Estamos numa espera passiva?
Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Miquéias 5.2-5a (Vulgata e edições SBB) = Miquéias 5.1-4a ( Bíblia Hebraica e edições católicas)
Leituras: Lucas 1.47-55 e Hebreus 10.5-10
Autoria: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 19/12/2021
1. Introdução
O Evangelho de Lucas 1.47-55 dá o tema para o 4º Domingo de Advento. O cântico entoado por Maria (Magnificat), inspirado no salmo de Ana (1Sm 2.1-10), celebra a inversão de realidades e valores humanos por parte de Deus, que humilha os poderosos e exalta os humildes (1.52). Essa inversão também se observa na origem humilde (Belém-Efrata) daquele que governará em poder (Mq 5.4). Hebreus 10.5-10 celebra a substituição dos sacrifícios pela vida e morte de Cristo. Devido à dificuldade de vincular esse texto com o tema, sugiro omiti-lo. A leitura do Antigo Testamento prevista como texto-base para a pregação pertence ao grupo das expectativas messiânicas, as leituras veterotestamentárias preferidas para a época de Advento e Natal. O texto foi abordado em Proclamar Libertação, duas vezes para o dia de Natal, duas vezes para a véspera de Natal e três vezes para o 4º Domingo de Advento. Eu seguirei a numeração dos versículos da Vulgata, apesar de a moderna literatura exegética utilizar a numeração da Bíblia Hebraica.
2. Observações exegéticas e teológicas
Como o PL 29 apresentou uma extensa exegese de Haroldo Reimer, detenho-me, aqui, a alguns pontos que considero importantes para a homilia.
a) O texto pertence ao bloco Miqueias 4.9 – 5.6, que contém três ditos que iniciam com “agora” (4.9,11; 5.1) e que são compostos, cada um, por uma descrição de uma situação de aflição e por uma palavra de consolo ou libertação. Os dois primeiros ditos são endereçados a Jerusalém-Sião, o último a Belém-Efrata. Independentemente de haver ou não trechos atribuíveis ao profeta Miqueias do séc. VIII, a atual configuração do bloco reflete cultos de lamentação após a destruição de Jerusalém e de seu templo (Zc 7.3,5; 8.19), para cujo contexto os ditos proféticos foram adaptados. Numa situação de necessidade, aflição e miséria, os frequentadores do culto recebem o anúncio da atuação divina que trará consolo e esperança para a comunidade aflita. Essa situação prefigura a do pregador.
b) 52 Mas tu, Belém-Efrata, /tu que és pequena dentre os clãs de Judá,
de ti me sairá/ aquele que irá governar Israel.
Suas origens são de tempos antigos,/ de dias longínquos.
O início do trecho escolhido como base de pregação não coincide com o início do terceiro dito do bloco mencionado. Por motivos homiléticos, coloca-se o aspecto central para a comunidade cristã no início: o “messias”. O recorte já é, portanto, uma interpretação. De fato, o maior peso dos que comentam e meditam sobre o texto é colocado nesse versículo. Existe alguma base exegética para tal. Destinatário do terceiro dito não mais é Jerusalém-Sião, mas Belém-Efrata. Depois da destruição da capital, centro político, econômico e religioso de Judá, e depois do fim da monarquia e, para muitos, da perda da terra prometida, coisas novas não mais se esperam do centro, mas da periferia. A história do povo não continua nos moldes antigos, mas tem novo início “desde tempos antigos”. Detalhes sobre esse novo início são apresentados por Carlos Dreher, em PL 40.
Repito, aqui, apenas alguns aspectos. A insignificante aldeia de Belém, fundada pelo pequeno clã dos efratitas, a cerca de 9 km ao sul de Jerusalém, é a aldeia natal da família do rei Davi. Jessé, pai de Davi, é efratita de Belém (1Sm 17.12). Após o fim da dinastia davídica, em 587 a.C., a história política do povo recomeça no mesmo lugar, só que com outros parâmetros. O novo escolhido de Deus (de ti me sairá) não será “rei” nos moldes conhecidos; evita-se esse termo. O vocábulo usado – “governante” – é (intencionalmente?) genérico demais para sugerir uma modalidade específica de governo, mas preserva uma crítica à dinastia davídica. A escolha dos “pequenos” por parte de Deus, no entanto, é um traço recorrente na teologia bíblica. Vemos isso na eleição de Gideão (Jz 6.15), Saul (1Sm 9.21) e mesmo Davi, o menor dos irmãos (1Sm 16.11-13). Os pequenos e fracos se tornam grandes e fortes pelo poder de Deus. Assim o reinterpreta Mateus 2.6 (não és de modo algum a menor); assim o enaltece o cântico de Maria: exaltou os humildes (Lc 1.52).
c) 53 Por isso ele [o SENHOR] os entregará até o tempo em que a parturiente der à luz e o resto de seus irmãos voltar aos filhos de Israel.
O versículo em prosa é uma complementação de Miqueias 5.2. Além de mencionar a situação difícil em que o povo se encontrava – entregue aos inimigos no exílio –, vincula um evento à época do novo governante – o retorno dos exilados – e coloca um prazo – até que a grávida der à luz. Acentua que o sujeito tanto da desgraça quanto da libertação é Deus. A referência à parturiente é uma reflexão adicionada de Miqueias 4.10 e Isaías 7.14. Neste último texto – bastante conhecido – o nascimento de uma criança também faz parte do tempo de espera pela salvação. Por razões óbvias, o motivo da parturiente sempre foi muito importante para a fé cristã.
d) 54 Ele se postará de pé e apascentará no poder do SENHOR,/ na majestade do nome do SENHOR, seu Deus […] Sim, agora ele se tornará grande,/ até os confins da terra,5a e ele será a paz.
A descrição do novo governante usa terminologia padronizada: “apascentar” o povo significa liderar, entender as necessidades dos liderados e ter propostas de ação, proteger o rebanho, fornecer possibilidades de sobrevivência e alertar para os perigos, os lobos e as doenças que o ameaçam. É isso que se esperava de um monarca. Tudo isso – tranquilidade, segurança, integridade física ou saúde, segurança alimentar ou bem-estar, convivência social harmoniosa, felicidade – a língua hebraica pode condensar numa única palavra: shalom, uma palavra muito mais abrangente do que para nós é o vocábulo “paz”. Para cumprir essa sua missão, o novo governante recebe “poder” de Deus. Aqui ainda ressoa a antiga concepção oriental de que o rei goza de poderes especiais, divinos. Mas é o humilde que se tornará grande. Por ser grande e inspirado em Deus, seu governo será universal (até os confins da terra). Também aqui ainda se nota um traço do conhecido imperialismo oriental. Por outro lado, a ideia reflete a experiência de Israel de que a “paz” só é possível com a participação de todas as nações. O novo governante personificará a paz.
e) O texto de Miqueias faz parte do grupo de textos messiânicos. Entendo essa expressão no sentido amplo: textos que expressam a esperança por um governante futuro ideal. Esse governante pode ser expresso por diversos termos; geralmente não aparece a designação “messias”; muitas vezes também não se usa o termo “rei”. Ainda assim, os textos têm a mesma perspectiva. As expectativas messiânicas orientam-se em concepções orientais da época. No Antigo Testamento, essas concepções foram adotadas, rejeitadas ou modificadas no decorrer do tempo, de acordo com a fé de Israel. O Salmo 2 talvez reflita a visão mais antiga de como se via um “rei-messias”: é o filho de Deus, que receberá as nações por herança e as regerá com vara de ferro, despedaçando-as como um vaso de oleiro (Sl 2.8s). Esse texto, entendido como messiânico somente no judaísmo tardio, marca o início de uma evolução do conceito de messias-rei em Israel.
Num segundo estágio se encontram, p. ex., os textos de Isaías e Miqueias. Em Isaías 9.2-7 (na versão de Almeida), o menino-messias é, ao lado da libertação do jugo opressor e da destruição das armas de guerra, um aspecto decisivo da alegria futura do povo. Seu regime será de paz, pois estará fundado no direito e na justiça (Is 9.7). Já Isaías 11.1-5 contém, como Miqueias 4, uma crítica velada à monarquia, porque o “renovo” sairá da raiz ou do tronco (Jessé), não mais do ramo da dinastia davídica. (A Bíblia na Linguagem de Hoje não vê essa crítica e entende que o “renovo” é uma continuidade da dinastia davídica.) As constantes frustrações com a monarquia levaram a não mais querer a continuidade do modelo de governo existente. Por isso em Isaías 11.4 o castigo não mais será executado com a “vara de ferro” (como no Sl 2), mas com a “vara da boca”. E o regime de justiça estará focado na reabilitação do direito dos pobres e fracos. Em Isaías 61.1-3, um texto pós-exílico, o futuro messias assume funções proféticas: ele anuncia as boas novas, apregoa o ano aceitável do Senhor (Is 61.1s). No final dessa história das tradições messiânicas está Zacarias 9.9s: Alegra-te muito, ó filha de Sião, exulta, ó filha de Jerusalém. Eis aí vem teu rei, justo e necessitado, pobre e montado num jumento. Bem assim está na Bíblia Hebraica! O rei já não tem nenhum poder. Pelo contrário, ele até é pobre e carente de ajuda. A tradução grega achou por bem evitar essa afirmação escandalosa. Por isso ela altera o texto: Eis aí vem teu rei, justo e salvador. Essa é a tradução que se impôs em nossas Bíblias. Em suma, no decorrer do tempo, o “messias” esperado fica menos violento e menos poderoso; seu poder se desloca das armas para a palavra conscientizadora. O trinômio direito, justiça e paz está presente em quase todos os textos. Zacarias 9.9s e Isaías 53 representam o alvo desse processo de reflexão: o rei é pobre, dependente e um servo oprimido, desprezado, rejeitado e morto.
3. Observações hermenêuticas e homiléticas
a) A fé cristã confessa que os anúncios do “messias” se cumpriram em Jesus de Nazaré: ele é o “Cristo”. Mas temos que estar conscientes de que nem os anúncios messiânicos tinham em mente Jesus, nem Jesus reivindicou para si o título de messias como o fizeram conterrâneos seus um pouco antes e um pouco depois dele. Jesus até se distanciou de atributos vinculados ao futuro rei de Israel. Os evangelhos apontam para a dificuldade de os discípulos entenderem que a messianidade de Jesus era bem diferente do que as expectativas existentes em sua época. Em vez de poder político, da popularidade do mágico ou do mestre de espetáculos (cf. as tentações de Jesus), Jesus assumiu sofrimento e humilhação, demonstrou obediência e fraqueza na cruz; em vez de um império universal, surgiram comunidades de serviço. Resta perguntar: as expectativas messiânicas do AT se concretizaram ou não em Jesus? Certamente ainda não existe um “reino” universal de justiça e paz. Armas de guerra ainda estão sendo vendidas. Bem-estar (shalom) é uma condição restrita a poucos. O conhecido exegeta luterano Georg Fohrer converteu-se ao judaísmo porque as promessas veterotestamentárias ainda não se cumpriram com Jesus. A fé cristã afirma que as promessas apenas em parte se concretizaram em Jesus. Outras tantas não. Essas não perderam sua validade e são esperadas para o futuro. Essa dialética perpassa a época de Advento: celebramos aquele que já veio em nome de Deus e esperamos por sua vinda no futuro quando se cumprirão todas as promessas do novo céu e da nova terra.
b) Como podemos, diante do constatado acima, atualizar o texto? A periferia “Belém-Efrata” pode certamente ser observada em “Nazaré da Galileia”, de onde não se esperava nada de bom (Jo 1.46). Os “tempos antigos” não falam diretamente da pré-existência de Jesus, mas podemos entender o Logos como um pensamento do Deus misericordioso para com seu povo: já sempre Deus quis mostrar sua misericórdia. A ideia de tempo vinculada à mulher grávida pode ser desenvolvida como explicação da demora da vinda do “reino de Deus”. Ainda nos encontramos em dores. Há o prenúncio, mas ainda não a concretização do novo. Houve um início com Jesus, mas ainda aguardamos a perfeição.
c) A distância entre expectativa e realidade foi amiúde motivo de frustração para as comunidades cristãs. Como se pode ver a majestade divina (Mq 5.4) no Jesus crucificado? Onde estão os sinais do reino de Deus na política? Jesus continua morrendo de Covid nos hospitais e de bala perdida em nossas periferias; ele continua sendo assassinado por ser negro suspeito de ser traficante. Certamente também coisas boas acontecem na sociedade: gestos de solidariedade, perdão, doação e reconciliação. Os olhos da fé certamente veem a realidade de outra forma. Mas não temos a permissão de maquiar a realidade com nosso discurso natalino: ainda estamos longe de uma sociedade de justiça e paz como a anunciada pelos profetas. Talvez a época de Advento possa ser uma oportunidade de refletir sobre como nos posicionamos nesse caminho que vai de Jesus de Nazaré à perfeição do reino de Deus.
4. Sugestão para a prédica
Proponho refletir sobre como podemos ser e viver nesse caminho entre Jesus de Nazaré e a realização plena do reino. Para tanto proponho tomar como pano de fundo a peça teatral do dramaturgo irlandês Samuel Becket intitulada “Esperando Godot”, de 1949. Os dois personagens principais, Estragon e Vladimir, se encontram sob uma árvore à beira do caminho e conversam sobre trivialidades. Os diálogos são breves e desencontrados sobre assuntos sem importância e sem sentido. Descobre-se que os personagens estão à espera de Godot. Não se diz quem é esse Godot nem por que esperam por ele. O diálogo é interrompido pela chegada de dois novos personagens: um aristocrata de nome Pozo traz amarrado por uma coleira seu escravo, ironicamente chamado Lucky (sortudo), que carrega uma enorme e pesada mala. Pozo conversa com Vladimir e Estragon sobre banalidades. Lucky permanece calado. No final do primeiro ato, entra um menino para dizer que Godot não vem hoje.
O segundo ato começa com a mesma cena, os mesmos personagens e o mesmo diálogo. Tudo se repete. Tudo parece absurdo e sem sentido. Novamente entram Pozo e Lucky; dessa vez Pozo está cego, Lucky continua na coleira e o guia. Só o aristocrata fala, Lucky continua mudo. O segundo ato termina como o primeiro: um menino entra para informar que Godot não virá hoje. A peça chega ao fim sem que se saiba quem é Godot e por que se esperava por ele.
A peça retrata a falta de sentido preenchida pela rotina, pelas fórmulas cordiais e vazias, pelo diálogo desinteressado, pelo small talk. Entendo que Godot é código para Deus (God-ot), pelo qual se espera numa situação de vazio e absurdo, sem, no entanto, poder vinculá-lo a nenhum conteúdo. A monotonia do cenário e a falta de qualquer ação indicam para uma espera passiva. A cena do escravo mudo trazido à coleira e carregando uma mala é considerada estranha, não provoca nenhuma indignação ou revolta. Tudo fica na mesma, nada se faz, nada muda, a retórica se repete ad infinitum. É assim que esperamos por nosso Deus? (A obra contém muitos outros detalhes que podem ser aproveitados na prédica.)
5. Subsídios litúrgicos
Cantos: Advento é tempo de preparação (LCI 358); Como hei de receber-te (LCI 364); Da cepa brotou a rama (LCI 356).
Oração inicial: Ó Senhor, que visitas o mundo, manifestando misericórdia, enche nossa vida de esperança, abre nosso caminho para celebrar tua chegada, visita-nos mais uma vez, com a graça de teu Espírito.
Pedido de perdão: Perdoa-nos por nos termos conformado com o que existe e por termos desistido de esperar por algo realmente novo. Perdoa por termos sido mulheres e homens que desviaram o olhar da injustiça, por termos negligenciado a solidariedade, a partilha e a reconciliação.
Oração final: Deus da vida, tu queres que vivamos em irmandade, sem medo e sem violência, sem egoísmo nem corrupção, na justiça e na solidariedade. Dá-nos força e coragem. Renova a esperança daqueles que não mais conseguem esperar por tua vinda. Dá coragem e ousadia aos desanimados para que possam voltar a sonhar com um mundo melhor. Intercedemos pelos que colocam sinais de teu reino numa sociedade doente e sem rumo. Amém.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).