Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Miqueias 5.2-5a
Leituras: Lucas 1.46-55 e Hebreus 10.5-10
Autoria: Carlos Arthur Dreher
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 20/12/2015
1. Introdução
O texto de Miqueias, com pequenas variações, já foi tratado diversas vezes em Proclamar Libertação (5.1-4a em PL 6 e 12; 5.2-4 em PL 29; 5.2-5 em PL 16, 27 e 34). Os textos de leitura também apresentaram variações. Na formação proposta para este domingo, ocorre pela terceira vez (cf. PL 29 e 34). Nesses dois casos, a leitura de Lucas foi proposta como 1.39-45 (46-55).
Não é difícil relacionar o texto de pregação com a leitura do evangelho. Miqueias 5 anuncia “aquele que há de governar em Israel” (v. 2); ele “apascentará o povo”, e “eles habitarão seguros” (v. 4); “este será a nossa paz” (v. 5a). São afirmações retomadas em Lc 1.46-55, o Magnificat, em outra linguagem: a misericórdia de Deus não tem fim (v. 50); os poderosos são derrubados e os humildes exaltados (v. 52); Deus enche de bens os famintos e despede vazios os ricos (v. 53); ampara Israel, seu servo (v. 54). Em ambos os textos, os inimigos e opressores são afastados, e o povo de Deus pode experimentar bem-estar e paz.
Bastante complicada, a meu ver, é a relação daqueles textos com a passagem de Hebreus 10.5-10. Talvez a disposição do salmista, citado na passagem, em fazer a vontade de Deus (v. 7 e 9) pudesse ser relacionada à afirmação de Maria, anterior a seu cântico, em Lc 1.38: “Eis aqui a serva do Senhor; que se cumpra em mim conforme a tua palavra”. Contudo é apenas uma relação de contexto.
Importante é acentuar que estamos no 4º Domingo de Advento, a quatro dias da noite de Natal.
2. Miqueias 5.2-5
Uma boa introdução ao livro de Miqueias, bem como uma análise exegética competente já foi apresentada por Haroldo Reimer no PL 29, p. 21-24. Para maiores detalhes, aponto para aquele auxílio homilético, embora minha reflexão tome um rumo diferente daquela ali proposta.
Embora haja certo consenso de que apenas os capítulos 1-3 do livro devam ser atribuídos a Miqueias de Moresete-Gat (725-701 a.C.), a passagem de 5.2ss tem grande probabilidade de remontar a ele. A semelhança com Isaías 11.1 é muito grande. Ambas as passagens apontam para um tipo de liderança própria da sociedade tribal anterior à monarquia. Aliás, parecem acabar deliberadamente com a monarquia e com a expectativa por um rei do futuro, um messias. Ao afirmar que “do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo”, Isaías está cortando a árvore numa linha abaixo de Davi. Não se trata do “tronco de Davi”, portanto monárquico; trata-se do “tronco de Jessé”, portanto tribal. A monarquia, ao menos a davídica e, como tal, messiânica, ainda não existe no tempo de Jessé. Da mesma forma, a Belém-Efrata, apresentada por Miqueias, é sim a aldeia da qual provém Davi, mas não o Davi rei, e sim o Davi pastor de ovelhas.
Miqueias de Moresete-Gat, assumo-o, não quer mais um rei. Quer o fim da monarquia (cf. cap. 3, no qual o termo “rei” nem sequer aparece). Sim, aponta para um líder no futuro, mas já não para um rei.
Da pequena Belém, da região do clã dos efrateus (cf. Rt 1.2), virá o novo líder. Trata-se de uma aldeia periférica, insignificante. É tão pequena, que é incapaz de figurar entre os alafim de Judá. A palavra traduzida na versão de Almeida por “milhares” é a forma plural do termo hebraico élef, que pode significar o numeral “mil”, mas pode indicar também a unidade de defesa de uma aldeia. Trata-se aí do grupo de homens jovens aptos para a luta quando for necessário. No geral, são grupos de oito a quinze jovens, dependendo da população da aldeia. Além de defender a própria aldeia de eventuais assaltos e ataques, essas unidades de defesa são convocadas para compor o exército tribal. Essa me parece ser a interpretação correta do termo na passagem: Belém é uma aldeia tão pequena e insignificante, que não dispõe nem mesmo de um élef – oito guerreiros – para defender-se, que dirá para compor um exército tribal!
Pois é dessa Belém insignificante que virá aquele que há de governar em Israel. O v. 2 (no hebraico é o v. 1) utiliza o verbo mashal (“governar”), não o verbo malak (“reinar”). É evidente que um rei governa. Contudo o verbo aqui empregado não se refere à atividade de um rei. Refere-se à ação de um líder tribal, do tipo “carismático”, como definiu Max Weber, como os heróis do Livro de Juízes. São pessoas do campo, das quais o Espírito de Deus se apossa, capacitando-as para a liderança nas guerras contra os inimigos. Passada a ação de salvamento para a qual foram escolhidos, voltam a ser agricultores como antes. Tal liderança não se perpetua.
Nessa direção parecem apontar também as referências seguintes contidas no v. 2. Esse líder que governará tem suas origens desde os tempos antigos, o que equivale a dizer “desde os dias da eternidade”, ou seja, desde sempre, como as aldeias tribais o experimentaram no tempo dos juízes e ainda experimentam. Apesar da monarquia, elas continuam a organizar-se como sempre o fizeram, procurando viver uma sociedade de iguais, solidária.
O v. 3 diz-nos que “o Senhor os entregará”. Isso significa que o povo de Judá será entregue nas mãos de algum inimigo. Se acatarmos a ideia de que a passagem remonta a Miqueias, tais inimigos devem ser os assírios, que avançam e já tomaram a Galileia. Aliás, a Assíria é explicitamente mencionada no v. 5b. Seja como for, a ameaça de um inimigo muito forte paira sobre o povo de Deus.
Muito difícil de interpretar é a expressão “até ao tempo em que a que está em dores tiver dado à luz”. É grande a tentação de relacionar de imediato a passagem ao nascimento de Jesus. Não creio que se deva fazer isso por respeito à comunidade judaica, à qual o texto pertence em primeiro lugar. Será, então, uma simples indicação de que o sofrimento terá a duração de uma gravidez, como em Isaías 7? Seja como for, ao cabo de um tempo, o líder que governará verá o restante de seus irmãos voltarem aos filhos de Israel. De fato, a julgar por essa frase, o texto parece indicar o retorno dos exilados ou de seus descendentes após 538 a. C. Não obstante, continuo a ver o conjunto como originário de Miqueias e, portanto, de um período anterior.
A parte final da perícope transpõe-nos para um futuro de paz (v. 4 e 5a). Quando a situação de opressão e sofrimento estiver superada, aquele que há de governar assumirá sua função, mantendo-se firme e apascentando o povo na força do Senhor, seu Deus. O novo líder age com seu povo como um pastor lida com seu rebanho. Contudo só consegue fazê-lo porque se apoia na majestade de seu Deus, o verdadeiro rei. A partir dessa majestade, o povo habita seguro, e o nome do governante é engrandecido até os confins da terra.
Na força e na majestade do Senhor, ele será a nossa paz.
3. Pensando na pregação
De tanto ouvir e reler essa passagem na época de Advento e Natal, a tentação evidente é querer transformá-la, de imediato, em um texto “evangélico”, isto é, próprio do Novo Testamento e dos evangelhos ou, pelo menos, num dos textos ditos “messiânicos” que prefiguram o Messias Jesus Cristo já na Bíblia Hebraica.
Na verdade, o texto de Miqueias 5.2-4a fala-nos de esperança. Anuncia a vinda de uma liderança comprometida com as origens de Israel, uma sociedade de irmãos na qual deliberadamente Gideão pode afirmar: “Não dominarei sobre vós, nem tampouco meu filho dominará sobre vós; o Senhor vos dominará” (Jz 8.23). Dessa mesma sociedade vem-nos a peça literária mais antimonárquica da literatura universal (Martin Buber), o apólogo de Jotão (Jz 9.8-15). Sim, o rei é como um espinheiro: não produz frutos, promete sombra, mas apenas espeta.
Semelhante ao texto de Is 11.1ss, também aqui a esperança não é “messiânica”, no sentido de que espera pela vinda de um novo rei. Aquele que sairá de Belém-Efrata não será um rei. Será, sim, um herói tribal, um líder, como Eúde, Débora, Gideão, Jefté, sem pretensão ao poder absoluto e vitalício. Virá para prestar serviço, alicerçado na majestade do nome do Senhor, pois somente ao Senhor pertencem a majestade e a realeza.
Essa esperança é prometida em tempos de aflição. A formulação também é típica do Livro de Juízes: o Senhor entrega seu povo nas mãos do inimigo, mas, a seu clamor, suscita um libertador (cf. Jz 3.8s; 3.12 e 15; 4.2; 6.1; 10.6).
Evitaria, pois, falar da esperança por um rei na pregação. Acentuaria, antes, que Miqueias não espera por um rei. Aquele que vem é diferente. Não pretende o poder, não busca a glória, não quer dominar. Quer servir, quer apascentar, cuidar de seu povo, sempre em conformidade com a vontade do Senhor.
Naquele que vem o seu povo habitará seguro. Naquele que vem haverá paz.
Na mesma direção aponta o Magnificat. O cântico de Maria anuncia: [Deus] “Agiu com o seu braço valorosamente; dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos. Amparou a Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua misericórdia a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como prometera aos nossos pais” (Lc 1.51-55).
E agora, sim, podemos estabelecer a relação com o evangelho. Maria está grávida. É ela que em breve estará em dores e dará à luz. E aquele que virá de Belém-Efrata será seu filho e será também chamado de Filho de Deus (Lc 1.35).
Com sua vinda os soberbos serão dispersos, os poderosos serão derrubados de seu trono, os ricos serão despedidos de mãos vazias, ao passo que os humildes serão exaltados, e os famintos, enchidos de bens. Israel será amparado; será apascentado. E poderá viver em paz!
Penso que a prédica deveria levar em conta a distância temporal entre Miqueias e Lucas – 700 a. C. – 70 d. C., em termos aproximados. Há que contar que a esperança expressa por Miqueias não se concretizou no passado, a ponto de João Batista enviar seus discípulos para perguntar a Jesus: “És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?” (Lc 7.19).
A pergunta de João tem, em sua primeira parte, uma esperança muito grande de que o prometido tenha, enfim, chegado. A segunda parte revela a frustração de séculos: havemos de esperar outro, porque mais uma vez fomos iludidos com vãs promessas?
Proponho que se aborde primeiramente o texto de Miqueias em separado, sem relacioná-lo ao Natal. Isso ocorreria em uma segunda parte da pregação, agora com auxílio do texto de Lucas. Não consigo deixar de pensar numa provocação. Entre Miqueias e Lucas temos uma distância temporal de cerca de 770 anos. E entre Lucas e o Natal de 2015? 1.935 anos!
Como não repetir a angustiante pergunta de João, talvez agora de uma maneira um tanto diferente: “Até quando, Senhor, havemos de esperar que tua paz se torne plena neste mundo? Até quando, Senhor, havemos de esperar que tu nos apascentes, para que, definitivamente, possamos habitar seguros?”.
Que o Senhor, aquele que vem de Belém-Efrata, realimente a nossa fé e a nossa esperança neste Natal!
4. Imagens para a prédica
Não disponho exatamente de imagens para a prédica. Não obstante, apresento uma sugestão.
Nos últimos tempos, não temos tido muitas notícias positivas sobre a situação do mundo e de nossa sociedade. Escândalos, crimes hediondos, corrupção de alto a baixo etc. Não deve ser difícil enumerar algumas dessas imagens negativas, talvez bem mais recentes por ocasião da época de Advento. Proponho que o pregador ou a pregadora busquem algumas dessas notícias e apresentem-nas como situação de opressão, de sofrimento, enfim, de desesperança. Tome-se o cuidado de não enumerar aí notícias polêmicas que possam vir a fechar os ouvidos de pessoas da comunidade, de um lado ou de outro.
O que se deveria deixar bem claro é a paz esperada por Miqueias, que ainda parece estar bem distante.
Em seguida, faça-se o mesmo em relação a notícias positivas e alentadoras, que mostrem, ainda que sejam pequenas e frágeis, que outro mundo é possível. São essas notícias pequenas e frágeis que têm a ver com a pequena Belém-Efrata, com a frágil manjedoura de Belém, com a menina escolhida para ser mãe do Salvador. São essas pequenas luzes que alimentam nossa fé.
5. Subsídios litúrgicos
Como versículo de introito sugiro Isaías 11.1-2: “Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo. Repousará sobre ele o Espírito de Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor”.
Para as leituras, proponho que se substitua o texto de Hebreus por outra epístola ou por um segundo texto do Antigo Testamento. Nesse caso, proponho Isaías 9.1-7 ou 11.1-10.
Dos diversos hinos de Advento do HPD 1, os de número 1 e 3 parecem-me apropriados para a ocasião. Seria possível também cantar o hino 32, “Renovo mui delgado”, ou seu equivalente no HPD 2, “Da cepa brotou a rama”, hino 310.
A confissão de pecados deveria lembrar algumas das notícias negativas que serão utilizadas na pregação.
A oração de intercessão faria bem em agradecer pelas boas notícias e conclamar para a esperança.
Bibliografia
Como bibliografia, sugiro os auxílios homiléticos sobre o texto de Miqueias 5.2-5a, já publicados em Proclamar Libertação, mencionados na introdução deste texto.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).