Justos como Deus é justo
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 6.1-6, 16-21
Leituras: Joel 2.1-2, 12-17 e 2 Coríntios 5.20b-6.10
Autoria: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: Quarta-Feira de Cinzas
Data da Pregação: 26/02/2020
1. Introdução
Iniciamos hoje o sagrado tempo da Quaresma. Ele nos convida a uma espécie de retiro de 40 dias, preparando-nos para a Páscoa. É um tempo de transformação de cada pessoa, de toda a igreja de Cristo e do mundo inteiro. Quaresma, a cada ano, é um tempo de avaliação. Somos desafiados a nos defrontar conosco mesmos, com Deus e seu projeto de vida para o mundo, com a caminhada de Jesus para a Páscoa. Como seguidoras e seguidores de Jesus Cristo, queremos viver um tempo de avaliação e de mudanças, mudanças que nos tornem melhores e mais humanos, mais semelhantes a Deus, nosso Pai.
As leituras bíblicas deste dia trazem um forte apelo: o profeta Joel faz um chamamento geral para a conversão, pois constata que sua época havia se afastado muito dos caminhos da vida. Paulo, na Segunda Carta aos Coríntios, convida a não deixar passar em branco esse tempo de graça. E o evangelho nos indica práticas importantes para auxiliar-nos na caminhada de graça que é o tempo da Quaresma. Fala do jejum, da esmola e da oração. Essas práticas, quando vividas com espírito de busca de crescimento, podem ser de enorme valor. Não podem, porém, ser feitas com espírito de autopromoção.
Somos convidados, portanto, a entrar com amor nesse tempo santo. Que possamos vivê-lo, não como um tempo de tristeza e “cara fechada”, mas de confiança e de esperança. Nós somos capazes de ser muito mais do que já somos. Mas a construção desse mais é um grande desafio. Por isso a Quaresma nos chama para uma atitude de coragem e conversão.
2. Exegese
O Evangelho de Mateus caracteriza-se pela insistência no tema do reino de Deus (ou reino dos céus) e da nova justiça desse reino, anunciada e vivida por Jesus. O tema ocupa, de fato, todo o evangelho, direta ou indiretamente. No primeiro dos hipotéticos cinco “livrinhos” que o constituem, pode-se identificar o anúncio da justiça do reino de Deus (3 – 7); nos demais, o tema se desdobra em diversas dimensões desse reino.
O texto que nos ocupa encontra-se na parte do primeiro discurso de Jesus, conhecido como sermão do monte (5 – 7). Esse, por sua vez, é introduzido por um pequeno conjunto de ações de Jesus (3 – 4), que abrem o primeiro bloco ou “livrinho”, de maneira a introduzir as palavras do mestre que ocupam os capítulos 5 – 7.
No início da fala de Jesus estão as conhecidas bem-aventuranças e o contraste da vivência dessa nova justiça com a antiga, que, segundo o texto, é vivida e defendida pelos escribas e fariseus. Fica claro que a justiça das bem-aventuranças é bem superior, mas também constitui um desafio muito mais radical.
O capítulo 6 ocupa-se, inicialmente, com práticas de justiça tradicionais no povo de Deus: a esmola, a oração e o jejum. Essas práticas, tão caras aos conterrâneos de Jesus, em especial aos fariseus, não são por ele desprezadas, mas colocadas na lógica da justiça do reino de Deus vivida e anunciada por Jesus.
O conjunto dessas práticas é introduzido por uma advertência que, depois, é retomada em cada uma delas: os discípulos devem estar atentos para não praticarem essas obras para serem vistos e admirados pelas pessoas, pois, do contrário, não terão a recompensa do Pai que está nos céus. Em seguida, as palavras de Jesus abordam, uma a uma, essas práticas, mostrando de que maneira elas devem ser feitas para que cultivem efetivamente a nova justiça.
Na abordagem das três práticas, há um esquema comum: a) uma advertência negativa (não façais como…) e a identificação de uma falsa intenção (para ser visto e elogiado); b) um julgamento ou condenação (já receberam a recompensa); c) uma instrução ou orientação positiva de como realizar essas práticas para que contribuam para a vivência da nova justiça. Ao falar da oração, o evangelista se alonga e insere o Pai-Nosso e a necessidade do perdão na vivência comunitária – parte que não integra o texto proclamado no culto da Quarta-Feira de Cinzas.
É preciso ter em mente que o conceito bíblico de justiça é complexo. Ele inclui, mas ultrapassa as relações entre as pessoas e a distribuição das coisas e oportunidades na sociedade. É também de um conceito religioso, próximo à piedade e religiosidade. Portanto inclui uma relação com Deus. Com isso torna–se possível falar de justiça ao falar de atos de piedade ou religiosidade, como o jejum, a esmola e a oração.
No texto que aqui analisamos, o foco está mais nesse sentido teológico das práticas, mas Mateus insiste, ao longo de seu evangelho, que a relação com Deus (justiça) passa pelas ações práticas, como muito bem lembra a famosa parábola do juízo final em Mateus 25.31-46. E quando se trata de ações como jejum, oração e esmola, o coração delas deve ser o cultivo da filial relação com Deus, não a autopromoção (nas palavras do evangelho: para ser visto pelos homens). Com efeito, a corrupção de ações que expressam nossa relação com Deus é muito grave, pois é usar, de alguma forma, o nome de Deus em vão, ou seja, para enganar as pessoas e a si mesmo.
Na abordagem das três práticas de justiça/piedade, Jesus chama também a atenção para a recompensa a ser recebida pelo Pai, quando elas forem feitas com autenticidade. Não se define essa recompensa. Na verdade, nem se deve esperar recompensa, pois não se trata de uma negociação com Deus ou de uma relação de dar e receber. O que decorre dessas práticas feitas com objetivo adequado é justamente o aprofundamento da relação com Deus e uma identificação maior com ele. Não é por nada que o sermão do monte desafia, no seu final, a sermos perfeitos como o Pai é perfeito. Jejum, esmola e oração podem (e devem) nos aproximar de Deus e de seu modo de ser. Se não for isso, não valem a pena; aliás, prejudicam!
Outro aspecto que chama atenção é o caráter oculto das práticas de justiça em questão. Isso não quer dizer que as boas ações que praticamos não possam ser vistas pelos outros, caso contrário não poderíamos ser luz do mundo e sal da terra, como propõe o mesmo discurso de Jesus logo após as bem-aventuranças. A questão é, obviamente, uma recuperação do coração dessas práticas, feitas não para somar méritos, mas para cultivar nossa relação filial e de amizade com Deus.
A referência negativa aponta sempre aos hipócritas que, segundo o texto, praticam a justiça com espírito de autopromoção. E o método para consegui-la é apresentado em forma de caricatura: tocar trombeta… rezar de pé nas sinagogas e nas ruas… desfigurar o rosto e mostrar-se tristes… Obviamente não se trata de uma descrição objetiva, mas de imagens alegóricas para revelar o que não aparece à primeira vista. A palavra hipócrita expressa justamente um rosto falso, como o de um ator que usa uma máscara para representar um papel diferente da própria identidade.
A identificação desses hipócritas é indicada mais indireta do que diretamente, mas é bastante evidente pelo conjunto do texto do sermão: trata-se das lideranças das sinagogas. Portanto há um tom de polêmica no texto. Os discípulos e as discípulas de Jesus são e devem ser muito superiores a esses falsos justos.
3. Meditação
Você é daquelas pessoas que foram educadas para serem justas? Acredita no valor de a gente ser justo, apesar das injustiças que nos rodeiam? Pensa que ser justo é o que Deus pede dos seres humanos? Acredita que é possível ser semelhante a Deus, que é justo por sua própria natureza? Se suas respostas a essas perguntas forem sim, então é também para você que foi escrito o Evangelho de Mateus.
Mateus percebeu que muitas pessoas do seu povo queriam ser justas e por isso seguiam orientações de vida muito exigentes. Jejuavam, davam esmolas, rezavam, pagavam suas contribuições ao templo, respeitavam rigorosamente a lei do sábado, não se misturavam com gente de má fama etc. Pensavam que, dessa forma, eles se tornariam justas e que todos deveriam ser assim. Somente então Deus voltaria a ajudar o povo.
Mateus percebeu que esse jeito de buscar a justiça não era suficiente. Observou bem o comportamento de Jesus e se entusiasmou com seu jeito de ser justo. Era uma nova justiça acontecendo na prática. No centro dessa nova justiça não estavam os merecimentos que alguém pudesse obter pelo perfeito cumprimento daquelas leis exigentes, mas o compromisso com a saúde, a libertação e a promoção da vida dos seres humanos, especialmente dos pobres e excluídos. Sim, Jesus foi justo de outra maneira: comprometendo-se com a vida dos irmãos, curando suas enfermidades, desamarrando suas mãos e seus pés, soltando-lhes a língua, chamando os sem-valor e os discriminados para contribuírem na construção de um mundo de vida para todos.
Mas o evangelista também percebeu que esse novo jeito de ser justo tinha uma raiz profunda: ser como Deus! Jesus era justo dessa forma porque ele era Deus conosco, Emanuel. Ele ensinava que nossa relação com Deus, o Pai, nos torna semelhantes a ele e nos possibilita agir como filhos dele. Ele desafiava os discípulos e discípulas a serem perfeitos como o próprio Pai.
Já não era necessário conquistar Deus com boas ações ou atos religiosos. O que importava era cultivar uma autêntica relação com o Pai, que está nos céus, e traduzir essa nova identidade em ações de acolhida e fraternidade que expressassem o jeito de ser de Deus.
A muitos Jesus entusiasmou com essa nova justiça do reino de Deus. A outros, porém, escandalizou. Mesmo para aqueles que se entusiasmaram com ele, não foi fácil mudar a cabeça e o coração, pois o velho esquema tinha criado raízes profundas. Por isso Mateus se esforçou para organizar seu evangelho tendo o cuidado de destacar sempre isto: Jesus, com sua prática amorosa para com os excluídos, revela uma nova justiça, a justiça do reino de Deus. Teve um trabalho enorme para justificar isso, pois muitos pensavam que essa prática de Jesus não estava de acordo com o que estava escrito na Bíblia. Mateus, então, não se cansa de mostrar que Jesus cumpre, sim, o que está escrito na Bíblia. Cumpre e até melhora isso tudo. Ele é o próprio Deus presente no meio de nós, em hebraico Emanuel.
Era preciso, portanto, que as pessoas da comunidade de Mateus aprendessem de novo a ser justas. Justas elas sempre queriam ser. Mas agora tinham de aprender uma nova justiça. E tinham de cuidar para não praticar atos de piedade para merecer uma recompensa da parte de Deus, muito menos para promover a si mesmas diante dos outros.
Práticas como jejuar, orar e dar esmola não podiam ser praticadas com a lógica de convencer Deus a retribuir com vantagens ou graças a quem as praticasse, ou com intenção de impressionar outras pessoas e conquistar a admiração das mesmas. Por si mesmas, essas práticas não faziam sentido. E, quando praticadas com o objetivo da autopromoção, expressavam a corrupção de coisas sagradas. Mereciam censura. Em vez de melhorar, pioravam as pessoas que as praticavam.
Há uma conexão entre jejum, oração e esmola. Abster-se de bens – alimentos, bens de consumo etc. – tem sentido especial quando isso é feito para partilhar com outros mais necessitados (esmola). Jejum e partilha são irmãos! E a oração, feita no espírito apontado pelo evangelho, faz-nos desejar e praticar o bem dos irmãos e irmãs, torna-nos semelhantes a Deus, que é Pai e quer o bem de seus filhos e filhas. Jejum, esmola (partilha) e oração são práticas de uma mesma família!
O início da Quaresma quer garantir, portanto, que nossos atos religiosos – cultos, ações caritativas, estudos, jejuns etc. – cultivem uma saudável e profunda relação com Deus e seu projeto de vida. Sem isso, até o bem que fazemos aos outros – tão recomendado pelo evangelho – corre o risco de nos afastar de Deus e da justiça do seu reino.
4. Imagens para a prédica
“Eu quero ser como meu pai… como minha mãe… como o senhor, a senhora, como você” – dizem muitas crianças, adolescentes e até adultos. Essa expressão pode ser útil para falar da recompensa de praticarmos nossos atos de piedade sem interesse de autopromoção, mas para nos tornarmos semelhantes a Deus. “Quero tornar-me semelhante a Deus”, embora isso possa parecer um ideal inatingível.
Outros dizem: o que vou ganhar com isso? Trata-se de uma expressão que traduz bem a mentalidade pragmática e utilitarista da cultura na qual vivemos. Esperam-se vantagens imediatas e pessoais para qualquer de nossas ações, até mesmo das práticas religiosas. No entanto, o lucro ou ganho das mesmas, quando feitas com espírito evangélico, é tornar-nos semelhantes a Deus e a seu filho Jesus. Capacitam-nos para “amar como Jesus amou, sonhar como Jesus sonhou, pensar como Jesus pensou, viver como Jesus viveu, sentir o que Jesus sentia, sorrir como Jesus sorria […]”. E, assim, aproximam-nos do jeito de ser do próprio Deus.
Quaresma é um tempo em que juntos assumimos práticas de conversão, atendendo ao chamamento do profeta Joel, mas é necessário cuidar para que as manifestações desse tempo especial não sigam a lógica da propaganda que fazemos de nós mesmos ou da promoção das aparências, mas do crescimento da nossa verdadeira identidade de filhos e filhas de Deus que se inspiram sempre nele. Essa identidade se traduz em ações que, obviamente, podem e devem ser vistas e até admiradas pelos demais. Afinal, somos chamados a ser luz do mundo.
5. Subsídios litúrgicos
Podem-se fazer, neste dia, em momento oportuno, algumas preces, com resposta de toda a comunidade, como segue:
Oração
Confiando na misericórdia divina, elevemos a Deus Pai as nossas preces e súplicas…
– Ó Deus, nosso Pai, concede a necessária sabedoria aos pastores da igreja na missão de orientar os fiéis na vivência da Quaresma. Nós te pedimos dizendo: Converte-nos, Senhor.
T.: Converte-nos, Senhor.
– Firma os governantes no serviço da justiça e da solidariedade para o povo brasileiro. Nós te pedimos, Senhor…
– Ilumina teu povo, para que cultive na Quaresma uma verdadeira relação filial com Deus, por meio do jejum, das ações de solidariedade e da oração. Nós te pedimos, Senhor…
– Livra-nos, Senhor, de praticar os atos de piedade para promover a nós mesmos. Nós te pedimos, Senhor…
– Transforma nossas relações com os irmãos e irmãs de tal modo que nos tornemos semelhantes a ti, nosso Pai. Nós te pedimos, Senhor…
(Outros pedidos…)
(Conclusão da oração:) Ouve com bondade, ó Pai, esses pedidos confiantes de teus filhos e tuas filhas, por Cristo, Senhor nosso.
T.: Amém.
Bibliografia
FABRIS, Rinaldo. Matteo. Roma: Borla, 1982.
STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Mateus: o caminho da justiça. São Paulo: Paulinas, 1990.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).