Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Miqueias 6.1-8
Leituras: Mateus 5.1-12 e 1 Coríntios 1.18-31
Autor: Cláudio Kupka
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 30/01/2011
1. Introdução
Em clima de férias de verão, temos diante de nós um texto explosivo e inquietante. O texto de Miqueias quer nos convidar a revisar profundamente nossa relação com Deus. Não pretendo me deter na investigação histórica e contextual a respeito de Miqueias e o próprio texto em questão. Os comentários de Carlos A. Dreher (PL XXIV, p. 79-87) e Wanda Deifelt (PL XXVII, p. 58-64) tratam do assunto em altíssimo nível. Recomendo a sua leitura como complemento. Entendo minha colaboração na compreensão mais contextual e homilética desse texto. Para isso, valho-me de uma leitura dialogal e associativa. A ideia é “conversar com o texto”, buscando nesse diálogo uma compreensão a partir de temas e ideias que o texto e a nossa realidade têm em comum.
Em determinados momentos da reflexão, podem-nos ocorrer ideias e associações úteis na etapa da reflexão e preparação da prédica. Nesses momentos, inserirei a seguinte observação entre parêntesis (Convém guardar em mente essa referência – pode ser um ponto importante na reflexão mais adiante.) Resisto à ideia de dissecar o texto de qualquer associação em busca do escopo e da sistematização das ideias básicas do texto. Defendo a coleta paralela de ideias, metáforas e ilustrações à medida que o texto vai se revelando para a gente. Farei referência aos textos complementares no final deste auxílio homilético.
2. Primeira aproximação
O nosso texto é um diálogo ambientado num tribunal fictício entre Deus, seu povo e o profeta. Através dele se faz um balanço sobre a relação do povo de Israel com Deus. O tom do diálogo assemelha-se àquele que a mídia atual, ávida por dar um tom espetacular a tudo, faz quando há uma investigação de crimes de impacto nacional. (Convém guardar em mente essa referência – pode ser um ponto importante na reflexão mais adiante.)
O convite ao embate de pontos de vista é público. Deus não tem o que temer. A clareza e a visibilidade de seus argumentos são a chave para o convencimento. O texto começa quando Deus convida como testemunhas as montanhas, notórias por sua visão madura e experiente da história. Se o povo esquece, os montes não. Se, por um lado, o convite é amplamente divulgado, por outro, o tom da análise dos argumentos é sóbria.
Deus inicia num tom de lamento, autoquestionando-se se em algum momento errou para com o povo. Parece um pai avaliando sinceramente em que momento errou na educação dos filhos. Deus pergunta-se se sua presença e ação de alguma maneira foram intensas demais, a ponto de causar um estranhamento por parte de seu povo.
Ele lembra então do Êxodo, conhecido no estudo exegético como o evento central da história de Israel. O Êxodo define quem é Deus. Alguém sensível ao sofrimento das pessoas e ativo no sentido de liberá-las da escravidão. Os eventos miraculosos só destacam a intensidade do agir libertador de Deus e seu amor pelo povo.
Mas Deus continua. Cita dois eventos que caracterizam seu compromisso com Israel. O primeiro é o episódio citado em Números 22-24, quando o rei moabita Balaque tenta subornar Balaão, para proferir maldição contra Israel por sentir-se ameaçado pela aproximação desse povo do seu. Balaão, advertido por Deus a não proferir tal maldição, acaba não aceitando o suborno e revelando a Balaque que o povo de Israel é protegido por ele e que os moabitas não poderão fazer nada contra isso. O segundo episódio é relatado em Josué 3.1-4.18 e diz respeito à passagem do povo pelo Jordão e como miraculosamente o rio foi represado para que o povo o cruzasse. Fala de mais uma renovação do pacto de Deus com Israel. Com esses argumentos Deus espera ter lembrado o teor de suas intenções para com seu povo. Espera ter credibilidade, mesmo quando permite que aconteçam crises e dificuldades.
Nesse ponto, a voz do povo de Israel é verbalizada. E qual é o teor de seu argumento? Seria de autojustificação ou acusação? Não, o povo cogita aplacar a ira de Deus, apresentando sacrifícios. Não sacrifícios comuns, mas “supersacrifícios” com muitos carneiros e litros de azeite ou até mesmo com o sacrifício do filho primogênito. O exagero dos números torna a proposta muito suspeita. O mecanismo típico de Israel para lidar com a culpa é demonstrar merecimento de perdão através de sacrifícios. Mesmo constatando a importância do sistema de sacrifícios do templo, é tão simples assim estabelecer que toda a culpa deve ser expiada automaticamente com um sacrifício? (Convém guardar em mente essa referência – pode ser um ponto importante na reflexão mais adiante.) Até aqui o roteiro da sessão do tribunal foi o esperado. Algo, porém, muda. Em vez de sentença ou nova rodada de argumentos de cada lado, o profeta verbaliza, provavelmente em reação ao posicionamento de Israel, o que de fato Deus espera de seu povo. Há aqui uma palavra de correção em relação à típica compreensão judaica sobre como lidar com a culpa. Culpa não se combate somente com sacrifício. Com culpa se lida também com a prática da justiça, da misericórdia e da humildade. Aqui há algo novo, pelo menos com a ênfase que é dada. Aqui há algo a ser investigado teologicamente: qual a relação da culpa, do afastamento da vontade de Deus com a prática automática de sacrifícios, em vez da vivência das três atitudes básicas da fé, tal como Deus espera?
O texto termina com essa correção da compreensão da vontade de Deus. Israel não só errou ao afastar-se de Deus, como, ao voltar, fê-lo de uma maneira equivocada. Poder-se-ia dizer que o que afastou Israel de Deus continua mantendo-o longe, mesmo sob um clima de aparente retorno e arrependimento.
3. Meditação
a) A ideia do julgamento levanta uma expectativa ambígua. Para Deus, julgamentos, mesmo que parciais e em momentos de crise na relação com seu povo, são oportunidades de autoavaliação, de confronto com a sua expectativa e de arrependimento sincero, ou seja, correção de rumo. Não se trata de um jogo de faz-de-conta, de aparências ou jogos emocionais. Trata-se da negação real de nossa possibilidade humana de produzir sentido e noção do que é correto para a nossa vida. Através do arrependimento, reconhecemos que precisamos depender do perdão e da vontade de Deus. Para nós, julgamentos são oportunidades de exercitar uma justiça exterior e aparente. Trata-se do exercício humano de evidenciar exacerbadamente o erro alheio e sentenciar o culpado, ao mesmo tempo em que procuramos nos isentar de qualquer culpa ou possibilidade de erro semelhante. Quando, nesse exercício, somos desmascarados, ou seja, quando nós somos alvo do julgamento alheio, então apelamos para dois mecanismos, nossos velhos conhecidos: tornar-se vítima e oferecer um sacrifício meritório.
A exposição pública de casos de julgamento, eventos cíclicos muito explorados pela mídia, parte do pressuposto de que o povo exercita assim esse espírito de julgamento, mesmo que inconsciente. Esse processo não serve para produzir justiça ou purgar a sociedade de seus males reais. Em geral, mais atrapalha do que ajuda o sistema judiciário. Ele serve para outra coisa: a autojustificação que acalma nosso desejo humano por justiça externa. Não surpreende que Israel se sirva do mesmo expediente. Esse instinto humano é tão antigo quanto a própria humanidade. É mais fácil para Israel reforçar um discurso de culpa, que pode ser facilmente superado com um sacrifício, do que de fato confrontar-se com a vontade de Deus, relacionando-se com ele de maneira viva, expondo os valores de sua vida individual e social à apreciação do julgamento de Deus. O sistema de sacrifícios nunca foi instituído alienado da busca da compreensão da vontade de Deus. Os mandamentos, por exemplo, eram tão valiosos quanto os sacrifícios do templo.
b) A afirmação surpreendente de que Deus, na verdade, espera a prática da justiça, o amor à misericórdia, e a atitude humilde diante de Deus traduz a síntese da vontade de Deus aplicada àquele momento histórico. Com culpa não se lida ignorando a causa do erro. Com culpa se lida com a compreensão dos passos que os levaram ao erro. É o caminho de volta. Sem voltar pelo caminho do erro, iremos prosseguir errando da mesma maneira.
Esse exercício do confronto com nosso eu rebelde, através do dolorido reconhecimento de nossa arrogância e egocentrismo, é crucial. Dele faz parte admitir quanto sofrimento produzimos ao nosso redor, quantas marcas nossa culpa deixou em nosso próximo. Falando em termos de sociedade, devemos dizer que o mal enraizado na maneira de como convivemos só pode ser superado através do reconhecimento de nossa participação nele, na admissão de nossa culpa diante daqueles que sofrem as suas consequências e no pedido de perdão e no recebimento da absolvição. Sem isso, o mal somente é “domesticado”, como se não existisse ou fosse um problema “dos outros”.
A prática da justiça requer uma revisão das relações sociais, das leis, dos mecanismos de regulação econômica. Se em Israel já havia exploração, corrupção e pobreza como um sistema enraizado nas relações sociais, imaginem a dimensão desse problema hoje. Claro, é fácil escusar-se alegando a grandeza do problema, mas, assim, acabamos não resolvendo nem mesmo o mal que entranha as relações de nosso pequeno círculo de convivência. O amor à misericórdia é outro exercício fundamental ao nosso ser, possível somente pela graça de Deus. Olhar o próximo, considerando-o tão digno de cuidado, perdão e dignidade como nós, liberta-nos dessa visão tendenciosa e cheia de autopreservação que nos é característica. Andar humildemente com Deus é o começo de tudo. Os itens parecem estar em ordem de importância invertida. De uma relação saudável com Deus deduzimos uma relação saudável com nosso próximo. De uma compreensão libertada e libertadora da vida humana provém uma prática de misericórdia e justiça. Se cremos que somos amados graciosamente por Deus como criaturas pecadoras (reconhecendo que essa é a única possibilidade de sermos justificados), podemos viver a reconciliação com Deus e com o próximo. Humildade com Deus é dependência de sua graça e compromisso de amor com ele e com o próximo.
4. Imagens para a prédica
4.1 – Sugestão para o começo da prédica
A prédica poderia iniciar fazendo referência a algum julgamento que esteja tendo alguma exposição na mídia. Uma ideia poderia ser estimular, através do tom da retórica, o espírito de julgamento dos ouvintes. Durante a prédica, ao referir-se à atitude que Deus espera de nós em relação à culpa, ir frustrando essa maneira de fazer justiça para mais adiante reelaborar a postura digna, conforme
a expectativa de Deus.
4.2 – Ilustração: A cerca
Para reforçar a ideia de que o mal deixa marcas e que, por isso, não pode ser tratado de maneira leviana, sugiro usar a ilustração sobre a cerca. “Era uma vez um menininho que tinha um mau temperamento. O pai dele deu um saco de pregos a ele e disse que, para cada vez que o menino perdesse a calma, ele deveria pregar um prego na cerca. No primeiro dia, o menino pregou 17. Nas semanas seguintes, como ele aprendeu a controlar seu temperamento, o número de pregos pregados na cerca diminuiu gradativamente. Ele descobriu que era mais fácil se segurar do que pregar aqueles pregos na cerca. Finalmente, o dia chegou quando o menino não perdeu a calma mesmo. Ele então falou a seu pai sobre isso e o pai sugeriu que o menino agora tirasse da cerca um prego por cada dia que ele não perdesse a calma. Os dias passaram, e o menininho então estava finalmente pronto para dizer a seu pai que tinha retirado todos os pregos da cerca. O pai então o pegou pela mão e foram até a cerca. O pai disse: “Você fez muito bem, meu filho, mas, veja só, os buracos que restaram na cerca. A cerca nunca mais será a mesma! Quando você fala algumas coisas com raiva, elas deixam cicatrizes como essa aqui. Você pode enfiar a faca em alguém e retirá-la. Não importa quantas vezes você diz desculpe, a ferida ainda está lá. Um ferimento verbal é a mesma coisa que um ferimento físico.
5. Subsídios litúrgicos
Litania introdutória:
L: Tu não tiveste vergonha de caminhar por nossas ruas
C: Por mais que as nossas ruas estivessem cheias de ódio, violência e injustiça.
L: Tu não ignoraste as casas abandonadas
C: Por mais que elas estivessem cheias de solidão, sofrimento e conflitos.
L: Tu não desististe de amar as pessoas
C: Por mais que elas tivessem perdido o amor-próprio.
L: Tu não desanimaste de semear a paz
C: Por mais que o mundo te rejeitasse e te levasse à cruz.
L: Tu não esqueceste das crianças
C: Por mais que o mundo desconhecesse sua força.
L: Tu não desististe da tua criação,
C: Mas nos chamaste à comunhão pela fé no poder de teu Espírito.
L: Por isso nosso coração se enche de alegria quando cantamos:
Confissão de pecados:
Confesso o Teu nome e agradeço que me perdoaste dessas coisas tão terríveis. Atribuo isso à tua graça e à tua misericórdia, que derreteram o meu pecado como se fosse gelo. Também te agradeço pelos pecados que não me permitiste cometer. Confesso os pecados que cometi e os que não cometi – pois qual é o homem que, conhecendo sua própria enfermidade, pode atribuir pureza e inocência à sua própria força? Para que assim te ame menos e viva como se tivesse menos necessidade de tua graça, através da qual perdoas o pecado daqueles que se voltam a Ti? Agostinho (354-430 AD)
Oração do dia:
Vê, Senhor, eu sou um vaso vazio, que carece ser enchido. Enche-me, meu Senhor. Sou fraco na fé, fortalece-me. Sou frio no amor, aquece-me. Faze meu coração arder para que meu amor transborde e assim envolva o meu próximo. Em minha carência só há pecado; em ti, Senhor, há plenitude de justiça. Por isso permaneço contigo. A ti não preciso dar. De ti posso receber. Amém.
(Martim Lutero)
Textos complementares:
O nosso texto tem uma relação muito interessante com os textos complementares. Mateus 5.1-12 compõe a abertura do Sermão do Monte, conforme esse evangelista. As bem-aventuranças representam a síntese da visão de Jesus do que vem a ser uma vida abençoada. É do esvaziamento da visão triunfalista que resgatamos uma fé piedosa, humilde e solidária.
1 Coríntios 1.18-31 igualmente se harmoniza com nosso texto profético ao revelar a preferência de Deus pela ação humanamente identificada como loucura e fraqueza. Essa postura, quando vivenciamos a dependência de Deus, preserva-nos de uma postura de autopreservação e cheia de vaidade.
Bibliografia
DREHER, Carlos A. Miqueias 6.1-8. In: Proclamar Libertação, v. 24. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 79-87.
DEIFELT, Wanda. Miqueias 6.1-8. In: Proclamar Libertação, v. 27. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 58-64.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).