Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Mateus 6.1-6, 16-18
Leituras: Joel 2.1-2, 12-17 ou Isaías 58.1-12 e 2 Coríntios 5.20b-6.10
Autor: Marlei Adam Arcari
Data Litúrgica: Quarta-feira de Cinzas
Data da Pregação: 17/02/2010
1. Introdução
Os três textos bíblicos chamam a atenção para um grande tema: a prática da justiça. O texto de Isaías 58.1-12 mostra que as práticas religiosas carecem de valor se não estiverem acompanhadas pela justiça e pelo amor ao próximo. O verdadeiro jejum não consiste em atitudes exteriores (v. 5), mas na renúncia à injustiça e na sincera dedicação ao serviço dos demais.
No texto de 2 Coríntios 5.20b-6.10, Paulo enumera ocasiões em que deu provas de paciência e firmeza no seu trabalho apostólico, ações essas que deram credibilidade a seu ministério apostólico.
O texto de Mateus 6.1-6,16-18 refere-se às três principais práticas da piedade judaica de então: a ajuda aos necessitados, a oração e o jejum. O texto estabelece um contraste entre fazer os atos piedosos para serem vistos pelos outros e fazê-los para que Deus os veja.
2. Exegese
2.1 – Fonte
Desde o segundo século, a tradição da igreja tem atribuído a composição desse evangelho a Mateus, o publicano, chamado também de Levi, filho de Alfeu, o coletor de impostos, a quem Jesus chamou e uniu ao grupo de seus discípulos. Tem-se afirmado que Mateus é, por excelência, o evangelho da igreja, escrito para instruir o novo povo de Deus acerca de Jesus.
2.2 – Observações exegéticas sobre os versículos da perícope
V. 1 – Jesus se refere à justiça prática, legítima, que era abusada. As autoridades judaicas queriam ser vistas pelos homens e atrair a atenção para si mesmas, mas não se interessavam pelo caráter espiritual da religião.
V. 2 – Podia-se dar esmolas no templo, nas sinagogas e nas ruas. Eram grandes as oportunidades para exercer essa “justiça”. As circunstâncias favoreciam a ostentação, o que era aproveitado pelas autoridades religiosas. Mas Jesus mostrou que a religião ostensiva só merece uma recompensa, que de resto é o grande alvo colimado – o favor dos homens.
V. 3 – Jesus não desaprova a prática das esmolas, mas apenas orienta sobre a forma como isso deve acontecer. Ele ensina que a intenção ocupa o primeiro lugar na ordem da importância, e não a aprovação dos homens. Aquele que dá não deve orgulhar-se disso nem deve procurar a aprovação alheia em face de sua atitude. A esmola deve beneficiar os pobres, e não o próprio doador.
V. 4 – Se a esmola for dada a um desconhecido, em lugar afastado das estradas de intenso trânsito, longe da vista de qualquer pessoa, à noite, ainda assim os olhos de Deus verão tudo. O ato de caridade pode escapar à atenção das pessoas, mas o Pai das misericórdias toma conhecimento de tudo. Esse Pai misericordioso galardoa com amor.
V. 5 – “Em pé” era a posição usual na oração. Os judeus se punham de pé para orar, voltados de frente para o templo ou para o lugar mais santo. Não é isso o que Jesus critica, e sim o fato de as pessoas estarem em lugares públicos nos horários de oração para ostentar sua piedade.
V. 6 – Jesus não condena a adoração pública, mas a atitude de espetáculo, teatral, envolvida nessas orações em público. Se a oração não estabelece contato com Deus, torna-se inútil e é um desperdício de tempo. Um bom número de “homens de oração” nos dias de Jesus não passava de atores. Eram piedosos por aparência, mas não de coração.
V. 16 – O jejum é o terceiro exemplo da prática da verdadeira religião. O jejum era uma parte importante da tradição da piedade judaica. A lei judaica previa pelo menos um dia nacional de jejum: o dia da festa solene da expiação. O valor do jejum dependia da intenção e das disposições de quem jejuava. Com o tempo se atribui um valor independente às disposições pessoais.
V. 17 – Nos dias de jejum, os atos de ungir-se e lavar-se eram proibidos, para que houvesse demonstração de tristeza pelo pecado. A unção e a lavagem eram símbolos de alegria. Para Jesus, a pessoa pode jejuar, pode ter tristeza no coração por causa do pecado, pode jejuar até mais vezes do que o indicado, mas não deve ostentar o que fez com seus lamentos, exibindo o lado negativo da religião. Pelo contrário, deve dar a impressão de que vai para uma festa, evitando assim o olhar aprovador de outros, os quais de outra maneira saberiam que está jejuando.
V. 18 – Como no caso das esmolas, o jejum deve ser secreto, fugindo de toda a inclinação ao orgulho espiritual. Ele tem em vista uma causa que levamos a Deus, e não uma causa pessoal que queremos ostentar diante dos outros.
3. Meditação
O texto de Mateus 6.1-6,16-18 reflete sobre três práticas da justiça: esmola, oração e jejum. Essas podem ser praticadas na perspectiva de receber o elogio humano. Quem assim age não recebe recompensa da parte de Deus, pois não está sendo sincero consigo mesmo. Esse texto nos ensina que os frutos da vida religiosa destinam-se a Deus e não aos seres humanos. O texto diz: “Com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” (v. 18).
Dar esmolas: não precisamos tocar trombetas para anunciar um ato de misericórdia. Jesus não censura atos de misericórdia, mas o alarido quando se ajuda alguém, a busca de elogios para nós mesmos. No v. 3, Jesus ilustra a maneira mais secreta de fazer algum ato de misericórdia. O bem deve ser feito em segredo – e não teatralmente para ser visto pelos seres humanos. Quem pratica o bem deve ser tão silencioso, sem alardear o que fez, como se uma das mãos ficasse sem saber o que a outra fez. Pois quando alarmamos, estamos humilhando quem recebe a ajuda e nos enaltecendo. Quem alardeia o seu ato de misericórdia mostra sua pequenez e comete não um ato grandioso, mas constrangedor. Devemos fazer o bem por amor ao beneficiado, nunca por amor a nós mesmos.
A esmola em segredo é vista pelo Pai (v. 4). Não é preciso anunciar para Deus o que fazemos. Ele vê o secreto e o oculto. Deus vê o mais íntimo. Por isso sejamos autênticos, pois Ele recompensa o que é feito com autenticidade. Sabemos que fazer o bem não salva. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).
No caso da oração dos fariseus, Jesus evidentemente não desaprova a oração em si, mas a intenção com a qual ela era realizada. O problema é que os fariseus queriam ser o centro, e não Deus. Usavam a oração para a própria glória. Esqueciam a humildade, na qual se revela a dependência de Deus e se compreende que é Ele quem concede tudo através da sua graça, e não de acordo com o merecimento humano.
Como evangélicos luteranos cremos que toda a boa dádiva vem de Deus. Afirmamos que ele concede tudo segundo a sua graça e não de acordo com o nosso merecimento. O que recebemos, portanto, não é recompensa pelo que somos ou fazemos. Como então devemos entender as palavras de Jesus: “Teu Pai… te recompensará?” Jesus certamente não está pensando naquilo que alguém conquista através de obras. A recompensa não deve ser vista através da capacidade e das qualidades humanas e sim a partir da bondade do Pai (cf. Mt 20.15). A sua bondade o leva a dar muito mais do que alguém merece. Deus nos surpreende com as suas dádivas. Os que Jesus convida a “entrar na posse do reino” (Mt 25. 34-40) não haviam praticado o bem com o objetivo de ser recompensados. Eles se admiram com as palavras do Juiz e sentem-se agradecidos. Para todos aqueles que praticam o bem com a finalidade única de ser recompensados valem as palavras de Jesus: “Eles já receberam a sua recompensa” (Stiegemeier, in PL XIV, p. 247).
Ao convidar para orarmos no quarto, Jesus quer nos proteger das intenções secundárias. De maneira nenhuma ele é contra as orações em comunidade. Como exemplo podemos citar a oração do Pai-Nosso. Quando oramos “pai nosso”, isso significa que Deus é Pai de todos. Nessa oração, ele se revela como um Deus próximo, a quem podemos chamar de Pai. Nela Deus é o centro.
Deus é o Pai de todos/as. Sendo pai, ele deseja o contato pessoal com seus filhos/as. Sabemos que filhos se relacionam com seus pais, dialogam com eles. Deus também espera que seus filhos se comuniquem com Ele através da oração, seja ela individual, em seu quarto, ou comunitária.
Pela oração entramos em comunhão íntima com Deus e nos fortalecemos na fé. Fortalecidos na fé, também agimos com fé.
Quanto ao jejum: em Mateus 6.16-18, Jesus ensina que não devemos nos gabar de nosso jejum. Jesus não está condenando o jejum, e sim aqueles que alardeavam seu jejum, ou seja, faziam o jejum aparecer. Pois o jejum não deve ser usado para causar uma boa impressão nos outros.
No texto em estudo, Jesus fala do jejum como expressão de fé, de forma semelhante ao dar esmolas e oração.
Com Jesus a prática do jejum é algo livre. Não se trata, em primeiro lugar, de uma preocupação com o próprio corpo e bem-estar. Importa sentir-se mais leve e livre para o contato consigo mesmo, com Deus e com o próximo. Comer além dos limites não nos deixa cansados? Bonhoeffer afirma: “A carne bem alimentada não gosta de orar e nem se dispõe ao serviço dedicado”.
Quantas vezes comemos a sobremesa e alguém diz: “Isso é gula. Não é fome”. Seria possível abster-se da sobremesa durante uma semana e alegrar uma criança carente na Páscoa com esse recurso? Jejum no tempo da Quaresma é deixar de beber ou comer algo que me faz muita falta para dar isso aos que necessitam. E colocar esses necessitados em oração. Quando jejuamos, podemos descobrir a medida de dependência de determinada bebida, comida ou costumes, sem os quais pensamos não poder viver.
Jejuar é sempre um ato de largar, libertar-se e ser libertado. Ao mesmo tempo, é um voltar-se para Deus, que simultaneamente se expressa no amor ao próximo.
4. Imagens para a prédica
Uma conclusão que podemos tirar de Mateus 6.1-6,16-18 é que toda graça e benefício que recebemos de Deus querem ser passados adiante, sem alarde, para não constranger o outro.
O texto leva-nos a refletir sobre a maneira como damos esmolas, oramos e jejuamos em nossas casas e também em nossa comunidade. Será que fazemos isso em silêncio ou fizemos questão de alardear o nosso ato? Podemos convidar as pessoas a se abster, nesse período da Quaresma, de algo que gostam muito e oferecer isso a alguém necessitado. É importante orar por esse alguém.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Deus da graça, nosso Pai! De vez em quando, notamos que perdemos a ligação contigo. Essa é a grande culpa que te apresentamos. Confessamos o quanto falhamos quando damos esmolas para receber elogios ou porque elas não são parte do que temos, mas o resto do que não queremos mais. Deus misericordioso, mediante Jesus Cristo, teu filho, tu nos ofereces a possibilidade de comunhão contigo através da oração. Perdoa-nos quando chegamos diante de ti, em oração, sem humildade. Bondoso Deus, perdoa-nos quando queremos ser o centro das atenções e usamos o teu santo nome para nos vangloriar diante das outras pessoas. Ajuda-nos a ser humildes e a confiar na tua graça. Amém!
Anúncio da graça:
Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chama- dos filhos e filhas de Deus! O Senhor da graça nos perdoa e vem a nós em amor e nos resgata, para que sejamos humildes e assim possamos viver em comunhão com as outras pessoas, conforme a sua vontade. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém!
Bibliografia
BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por
Versículo. V. 1. São Paulo: Agnos, 2002.
STIEGEMEIER, Werno. Proclamar Libertação, nº XIV. São Leopoldo: Sinodal. p. 246-252.
WITT, Maria Dirlane. Castelo Forte – Meditações diárias, ano 39. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2007
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).