Uma profecia para os sem-terra
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Miqueias 3.5-12
Leituras: Mateus 23.1-12 e 1 Tessalonicenses 2.9-13
Autoria: Manoel Bernardino de Santana Filho
Data Litúrgica: 22º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 01/11/2010
1. Introdução
Miqueias é um alerta contra a falsa religião e a arrogância por parte dos profetas aliado ao roubo e à corrupção dos governantes da nação. O livro começou a ser escrito na época do profeta Miqueias, um agricultor do interior de Judá, chamado por Javé para denunciar os crimes da sua nação. Como homem do campo vivendo no círculo de pequenos camponeses e donos de rebanhos oprimidos por leis injustas, Miqueias é um personagem que se preocupa com as injustiças que sofrem seus concidadãos. Além dos impostos, é provável que recrutassem trabalhadores para conduzi-los a Jerusalém. O pano de fundo é a questão dos latifúndios, impostos, roubo à mão armada, trabalhos forçados e profetas que não falam da parte de Deus.
A ligação entre os textos acontece por meio do caráter de denúncia que se percebe em cada um deles. O texto do Evangelho de Mateus condena o farisaísmo, ao mesmo tempo em que prepara a comunidade para o perigo que ele traz. Ainda que se reconheça o valor dos ensinamentos transmitidos por eles, se condenam as suas práticas que em nada se parecem com o conteúdo de seus ensinos. Os escribas, como professores da lei, se assentaram na “cadeira de Moisés” e ocuparam esse lugar com razão. No entanto, havia discrepância entre o ensinar e o praticar. Seu modo de agir nada tinha a ver com o seu ensino.
No texto aos tessalonicenses encontramos o contraponto para essas práticas daninhas para a fé. Paulo mostra como agiu com correção e lisura em sua relação com aquela igreja. Procurou transmitir com fidelidade os ensinamentos recebidos do Senhor, ao mesmo tempo em que procurou se apresentar como alguém que anuncia a mensagem desinteressadamente. Ou seja, tanto Miqueias como Mateus denunciam falsos procedimentos por parte daqueles que têm a missão de praticar a justiça, enquanto a perícope da Primeira Carta aos Tessalonicenses mostra a forma correta de se proceder.
2. Exegese
“Miqueias” significa “quem é assim como Deus, o Senhor?” Foi um profeta do Reino do Sul, Judá. A profecia alcança a época de Jotão e Acaz e também o tempo de Ezequias. Foi chamado para profetizar sobre Judá e Jerusalém, mas também sobre Samaria.
É também chamado “o morastita”, na Septuaginta, devido à cidade de Morasti, aldeia de Judá, distante 35 km a sudoeste de Jerusalém. Esse dado é importante porque nos situa em ambiente campesino, em contato direto com os problemas dos pequenos agricultores, vítimas de grandes latifundiários.
O profeta denuncia os falsos profetas, que pretendem proclamar a palavra de Deus. Na opinião de Miqueias, só dizem vaidades e mentiras. Esses falsos profetas levam o povo à ruína. Eles fazem errar o “meu povo” (5), diz o Senhor. Esse meu povo não é um termo genérico de ricos e pobres, autoridades e súditos. São os roubados, expulsos de suas casas, desapossados de suas terras, vendidos como escravos, esquartejados como animais. E chegaram a essa situação não só pela cobiça dos poderosos, mas também por obra e graça dos falsos profetas. Com palavras concisas, o profeta denuncia a “teologia da opressão”. Em todas as épocas e culturas, a sociedade procurou argumentos religiosos para roubar, saquear, escravizar e matar. Se não para justificá-lo expressamente, ao menos para tranquilizar a consciência. Geralmente, atrás de todo ato de opressão há ideologia que a apoia. Em Israel não foi diferente. As autoridades e os ricos necessitavam de base de ordem moral que justificasse sua conduta e acalmasse algum escrúpulo. É aqui que entra o falso profeta proporcionando oráculos divinos e visões.
Para eles só cabem guerra ou paz. Uns são dignos de castigo, outros de viverem bem. Nisso coincidem com os verdadeiros profetas. A diferença está no que toca a cada grupo. Para o falso profeta, a paz e o bem-estar encontram-se a serviço dos ricos, dos que podem dar-lhes de comer; a guerra e a desgraça correspondem aos que não lhes enchem a boca. Com essa interesseira atitude, fomentam o que Miqueias chama “guerra santa” contra o povo de Deus (5). Aquilo que para Miqueias é matança cruel, os falsos profetas consideram ato sagrado para maior glória de Deus.
Os dirigentes da nação, os políticos, os sacerdotes, e os pregadores eram responsáveis pela inversão dos valores morais: aborreciam o bem e amavam o mal. Se ousassem, os pobres e os inocentes da terra teriam muito que dizer sobre os ricos fazendeiros que oprimiam os camponeses e a gente humilde da terra.
Quão diferente era o ministério do fiel pregador Miqueias! Ele estava cheio de poder do Espírito do Senhor (3.8). Ele reprovou corajosamente o materialismo interesseiro, a crassa injustiça, e a falsa religiosidade dos líderes da nação, que persistiam em dizer que o Senhor estava com eles, e que nenhum mal aconteceria (3.11). Miqueias predisse exatamente o contrário e vaticinou o desmoronamento da cidade santa e do templo, que se tornariam montões de ruínas cobertas de mato (3.12).
Um julgamento muito sério da parte daquele que não julga pelo que está diante dos olhos, mas pelo que vê o fundo do coração. São quase todos os dirigentes do povo que merecem tal julgamento. Os chefes, tanto do Estado como da religião, são aqueles a quem essa mensagem é endereçada, pois trabalhavam de mãos dadas, também nas outras nações.
Por não respeitarem a lei de Deus “sobre todas as coisas”, preferiam o mal ao bem. Sua atitude de opressão e violência conduz o povo nesse caminho. E essa responsabilidade está sobre os seus ombros. Sua tirania se dirigia especialmente contra os praticantes da religião, cuja vida piedosa para eles se constituía numa constante acusação. Essas pessoas não conheciam compaixão, assim também o Senhor iria negar-lhes a sua compaixão. Visto que não queriam ouvir as súplicas e os suspiros dos oprimidos, também Deus iria mostrar-se surdo perante seus gritos de agonia no dia do ajustamento de contas.
No v. 6, por quatro vezes é retratada a escuridão em que esses tais profetas andavam e faziam o povo de Deus andar. Tem mais culpa do que o povo, porém este, desprezando os bons profetas, mandados a ele seguidamente da parte de Deus, perseguindo e matando-os, não está também isento de culpa.
Esses bons profetas estão cheios do Espírito Santo (8), e a Deus dão toda a glória. Miqueias se confessa ser instrumento cheio do Espírito Santo. Esse o faz pregar a lei dura, para que os poderosos, assustados, perguntem pela salvação, que o profeta estava pronto a anunciar.
Miqueias ataca os líderes em Israel e seus falsos profetas (9-11). Traz como exemplo a maneira totalmente corrupta de seus processos judiciários. Reedificam Jerusalém à base de sangue, de crimes sangrentos. Provavelmente aqui está a denúncia do alistamento forçado para trabalhos escorchantes ao qual a gente humilde não podia fugir. Aceitam dinheiro, presentes, enfim, agem corruptamente. Mas são insensíveis ao que realmente importa, que é praticar o direito para promover a justiça.
No v. 12, aprendemos que tal hipocrisia é considerada por Deus pior do que a rebeldia e idolatria aberta. Assim, os que queriam reerguer Jerusalém são a causa de sua destruição. A cidade santa será lavrada como uma vassoura e o templo e as partes fortificadas terão o mesmo fim.
3. Meditação
O camponês Miqueias comparou Israel a um pomar e a uma videira depois da época de colheita, quando não se encontram mais frutas. Por analogia, desapareceu da sociedade a pessoa piedosa e honesta que produz bons frutos. Em escala nacional, praticava-se o mal. Os chefes da nação estavam de mãos dadas para cometer injustiça, suborno e cobiça. A falta de confiança era geral, e se estendia até o seio da família.
A palavra vinda da parte de Deus era agora uma palavra rara porque rareavam as pessoas que a poderiam entregar com integridade. Miqueias fala de profetas, adivinhos e videntes que não constituem diferentes tipos de profetas. O que está em vista, com maior probabilidade, são as diferentes formas pelas quais os profetas recebiam de Deus as suas mensagens. Havia aqueles ligados ao templo e outros santuários espalhados pelas cidades de Judá, sem conexão com o templo. O mais importante, no entanto, para uma compreensão sociológica da função desses profetas no contexto social da época é que eles “socializavam” a legitimação ideológica do projeto de Estado, ou seja, juntamente com o sacerdócio, preenchiam a função de educadores ou doutrinadores do povo, transmitindo conforme os interesses do monarca que os mantinha. Desta forma, sua função, que devia ser de legitimar o projeto de Deus para a nação, se desvirtuava como legitimadores do projeto do Estado e ajudava o monarca a manter a hegemonia sobre a sociedade civil.
A situação de Israel era desesperadora. No entanto, Miqueias confiava no Senhor. O profeta se identificou com seu povo, confessando o pecado que merecia o julgamento divino. Com clarividência, olhou além da derrota certa do povo de Deus e discerniu o dia distante, mas seguro, quando Sião, reedificada e ampliada, atrairá todas as nações. O Senhor será o seu pastor, e as nações respeitarão finalmente o povo de Deus. Miqueias louvou o Senhor que perdoará o seu povo, lançando todos os nossos pecados nas profundezas do mar. Ele baseou essa confiança na aliança que Deus fez com os patriarcas, a quem revelou a sua “misericórdia”. Cumprir-se-á a promessa do Senhor a Israel, e as nações saberão que Deus ama com amor eterno.
O dia anunciado está chegando. O dia do julgamento, do qual tantos profetas tinham falado, estava se aproximando. Para Samaria veio dentro de uma década; para Jerusalém durou mais de um século; mas o julgamento final de todas as pessoas ainda está no futuro.
Mas o fiel diz: eu, porém, olharei para o Senhor. Miqueias fala de si mesmo: eu estou cheio de força, de justiça e de fortaleza. Sim, ele é o homem que Deus levantou para se contrapor àquele estado de corrupção em todo o sistema legal. Sua missão só se tornou relevante porque os profetas da época perderam o rumo de sua função ao se deixar comprar a serviço dos ricos e dos poderosos. Mas Miqueias é aquele que confia no Senhor, mesmo quando todos ao seu redor descambam para o erro. É aqui que ele se estabelece como profeta e intercede pela nação, fazendo sua confissão e sua oração em conjunto com a nação pecaminosa. Levanta-se, mesmo tendo caído em desânimo. A pessoa piedosa vê a adversidade apenas como espécie de disciplina diária.
Os ídolos forjam-se como representações de divindades. A mente humana tenta tecer religiões, mas o perdão e a misericórdia são atributos exclusivos do próprio Deus, e só ele os revela. O escândalo que se abateu sobre Israel foi duramente denunciado por Miqueias. O povo foi conduzido à idolatria, no sentido religioso, e à perdição, no sentido político-social. No entanto, ao que me parece, o profeta está mais preocupado com o roubo dos ricos que leva os pobres à ruína.
Não é muito diferente de nossos dias quando ideologias políticas são mascaradas com uma fachada religiosa para escravizar, esganar e oprimir. O direito do pobre é tirado, sua liberdade é tolhida porque sem recursos não adianta dizer que se tem liberdade. Os ricos e os poderosos no tempo de Miqueias buscaram base de ordem moral que justificasse sua conduta e acalmasse os possíveis escrúpulos. Ao comparar os tempos e as épocas, vemos que apenas mudaram os personagens, mas as operações ligadas para se criar mecanismos de opressão e de exploração continuam os mesmos. É preciso que outros homens e mulheres com o caráter de Miqueias sejam levantados por Deus para combater o erro.
Esses são alguns dos ensinamentos de Miqueias para a nossa vida.
4. Imagens para a prédica
Um alerta: o falso profeta (segundo Karl Barth)
O falso profeta é o pastor que agrada todo mundo. Seu dever é dar testemunho de Deus, mas ele não o vê e o prefere, porque vê muitas outras coisas.
Segue seus pensamentos humanos, conserva-se interiormente calmo e seguro, evita habilmente tudo quanto o incomoda. Não espera senão poucas coisas ou mesmo nada da parte de Deus.
Pode calar-se, mesmo quando vê homens atravancando seus caminhos com pensamentos, opiniões, cálculos e sonhos falsos, por quererem viver sem Deus.
Retira-se sempre quando devia avançar. Compraz-se em ser chamado pregador o evangelho, condutor espiritual e servidor de Deus, mas só serve aos seres humanos.
Sonha, às vezes, que fala em nome de Deus, mas não fala a não ser em nome da igreja, da opinião pública, das pessoas respeitáveis e da sua “pequena” pessoa.
Ele sabe que, desde agora e para sempre, os caminhos que não começam em Deus não são caminhos verdadeiros, mas não quer se incomodar nem incomodar os outros; por isso é que pensa e diz: “Continuemos prudentemente e sempre alegres em nosso caminho atual: as coisas se arranjarão”. Ele sabe que Deus quer tirar as pessoas da impiedade e que a luta espiritual deve ser travada. No entanto, prega a “paz”, a paz entre Deus e o mundo perdido que está em nós e fora de nós. Como se tal paz existisse!
Sabe que seu dever consiste em proclamar que Deus quis uma nova vontade, uma nova vida, porém deixa reinar o espírito do medo, do engano, de Mamon, da violência – a muralha construída pelo povo (Ez 13.10), o muro oscilante e manchado. Ele disfarça-o pintando com as cores suaves e consoladoras da religião para o contentamento de todo mundo.
Eis aí o falso profeta!
5. Subsídios litúrgicos
A igreja, em seus cultos e liturgias, deve conduzir a pessoa a refletir sobre todas essas situações, ao mesmo tempo em que não deve se deixar desanimar porque o Deus a quem servimos é aquele que está atento aos movimentos da história e no devido tempo ele há de intervir.
Devemos ter em mente que em nossos sonhos e projetos de vida, tanto particular e familiar quanto comunitário, é preciso que se clarifique o grupo de opressores, daqueles que detêm o poder político, econômico, judicial e religioso. Denunciar homens públicos e seus sacerdotes e profetas; esses opressores, que se apresentam como homens religiosos, que conhecem e invocam as tradições da fé e clamam por Deus nos momentos de dificuldades, sabem da importância de assim agirem; é preciso falar do oprimido com palavras concretas e imagens vivas, mostrando profunda compaixão por essa gente, conhecendo de perto os seus problemas; é preciso não atribuir tanta importância ao centro do poder, seja Jerusalém ou Brasília. Aliás, é preciso mostrar em cores vivas que esses centros, literalmente falando, irradiam, em seu respectivo tempo, o projeto de opressão desenhado pelos poderosos. É de lá que se legisla e se aplicam as leis que não punem o culpado. Portanto a capital, pensava Miqueias, devia ser eliminada. Ele não pertence ao grupo que ama Jerusalém, nem seus edifícios, nem seu progresso. Não acredita em seus tribunais. Ele é o profeta que percebe o reverso da trama porque vê que prosperidade e progresso foram construídos com o sangue do pobre e à base de injustiça.
No entanto, a profecia deixa uma mensagem de esperança. O que nos move para frente é a capacidade de sonhar, de desejar que o amanhã seja melhor que o dia de hoje. Os que continuam sonhando são aqueles que haverão de experimentar aquilo que o Senhor tem preparado para os seus.
Bibliografia
SICRE, José Luís. Com os Pobres da Terra; justiça social nos profetas de Israel. Trad. Carlos Felício da Silveira. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2011.
ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. Miqueias: Voz dos Sem-Terra. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1996.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).