Um olhar para nossa piedade
Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Mateus 6.1-6, 16-21
Leituras: Joel 2.1-2, 12-17*
Autoria: Bianca Bartsch
Data Litúrgica: Quarta-Feira de Cinzas
Data da Pregação: 22/02/2023
1. Introdução
Quarta-Feira de Cinzas. Diz-se popularmente que agora começa o ano no Brasil. Passados os festejos carnavalescos, com suas cores e seus adereços, é chegado o momento cinza e das cinzas. O texto proposto para as celebrações neste dia é um convite para tirar as máscaras da falsa piedade em nossas obras, que tantas vezes podem ocultar um coração ansioso por receber o reconhecimento das pessoas ao redor.
No calendário litúrgico, o início do tempo de Quaresma, que aponta para os quarenta dias que antecedem a Páscoa (descontando-se os domingos), é o período marcado na igreja antiga como tempo de jejum, oração e reflexão. Permanece sendo um período oportuno, não para práticas esvaziadas de sentido, mas para as pessoas que formam a igreja em tempos pós-modernos refletirem acerca de quais motivações estão por trás de suas práticas.
O texto sugerido para leitura, em Joel 2.1-2, 12-17, está em perfeita consonância com a indicação do texto para a pregação contida no Evangelho de Mateus. No Antigo Testamento, a convocação é para a oração e jejum como sinal de arrependimento e marco de mudança no comportamento das pessoas. Jesus, por sua vez, aborda a motivação para a prática, que ao que parece, caiu em mera repetição, vazia de significado. Se em Joel o soar das trombetas convocaram o povo, Jesus agora pede que as ações de misericórdia e devoção não dependam de alaridos.
2. Exegese
O primeiro evangelho do Novo Testamento, Mateus, foi o que mais influenciou a história da igreja cristã. No segundo século ele já era conhecido em todas as comunidades. Era a base para a instrução sobre palavras e vida de Jesus Cristo. Por essa razão era lido nos cultos e era uma espécie de referência para a orientação no preparo dos candidatos ao batismo (catequese).
Mesmo que ao longo da história da igreja os outros evangelhos tenham ganhado maior influência, o Evangelho de Mateus continuou com sua importância e predominância. Afirmações sobre a pregação de Jesus se orientam ainda hoje primeiramente por Mateus, pois contém o sermão do monte, do qual a perícope indicada faz parte, também as parábolas sobre o Reino de Deus, as orientações de Jesus para a sua igreja e o discurso sobre o juízo final.
Uma das possibilidades para o contexto e surgimento do evangelho é que Mateus é um evangelho lecionário. É um registro da vida e do ministério de Jesus para ser lido nos cultos da igreja primitiva. O aspecto principal no Evangelho de Mateus é o ensino sobre Jesus, ou seja, a cristologia. O que importa para Mateus é demonstrar que Jesus de Nazaré é o Messias tão esperado pelo povo judeu. Talvez até por isso o registro detalhado de quando Cristo chama a atenção ao verdadeiro significado e proceder das obras de misericórdia.
Quanto ao texto em questão, está localizado em meio ao famoso sermão do monte, logo após a lista das bem-aventuranças e a reinterpretação de algumas leis. Em Mateus 6.1 inicia o trecho que serve como um desfecho perfeito ao que o antecede no capítulo 5. Embora todas as atitudes práticas determinadas anteriormente digam respeito às relações entre as pessoas, é para com Deus que a verdadeira justiça deve ser exercitada. No Reino de Deus, o seu governo assume uma forma pessoal profunda. Deus não imporá sua justiça na sociedade, mas é nas pessoas que o ouvem que Deus criará uma justiça interior insuperável. A justiça que a Lei, se devidamente interpretada, sempre exigiu.
O texto inicia a partir de uma proibição, uma seção de indicações a respeito da conduta adequada dos discípulos de Jesus quanto à prática da esmola, da oração e do jejum. Anteriormente Jesus já havia alertado aos discípulos quanto à necessidade de que sua justiça excedesse, “em muito”, a dos escribas e fariseus (Mt 5.20). Agora, ao darem esmolas, seus discípulos não deveriam proceder semelhante aos hipócritas (Mt 6.2). A palavra hypokritēs é a palavra grega para alguém que interpreta num palco, ou seja, um ator. A palavra não significa necessariamente impostura intencional. Descreve uma religião exteriorizada e ritualista.
Na oração, do mesmo modo, o discípulo é instruído que o faça em secreto, de modo a não ser visto pelos seres humanos, mas tão somente por Deus. Na prática do jejum, de igual modo, o discípulo tem de proceder contrariamente aos hipócritas, que fazem questão de demonstrar a todos as pessoas o que estão fazendo (Mt 6.16-18). A afirmação de Jesus, por três vezes (Mt 6.2,5,16), de que certamente eles (os hipócritas) já receberam a recompensa em virtude da forma como sua justiça é praticada, combina perfeitamente com a exposição da consequência pelo exercício inadequado da justiça feita em Mt 6.1, ou seja, Jesus afirma, com outros termos, que esses hipócritas não têm recompensa junto do Pai Celeste. Praticam uma justiça ou exercem uma religiosidade inútil. E não só inútil, mas prejudicial.
Na segunda parte do texto indicado, abre-se novo assunto a partir do v. 19. Servem, sim, tais versículos como conclusão ao assunto, visto que a recompensa da prática da justiça acontece na plenitude do Reino de Deus, porém, ao mesmo tempo, são introdução para uma nova temática. O texto grego apresenta mē thēsaurizete hymin thēsaurous, no v. 19, um jogo de palavras que pode ser traduzido como deixem de entesourar os seus tesouros. A sabedoria desse mandamento é vista quando consideramos três coisas: os tesouros terrenos são deterioráveis ou perecíveis; os tesouros terrenos corrompem-se; e as coisas materiais competem com a completa lealdade a Deus.
3. Meditação
Jesus, em sua fala, evoca as formas como o judeu demonstra seu amor a Deus. São três atitudes: esmola, oração e jejum. Essas três realizações são consideradas obrigações cultuais judaicas.
A prática da doação de esmolas era muito difundida entre os judeus. O doador era forçado a essa generosidade ao ter de fazer doações em público. Por estar sendo observado, o ofertante sentia-se medido enquanto religioso, ou no termo que nos é trazido no v. 1, em sua “justiça”. Era hábito após o encontro na sinagoga as pessoas levantarem e anunciarem qual valor pretendiam ofertar. Se a doação era expressiva, o ofertante poderia sentar próximo ao rabino. O auxiliar da celebração na sinagoga tocava uma trombeta, com o propósito de chamar a atenção dos seres celestiais, porque havia acontecido um ato de beneficência especial.
A condenação de Jesus está justamente voltada para o espetáculo que se tornava a ação de misericórdia. A mão esquerda não deve saber o que a direita faz, ou seja, o impulso para a atitude deve ser o fruto do autêntico amor. Dietrich Bonhoeffer, quando fala acerca da questão, afirma que “nesse amor que a si mesmo se esquece, o velho ser humano deve morrer com todas as suas virtudes e qualidades […] comprometido apenas com Cristo” [Bonhoeffer, 2016, p. 99].
Quem pratica a misericórdia sem olhar para si mesmo, mas voltado para a necessidade do próximo, em segredo, receberá retribuição de Deus. Não é a recompensa como mero aplauso meritório das pessoas. Essa expectativa de ganho de prestígio é condenada por Cristo. Mas Jesus fala de certa recompensa que pode ser comparada com o “reconhecimento” que o pai concede ao seu filho dedicado. A “recompensa celestial” é o acolhimento divinal.
Também a oração deve estar no âmbito do que é privado. Entre os judeus, a prática da oração era semelhante à da concessão de esmolas. Como havia horários determinados para a oração, era comum que a pessoa fizesse sua oração no meio da rua. Desse modo cumpriria pontualmente o horário da oração. Em tais circunstâncias, a oração era um murmúrio, ou recitada em voz alta, acompanhada de performance corporal. Na mentalidade de muitos da época, as orações seriam um método mágico para merecer o céu. Pois acaba sendo o mais importante apenas cumprir a regra. Jesus condena veementemente a oração vazia, repleta apenas de vãs repetições, permeada de superstição. Por outro lado, Cristo não pensa de modo algum em interditar uma oração longa, fervorosa e confiante. Apesar disso, continua válido que a oração sem cessar é e permanecerá sendo o ofício do cristão. Pois orar não significa apenas dedicar de manhã e à noite alguns minutos à oração. Orar significa que a vida toda se tornou um diálogo com Deus. Quem vive nesse diálogo incessante não recebe sem refletir os acontecimentos de sua vida. A pessoa que ora recebe tudo de Deus e relaciona tudo com ele, o acontecimento maior e o menor.
Jesus ainda lança luz para a prática do jejum. Em seu tempo, os judeus observavam dois dias de jejum para todo o povo: o dia da expiação (Lv 16) e o nono dia do mês abib. Também acontecia o decreto de jejuns coletivos em situações de calamidades. O mais severo era o jejum no dia da expiação. Nesse dia sequer era permitido lavar-se. Também se devia deixar de ungir o corpo. As pessoas se aspergiam com cinzas, andavam descalças e adotavam uma expressão facial triste. Normalmente o jejum durava do nascer ao pôr do sol. Alguns devotos espontaneamente se encarregavam de outros jejuns particulares. Esse jejum espontâneo era tido em altíssima consideração. Acreditava-se que, com o jejum, se conquistaria junto de Deus um mérito especial. Por isso se jejuava também pelos pecados do povo, a fim de afastar do povo a ira de Deus! Muitas vezes essa atividade do jejum era feita para chamar a atenção, para concentrar sobre si os olhares das pessoas. Jesus afirma: Um jejum desses é hipocrisia, e por isso condenável! O jejum correto é um pensamento íntimo de arrependimento e um coração curvado diante de Deus. O que significa, então, para a situação de hoje aquele jejuar? Por exemplo, que muitos praticam em tempos quaresmais? O jejum voluntário consiste em todo tipo de renúncias que a gente se impôs, na simplicidade da comida e bebida, simplicidade na vestimenta e moradia, gastar com moderação, desistir de alguns prazeres. Porém, é preciso sondar os motivos que levam ao jejum. Seria para maior possibilidade de ofertas aos objetivos do Reino de Deus? Ou queremos estabelecer uma regra com essas limitações, a qual deve determinar que somente uma vida frugal é uma vida de fé autêntica? A intenção de Jesus, no que fala acerca do manter-se exteriormente disposto quando da prática do jejum, é para que permaneçamos verdadeiramente humildes no exercício voluntário das atitudes de misericórdia. Que não seja imposto a ninguém, mas que sejamos gratos e alegres no exercício das práticas de fé.
4. Imagens para a prédica
A partir de uma vida em Cristo, o ser humano é liberto do jugo da lei e da escravidão de si mesmo. Os efeitos da condução de Cristo na vida de quem crê geram novas perspectivas. O esboço sugerido para a pregação é adaptado da proposta de Fritz Rienecker:
– Olhar para fora move para o serviço-doação (“esmola”) de nossa mão perante o próximo.
– Olhar para cima move para a oração de nossos lábios perante Deus.
– Olhar para dentro move para a moderação (jejum) de nossa alma perante suas lutas interiores. (Por exemplo, a necessidade de aprovação ou visibilidade.)
5. Subsídios litúrgicos
A sugestão é celebrar a Quarta-Feira de Cinzas a partir da proposta de um Culto de Tomé, como forma de um caminho de volta ao coração, desvelando, no sentido de tirar o véu ou as máscaras que usamos, para que em Cristo vivamos com mais verdade e coerência no caminho do seu discipulado. (Caso você não tenha conhecimento acerca do Culto de Tomé, sugiro a leitura da tese de mestrado da Pa. Me. Ana Isa dos Reis Costella em: .)
Há propostas litúrgicas para o Culto de Tomé no Portal Luteranos (https://www.luteranos.com.br/) que podem ser facilmente adaptadas para a temática do culto na Quarta-Feira de Cinzas. Por exemplo, uma das estações pode ser para oração de confissão, com a proposta de orações serem escritas e queimadas ao final da celebração, transformando-as em cinzas. Uma estação também pode ser o convite à reflexão do que tem sido feito com o que Deus tem nos concedido (tempo, recursos, dons). Também pode ser bem-vinda a proposta para o engajamento em jejum diaconal, promovido em alguns sínodos, ou para a prática de um jejum pessoal, no tempo quaresmal (desde que devidamente refletido e com a correta motivação).
Bibliografia
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 13. ed. rev. São Leopoldo: Sinodal, 2016.
HÖRSTER, Gerhard. Introdução e Síntese do Novo Testamento. Curitiba: Evangélica Esperança, 1996.
RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Curitiba: Evangélica Esperança, 1998. (Comentário Esperança).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).