeida, o versículo 1 do capítulo 6 inicia citando as palavras de Jesus nos seguintes termos: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens [sic.]….” A justiça das pessoas e, em especial, dos fariseus promovia quem cumpria a Lei. Por isso era importante ser visto em sua prática religiosa. Jesus reconceituou a ideia de justiça humana, indicando o esvaziamento das “obras de piedade” quando, para engrandecimento pessoal, a necessidade de arrependimento, fruto de conversão, e de um novo comportamento.
Jesus não se opôs às práticas resultantes da espiritualidade judaica (ou aos deveres religiosos, segundo a Bíblia na Linguagem de Hoje), mas lhes tirou qualquer possibilidade de ostensividade, de promoção pessoal ou de vanglória. O que pertencia necessariamente à esfera pública – espaço propício para ações visíveis – permaneceu como tal: a esmola; o que poderia tornar-se prática na esfera privada para evitar promoção pessoal foi cambiado. Importa que os frutos da vida de fé sejam autênticos, genuínos. No reino de Deus, não há espaço para a hipocrisia. Vale lembrar aqui as palavras de Jesus conforme Mateus 5.17: “Não pensem que eu vim acabar com a Lei de Moisés e os ensinamentos dos profetas. Não vim acabar com eles e sim dar o verdadeiro sentido deles” (conforme Bíblia na Linguagem de Hoje).
– Dar esmolas: No Antigo Testamento, encontramos diversas vezes a recomendação de destinar a sobra das colheitas aos necessitados (Êx 23.1; Lv 19.9-10). Nesse sentido, o salmista profere uma palavra de bênção dizendo: “Bem-aventurado o que acode ao necessitado; o Senhor livra-o no dia do mal” (Sl 41.1), e um ditado popular reza uma maldição: “Quem recusar ouvir o grito do pobre também gritará e não será ouvido” (Pv 21.13). No tempo de Jesus, era comum encontrar pessoas pedintes nos caminhos e mesmo nos portões do templo. Muitas dessas pessoas viviam em ociosidade declarada e reagiam de forma estúpida quando era negada a esmola solicitada; outras tantas eram pessoas doentes e com necessidades especiais, que engrossavam as fileiras dos famintos e desamparados. Em Atos 3.2, encontramos Pedro e João diante de uma dessas pessoas. Conforme o testemunho bíblico, Jesus não proíbe a prática da esmola para a pessoa necessitada. Aliás, na atualidade, tal prática deveria assumir outras formas que visem à superação do assistencialismo e à promoção da dignidade do ser humano através da reorganização familiar, de sua capacitação e da inserção da pessoa adulta no mercado de trabalho. Jesus reconduz tal prática à sua essência, qual seja: o auxílio à pessoa necessitada como ação no âmbito do reino de Deus e de sua justiça e não para a promoção pessoal.
– Orar: Todos os dias e várias vezes ao dia, no lugar em que estivessem (em local de trabalho fechado, nos campos ou nos caminhos), os judeus colocavam-se em oração diante de Deus. Judeus do sexo masculino, acima de treze anos, considerados adultos, precisavam orar diariamente, pelo menos três vezes ao dia. Eles envolviam a cabeça e os ombros em uma espécie de estola (tallith) e voltavam-se na direção de Jerusalém. Caso já estivessem em Jerusalém, voltavam-se para o templo. Entre suas orações encontravam-se o Shema – uma profissão de fé decorrente de Deuteronômio 6.4-7, bem como uma longa oração de adoração a Deus e de súplica. Os evangelhos testemunham sobre a prática de oração de Jesus. Logo após exortar os discípulos e, por extensão, a multidão de ouvintes que os cercava a orar não para ser vistos, não para demonstrar piedade, mas em secreto, para Deus, Jesus ensinou a oração que chamamos de “Pai-nosso”, reconduzindo a prática da oração à sua essência. Jesus ensinou-nos, de fato, a orar: orar de maneira nova e com conteúdo. Orar reconhecendo que clamamos a Deus, como Pai (e Mãe) querido e próximo, no coletivo e pelo coletivo.
– Jejuar: O hábito de abster-se de alimentos por um tempo determinado (ou não) entre os judeus acompanhou o povo de Israel em toda a sua trajetória. Há testemunhos da prática do jejum no Antigo e no Novo Testamentos. Quando nos alimentamos, muitas vezes em demasia, sentimo-nos “pesados”, cansados, preguiçosos até. O jejum trazia consigo a ideia de sentir-se mais leve para a reflexão, do autoexame de consciência com vistas ao arrependimento e até mesmo do autossacrifício para expiação de pecados. Até bem pouco tempo, muitas pessoas cristãs também se abstinham de determinados alimentos no período da Quaresma em função dos sofrimentos de Cristo no caminho que conduziu à cruz. Talvez hoje faça muito mais sentido abster-se ou renunciar a algo para que se possa ofertá-lo a pessoas ou a instituições por gratidão a Deus.
“Pois onde estiverem as suas riquezas, ali estará o coração de vocês” (Mt 6.21): Auxiliar a pessoa necessitada, jejuar e orar a olhos vistos para somar pontos diante das pessoas traz recompensa imediata: muitos olhares de simpatia e exclamações de admiração. Essas “riquezas”, no entanto, não somam pontos para a salvação, porque essa não vem por esforço humano; é graça de Deus. Nesse sentido, também uma vida voltada para o acúmulo de bens materiais é engodo; nada se leva após a morte. Antes, por gratidão pelo amor com que fomos criados por Deus, pelo amor com que ele diariamente nos oferece condições para a vida, por gratidão pela salvação a nós oferecida em Jesus Cristo, somos livres para amar e servir. Se nosso coração (centro da pessoa na concepção bíblica) pertence a Deus, naturalmente nossas ações serão condizentes com a vontade de Deus, sem que a mão esquerda saiba o que fez a mão direita, sem que sintamos a necessidade de promover-nos mediante o que fazemos.
3. Meditação
Algumas questões foram apontadas na exegese. Destaco, na perspectiva do reino de Deus, algumas delas:
1) A necessidade de superar a hipocrisia religiosa – A recompensa para quem faz uso da espiritualidade e da fé para a autopromoção é imediata. Muitas vezes, ainda que de forma sutil, não deixamos de mencionar nossas boas ações àqueles e àquelas que estão ao nosso redor. Assim somos vistos como pessoas religiosas e nos tornamos benquistos. Igrejas cristãs, por vezes, também se deixam cair nessa armadilha, inclusive propagando falsas notícias de curas e milagres para atrair fiéis.
2) A necessidade de arrependimento: Venha o teu Reino! – Aprendemos com Jesus a interceder na oração do Pai-nosso. O reino de Deus não é um “faz de conta”. Participar desde já do projeto de vida de Deus significa abraçar a justiça e a verdade e comprometer-se a viver o amor de Deus indistintamente, para que o mundo conheça Deus e experimente sua boa vontade. O arrependimento, por isso, é exercício diário de toda pessoa cristã. Felizmente, contamos com a bondade e o amor do Deus, que se revela como Pai e Mãe, perdoa-nos e redireciona o nosso viver. É preciso, no entanto, que reconheçamos verdadeiramente nossa culpa e nossas limitações e que busquemos em Deus condições para a mudança que todo arrependimento sincero pressupõe.
3) Um novo comportamento resultado do arrependimento – Por gratidão a Deus, a pessoa cristã disporá de seus dons, tempo e dinheiro a serviço do Reino. Seu fazer assumirá formas bem concretas a partir das necessidades percebidas, da organização e do planejamento da comunidade na qual toma parte. Poder servir, sentir-se útil, será sua recompensa nesta vida terrena. O futuro será entregue, nessa ótica, confiadamente nas mãos de Deus, porque não precisamos provar com boas ações nossa índole cristã, mas receber a salvação somente por graça e fé.
4. Imagens para a prédica
Enquanto preparava este texto para o PL, utilizei-o como pregação num final de semana em duas das quatro comunidades que integram a Paróquia do Parecis/MT. Precisava refleti-lo com a comunidade. Em Mato Grosso, as comunidades evangélico-luteranas surgiram com a migração de famílias luteranas do sul do país e do estado de Mato Grosso do Sul em busca de trabalho e melhores oportunidades, repetindo a história fundante da IECLB no Brasil. Felizmente não permanecemos restritos ao universo germânico-sulista. Outras pessoas, de outras origens étnicas e de outras confissões cristãs vêm se achegando. Como comunidades evangélico-luteranas estamos aprendendo a acolher com generosidade.
Nesse contexto, perguntei no início da pregação: Como reconhecemos aqui no Mato Grosso alguém que veio do sul? A conversa fluiu: Pelo sotaque, pelo convite para integrar a roda de chimarrão, pela participação em CTG’s, pela alimentação, pela maneira de exercer a hospitalidade. Compartilhei, então, como se reconhecia um judeu (homem) no tempo de Jesus: pela prática das três “obras de piedade”. Apresentei a crítica de Jesus. Prossegui a reflexão sob a pergunta: Como se reconhece hoje uma pessoa cristã genuína, autêntica?
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro buscar auxílio nas duas liturgias propostas para o tempo de Quaresma no Livro de Culto da IECLB. A cor cinza bem como cinzas em si poderiam ser utilizadas no decorrer do culto.
Bibliografia
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991.
VASCONCELLOS, Pedro Lima; SILVA, Rafael Rodrigues da. Feliz quem tem fome e sede de justiça: a Boa Notícia segundo a comunidade de Mateus. Série: A Palavra na Vida. São Leopoldo: CEBI, 1999.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).