MULHERES PREGADORAS: UMA TRADIÇÃO DA IGREJA
Wanda Deifelt
A relação entre as mulheres e o Cristianismo sempre foi muito próxima. Como seguidoras de Jesus e participantes das primeiras comunidades cristãs, as mulheres estiveram presentes na Igreja desde o seu início. No entanto, o lugar que as mulheres ocuparam, os ministérios que exerceram, os testemunhos que deixaram em quase dois mil anos de história nem sempre foram valorizados. Em vinte séculos, a Igreja testemunhou mudanças históricas significativas, também com relação ao ministério feminino. No século XX, muitas igrejas protestantes históricas ordenaram mulheres ao ministério pastoral, resgatando a presença e participação das mulheres na Igreja primitiva, a concepção de batismo e ministério desenvolvida no início do Cristianismo e a proposta inclusiva de Jesus na sua pregação e atuação. Estes argumentos, amplamente desenvolvidos por teólogos e teólogas, mostraram a necessidade de revisar os fundamentos bíblicos e teológicos que impediram uma atuação mais marcante das mulheres até o século passado.
A existência de mulheres pregadoras desde o início do movimento cristão até a atualidade mostra um compromisso com a mensagem do Evangelho e o imperativo de seu anúncio. No entanto, a presença de mulheres no espaço religioso e a sua liderança nas comunidades nem sempre foi um assunto pacífico. A discussão sobre mulher e ministério não trata somente da Teologia, mas revela uma conjugação de elementos onde a cultura por vezes dita mais regras do que as próprias descobertas que se fazem no Cristianismo. Já no início do movimento cristão foi assim. Muitas normas e costumes que recebemos como verdade de fé são, de fato, uma tentativa de assimilação dos valores culturais predominantes de uma determinada época. Neste sentido, é importante resgatar a presença e atuação das mulheres como pregadoras no transcorrer da história justamente para mostrar que, em diferentes épocas e lugares, houveram mulheres e homens comprometidos com a vivência e o testemunho da mensagem cristã que não se intimidaram frente aos ditames culturais.
Naturalmente o ministério das mulheres, no Cristianismo, não se restringiu à pregação. Testemunhos bíblicos mostram que as mulheres foram ativas como missionárias, evangelistas, diáconas, profetas, etc. O próprio termo ministério é mais amplo do que a pregação, pois é, no conceito cristão, atividade desenvolvida dentro e fora da comunidade por seus membros batizados e inclui o testemunho (martyria), o serviço (diakonia) e o culto (leiturgia)1. Para desenvolver seu trabalho, a Igreja precisa designar pessoas para funções específicas, entre elas a pregação e administração dos sacramentos. Compreensões distintas acerca do ministério ordenado e da natureza do sacerdócio marcaram a história da Igreja, levando a diversas cisões. Em comum, no entanto, está a convicção de que ministério é um chamado de Deus para responder às necessidades da Igreja em todos os tempos. Dentro da concepção protestante, especialmente o sacerdócio geral dos crentes e a pregação do Evangelho assumem relevância.
As mulheres nas primeiras comunidades cristãs
Mesmo que as mulheres não fizessem parte do círculo dos doze discípulos, é notória a sua presença na companhia de Jesus. Ele inicia seu ministério público por causa de uma mulher, Maria, sua mãe, quando ela insiste que ele ajude a resolver um problema prático: a falta de vinho em uma festa (Jo 2.1-12). Jesus dialoga teologicamente e se revela como Messias a uma mulher estrangeira, uma samaritana (Jo 4.4-42). Ele aceita que mulheres, como Maria, irmã de Marta, se sentem aos seus pés, como fazem os discípulos de sua época, para escutar a boa palavra (Lc 10.38-42). Perdoa e cura mulheres, é amigo, solidário. Em nenhuma parte da Bíblia se encontra atitude ou palavra de Jesus contrária à dignidade da mulher, questionando suas capacidades ou limitando sua atuação. Neste sentido, Jesus quebra todos tabus e preconceitos de sua época: perdoa uma adúltera, deixa-se perfumar por uma mulher de reputação duvidosa, dialoga publicamente com as mulheres. A fidelidade destas mulheres é demonstrada precisamente na cruz. Enquanto os discípulos se escondem, a mãe de Jesus, a irmã de sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, Maria Madalena e o discípulo amado permanecem com Jesus até o fim (Jo 19.25-27). Jesus escolhe revelar-se como ressurreto, por primeiro, a uma mulher, chamada Maria Madalena, a quem ordena que vá e anuncie aos demais discípulos a sua ressurreição (Jo 20.1-18).2
São muitos os nomes de mulheres que se destacam no movimento cristão primitivo. Lídia, Febe, Evódia, Sínteque, Priscila, Junia, Trifena e Trifosa são algumas delas.3 A teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza faz uma reconstrução histórica e exegética do primeiro século do Cristianismo e conclui que havia um discipulado de iguais, onde mulheres e homens, movidos pela causa do Evangelho, desempenhavam liderança nas primeiras comunidades. Neste sentido, até mesmo as cartas pastorais, que em grande medida questionam a liderança de mulheres na comunidade cristã, devem ser lidas a partir de uma hermenêutica da suspeita.4 Em sua pesquisa Fiorenza mostra que os textos bíblicos misóginos não representam um consenso na Igreja primitiva, e que é necessário retornar sempre de novo à atuação de Jesus para obter critérios evangélicos que ajudam a proclamar e atualizar a mensagem bíblica. A autora também aponta para uma leitura seletiva de textos canônicos, que priorizam passagens que excluem ou desvalorizam as mulheres em detrimento de outros textos bíblicos que oferecem modelos de inclusão e participação plena de todas pessoas batizadas.
As mulheres estiveram presentes nas igrejas domésticas e também em ministérios públicos, atuando como diáconas, apóstolas, missionárias e pregadoras do Evangelho. Peter Brown, historiador do Cristianismo em seus primórdios, descobriu que os cristãos permitiam que mulheres batizassem e que reuniam homens e mulheres no mesmo recinto.5 Diferente do que era praticado nas sinagogas, onde espaços diferenciados eram reservados a homens e mulheres, a ekklesia reunia tanto homens como mulheres sob o mesmo teto. Cada homem e mulher, catecúmeno, depois de inteirar-se da fé cristã, fazia uma profissão de fé e era batizado. Deveria despir-se do velho Adão, banhar-se nas águas do batismo e ser recebido, do outro lado, com vestes alvas, simbolizando uma nova vida em Cristo. Não seria moralmente aceitável que mulheres participassem de batismos masculinos, e tampouco que homens presenciassem batismos femininos. Por isto, era praxe que mulheres batizassem outras mulheres e homens batizassem outros homens. A importância das mulheres neste rito – que é um sacramento comum a todas denominações – levou a uma mudança na sua prática quando o batismo de crianças passou a ser priorizado.
Outro sacramento, a ceia, também era oficiado por mulheres nas comunidades cristãs primitivas. O servir à mesa fazia parte da memória de Cristo, e junto com orações e com o serviço litúrgico ali celebrado, era responsabilidade da pessoa em cuja casa a comunidade se reunia.6 A multiplicidade de dons, que Paulo atesta em sua carta aos membros da comunidade de Corinto, mostra que não há hierarquia entre os determinados serviços prestados. Mas Paulo mesmo parece limitar a atividade de mulheres em algumas situações. A Bíblia também nos dá indícios de comunidades eclesiais que se reuniam sob a tutela de mulheres como Lídia e Febe. O fato de comunidades cristãs se reunirem na casa de mulheres mostra que elas eram as líderes que oficiavam os serviços ao Senhor. Se a igreja se reunia na casa delas, eram elas que, entre outras atribuições, oficiavam o sacramento da eucaristia.
No entanto, já no primeiro século houve uma tentativa de domesticação e confinamento da mensagem libertadora e afirmadora de igualdade entre homens e mulheres. Paulo, por exemplo, incluiu como verdades de fé os assim chamados códigos domésticos, ou seja, elementos da cultura da época que definiam os papéis que homens, mulheres e crianças deveriam desempenhar dentro da família, da religião e da sociedade. Os códigos domésticos estabeleciam a autoridade do pater familias, onde o homem livre, cidadão do império romano era tido como norma.7 Seu poder era exercido sobre a esposa (ou esposas), filhas e filhos, escravas e escravos e animais. O cidadão era proprietário e tinha poder de vida e morte sobre as pessoas que estavam sob sua tutela. Durante os séculos iniciais do Cristianismo, o tom libertador e afirmador de igualdade entre homens e mulheres foi sendo paulatinamente abrandado, acomodando-se aos padrões discriminatórios da cultura e da sociedade.
A exclusão gradual das mulheres
A conjunção entre o modo grego de pensar e o modo romano de administrar, adotado pela Igreja a partir do Século III, levou a uma redução dos espaços das mulheres. Já no início do terceiro século se percebe um interesse cada vez maior de elites municipais romanas (treinadas para a vida pública) pelo Cristianismo, um processo que culminou um século depois, com a conversão do imperador Constantino. Muitas comunidades viram com bons olhos esta mudança, mas ela alterou significativamente a atuação das mulheres dentro do espaço eclesial. Até então, as mulheres desenvolviam atividades dentro da Igreja e atuavam no espaço doméstico, já que os cultos eram celebrados nas próprias casas. Isto não quer dizer, porém, que o ministério das mulheres se restringia a este espaço, pois muitas atividades eram públicas. Com a mudança nas relações entre o Cristianismo e o Império, a Igreja começou a usufruir os benefícios de uma entidade pública. A grande discussão passou a ser, então, se as mulheres poderiam exercer ministério publicamente, já que o ministério eclesial se tornara um ministério público.8
Um dos principais articuladores teológicos desta transição foi Tertuliano (que viveu entre os anos 160-220). Sua visão inovadora da igreja como um corpo político — ao invés de uma associação privada ou doméstica — contrasta com sua visão conservadora com relação ao papel das mulheres. Os seus escritos ecoam o padrão cultural aristocrático romano, onde as mulheres deveriam zelar pela sua honra, recato e pudor, não assumindo papéis públicos. Em sua obra De Praescriptione Haereticorum (41.5), Tertuliano identificou como heréticas as mulheres que ensinam, participam de disputas teológicas ou retóricas, exorcizam, curam e batizam.9 A argumentação teológica para justificar a limitação nos ministérios das mulheres encontra-se em 1 Timóteo. Ele concordava, no entanto, que mulheres profetizassem. Tertuliano invocou também os argumentos da disciplina e da autoridade para coibir a falta de rigidez presente nos cultos. Ele insistia na distinção entre catecúmenos e batizados, leigos e clero, visitantes pagãos e crentes. A hierarquia era necessária para manter a disciplina na Igreja.10 Para torná-la respeitável frente ao mundo público, o papel das mulheres deveria mudar. Tertuliano reintroduziu o uso do véu, para que as mulheres preservassem sua castidade, e acusava de procaces (atrevidas, insolentes, desenfreadas) as mulheres que exerciam ministério publicamente.11 É interessante observar que as mulheres parecem usurpar o lugar público reservado, na tradição greco-romana, somente aos homens, o que faz com que sejam acusadas. A ordem pública do culto deveria excluir as mulheres.
Nos séculos seguintes, além dos escritos paulinos, utilizou-se como argumento contra a liderança de mulheres o fato de nenhuma mulher ter feito parte do grupo dos doze discípulos, isto sem falar nos argumentos cristológicos de que Jesus mesmo, tendo sido homem, demonstrava que o ser humano masculino estava mais próximo da divindade do que o ser feminino. Cria-se que havia uma hierarquia onde Deus e Jesus estavam no topo, depois vinha o homem, e por último a mulher, que estava mais próxima do diabo. Como a mulher havia sido a segunda na ordem da criação, mas a primeira a pecar, a mulher jamais poderia ser representante de Cristo na eucaristia, conforme a teologia desenvolvida por Tomas de Aquino, em sua Summa Theologica. Somente os homens poderiam ser verdadeiros representantes do ser perfeito, divino. Aqui se revela a herança deixada pela filosofia aristotélica, onde a mulher é considerada um ser defeituoso, e o homem um ser perfeito.12
Tudo isto culmina na Idade Média e, em uma única citação, pode-se resumir o estado de desprezo e asco com que as mulheres eram vistas na Igreja. O Martelo das Feiticeiras, o manual de caça às bruxas, melhor conhecido como Malleus Maleficarum, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, nos dá esta demonstração.
Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude desta falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente.13
Apesar das repetidas afirmações sobre a inferioridade das mulheres, esta opinião, felizmente, não foi consensual. Sempre houveram mulheres (e homens solidários às mulheres) que desafiaram as normas e os ensinamentos que as definiam como seres física, moral e espiritualmente inferiores. A Igreja e seus ensinamentos podiam confinar a atuação das mulheres, limitando-as ao espaço doméstico e familiar, mantendo-as em ignorância e subserviência. No entanto, muitas mulheres extrapolaram este espaço de confinamento e ousaram ter suas próprias visões acerca do mundo, da Igreja e de Deus. Muitas delas, místicas, descobriram uma fonte de espiritualidade que não se restringia aos ensinamentos da própria Igreja. Movidas pela fé, encontravam nela o fundamento para sua prática e teologia.
A presença feminina na Idade Média
Através de uma reconstrução histórica feminista tem sido possível identificar diversas mulheres que atuaram na Idade Média. Nomes como os de Heloísa (séc. XII), Hildegard de Bingen (séc. XII), Mechtild de Mardeburg (séc. XIII), Catarina de Siena (séc. XIV) e Júlia de Norwich (séc. XIV) representam a contribuição das mulheres como intelectuais, teólogas, filósofas e também pregadoras (mesmo que, em grande parte, restringissem suas atividades ao espaço dos conventos).14 Místicas, religiosas, visionárias, elas atuaram em um momento muito peculiar dentro da história da Igreja. Durante os séculos XIII e XIV, com uma renovação do fervor religioso na Europa, houve um aumento no número de mulheres em conventos e abadias. Houve também um aumento de movimentos considerados heréticos. Nestes, é importante constatar, precisamente o papel das mulheres e de pessoas leigas como pregadoras era motivo de repúdio.
Entre os grupos que aceitavam mulheres pregadoras estão os valdenses. Peter Valdes, inspirador deste movimento apostólico leigo que iniciou em 1173, decidiu seguir Mateus 19.21 literalmente. Vendeu seus bens, renunciou casa e família, e congregou ao seu redor um número expressivo de seguidores que praticavam pobreza voluntária e pregavam o Evangelho. Em 1179, no III Concílio Lateranense, um grupo de valdenses peregrinou a Roma e solicitou ao papa a aprovação para o seu modo de vida e a permissão para pregar. Seu estilo de vida foi aprovado, mas deveriam ter cautela e não pregar sem autorização. No entanto, como na concepção valdense a obediência é devida somente a Deus (Atos 5.29), a pregação continuou, inclusive com a tradução de textos da Bíblia para o vernáculo. A sua pregação e evangelização levou à condenação deste grupo, em 1184, com o decreto Ad abolendam, emitido em Verona pelo papa Lúcio III e o imperador Frederico Barbarossa. Infelizmente as fontes de informação acerca dos valdenses e argumentação teológica utilizada por este grupo para justificar mulheres como pregadoras são, em sua maioria, de seus opositores. Nestes, a acusação de heresia é a mais comum, comparando as mulheres pregadoras à Jezebel.15
O ideal de Maria – pura e silenciosa – é contraposto ao das mulheres que pregam publicamente e assumem liderança dentro das igrejas. Bernard de Fontcaude e Moneta de Cremona, dois opositores dos valdenses, invocavam os textos de I e II Timóteo para mostrar que, de acordo com a tradição paulina, as mulheres não poderiam pregar e ensinar em público. Estes autores também informam que os argumentos utilizados pelos valdenses para justificar o ministério das mulheres incluiam personagens bíblicos como Ana e Maria Madalena. Segundo os valdenses, a Bíblia mostra que Cristo mesmo enviou Maria Madalena para pregar quando lhe ordenou, em Jo 20.17: …vai para meus irmãos e dize-lhes…. Percebe-se porque a Igreja proibia a leitura da Bíblia e reservava a pregação aos seus sacerdotes: os textos bíblicos poderiam dizer algo distinto do que apregoava a Igreja. Argumentando pela autoridade do texto e pela prática institucional, onde se pressupunha a obediência à Igreja, qualquer pessoa não autorizada a pregar era taxada de herética, usurpadora do ofício sacerdotal, e deveria ser tratada como anticristo.16 A pregação por pessoas não instituídas para este ofício poderia se dar somente mediante a aprovação eclesiástica.
Outro grupo, os Cátaros, também era alvo de ataques da Igreja por aceitar mulheres sacerdotisas. Este grupo dissidente foi identificado em meados do século XII, em uma carta de Evervin de Steinfeld a Bernard de Clairvaux, onde pedia conselho sobre uma comunidade herética na região de Colônia que se identificava como a verdadeira Igreja.17 No século seguinte, seguidores deste movimento já se haviam espalhado. Os cátaros defendiam idéias docetistas, desafiavam a hierarquia papal, recusavam-se a venerar a cruz e rejeitavam todos sacramentos católicos, exceto o batismo. Ao invés de celebrar a eucaristia, faziam uma simples bênção do pão. O batismo era efetuado pela imposição de mãos e invocação ao Espírito Santo. Mulheres podiam impor as mãos e batizar. A pessoa batizada, electus, por sua vez, podia batizar outras também com imposição de mãos. Neste movimento, assim como em outros que precederam a Reforma Protestante, as mulheres eram valorizadas por sua caridade e assistência a pessoas necessitadas.
A Reforma Protestante
Durante o período da Reforma Protestante, a maternidade e o matrimônio foram considerados o lugar natural das mulheres. A experiência dos conventos, onde as mulheres tinham acesso à educação teológica e estavam livres do perigo de mortalidade materna (por ocasião do parto), foi desacreditada pelos reformadores. Dentro da tradição protestante, o ensino religioso cristão foi amplamente difundido e o papel das mulheres era considerado tão importante quanto o do homem no testemunho da fé. Porém, não havia indicação de que mulheres pudessem assumir também o sacerdócio ordenado, apesar da ênfase no sacerdócio geral. Pode-se dizer que a idéia do ministério feminino encontrou resistências em teólogos como Lutero e Calvino muito mais a partir dos seus limites históricos do que de suas convicções teológicas. A dimensão escatológica do batismo e o fato de ambos, homem e mulher, serem justificados pela graça não é traduzida em uma eclesiologia ou uma antropologia que reflita esta dinâmica. Pelo contrário, os teólogos da Reforma repetiram os argumentos da ordem natural como ordem instituída por Deus para explicar a desigualdade social entre homens e mulheres.18
Para Martin Lutero, a mulher foi criada como ajudante do homem, uma companheira em todas as coisas, particularmente para dar à luz filhos.19 É a partir deste lugar, na família, que a mulher deveria testemunhar sua fé. Lutero atribui um teor espiritual à procriação, atentando que cabia à mulher, como boa esposa e mãe, também o cuidado das crianças e a educação cristã na família.20 De acordo com Lutero, o matrimônio é a melhor das instituições divinas, uma instituição temporal (weltlich) ordenada por Deus, e que deve conter a realidade de pecado. Como imagem de Deus, homem e mulher são iguais, o que se reflete especialmente na ordem da redenção: ambos são justificados e chamados a viver em Cristo. Porém, na ordem natural, o papel da mulher corresponde à sua função materna, subordinada ao homem. Lutero não propõe uma submissão cega e unilateral das mulheres, mesmo que muitas vezes se refira a elas em linguagem crassa.21 Percebe-se, nitidamente, um descompasso entre o avanço teológico e a aquiescência à cultura da época.
Em seu texto clássico de 1521, Vom Missbrauch der Messe, Lutero faz alusão ao ministério da pregação.22 Baseando-se em Paulo, Lutero utiliza dois argumentos para delimitar este ministério. Em primeiro lugar, utiliza o argumento cultural, ou seja, que os homens teriam mais desenvoltura para expressar-se em público. Quem quer pregar deveria ter boa voz, eloqüência, memória, além de outros dons naturais. Quem não os têm deveria deixar outros assumirem a tarefa da pregação. Lutero entende que seja mais apropriado que o homem pregue, para manter o respeito e a disciplina. O segundo argumento é de ordem teológica. Paulo invoca a lei (Gênesis 3.16) que impõe submissão às mulheres, ao que Lutero naturalmente contrapõe o Evangelho e o Espírito. Lutero reconhece a existência de mulheres proeminentes na tradição bíblica e menciona, ele próprio, personagens como Miriam, Hulda, Débora e Maria – notórias pelo dom da profecia. Pelo Espírito as mulheres são chamadas e poderiam exercer autoridade sobre homens (especialmente na profecia, conforme interpretação de Joel 2.28). Mas concorda com Paulo, que a pregação feminina não seria aceitável quando na comunidade há homens para fazê-lo. No parágrafo seguinte, no entanto, Lutero deslegitima esta conclusão ao afirmar que o ofício da pregação é comum a todos cristãos, tarefa de toda pessoa batizada.
Apesar de apresentar argumentos contrários à pregação feita por mulheres, a Reforma acentuou dois aspectos importantes que são divisores de água para o reconhecimento das mulheres dentro da Igreja. O primeiro fator a resgatar é uma concepção eclesiológica distinta. Nela, o sacerdócio geral de todas pessoas crentes e batizadas é afirmada. Martin Lutero e outros reformadores se opuseram a uma visão hierárquica de Igreja, onde o papa pudesse determinar o seu futuro. A Reforma afirma que a Igreja depende de seu fundamento primeiro, que é Jesus Cristo. O sacerdócio geral dos crentes dissipa a hierarquia entre pessoas leigas e ordenadas. Há pessoas ordenadas para cumprir determinadas funções, como pregação da Palavra e administração dos sacramentos. No sacerdócio estão incluídas todas pessoas batizadas – homens e mulheres – e confessantes de sua fé cristã. Todas pessoas são igualmente santas e pecadoras (simul justus et peccator), independente de classe, raça, gênero, etc. Por isto a ordenação de mulheres nas igrejas protestantes não é simplesmente uma conseqüência do sacerdócio geral de todos crentes, mas uma coerência teológica. Na igreja cristã é inadmissível que uns queiram sobrepujar os outros. Por isto também o ministério ordenado é visto como um serviço, e não como um privilégio, que se estende tanto a homens como mulheres.
O segundo fator a resgatar é a natureza dos sacramentos, o que permitiu que mulheres tivessem acesso a administrá-los. O valor do sacramento está nele mesmo, e não na pessoa que o oficia. A santa ceia é o corpo e o sangue de Jesus Cristo, independente de quem o oficiar. Isto é assim mediante as palavras de instituição, lembradas no culto eucarístico: “este é o meu corpo, dado por vós; este é o meu sangue, derramado por vós, para remissão dos pecados.” As polêmicas maiores, dentro do Protestantismo, foram justamente sobre a natureza da ceia – e não tanto na qualidade de quem a oficia. Se vemos a ceia e seu valor para nós, ao invés de enfocarmos na pessoa que a oficia (na representatividade de Cristo, como defende a teologia tomista), podemos almejar uma postura desafiadora e ecumênica.23 No sacramento temos um sinal do Reino de Deus, e este sinal reflete justamente a superação de todas desigualdades e discriminações, como afirma o credo batismal de Gálatas 3.27-28: já não há mais judeu nem grego, escravo nem livre, homem ou mulher, pois somos um em Cristo.
Dois exemplos históricos: Marie Dentière e Rachel Speght
A história de duas mulheres, durante o período da Reforma, ajuda a entender o tipo de argumentação que as próprias mulheres depreenderam a partir das discussões teológicas da época (e não tanto o que os reformadores disseram sobre elas).24 Marie Dentière, de Genebra, Suíça, escreveu uma carta à sua amiga Margaret de Navarre, na França, em 1539, onde ela se defendia a pregação feita por mulheres. Ela usou a passagem bíblica de Mateus 25.14-30, a parábola dos talentos, como ilustração para o dom desperdiçado das mulheres se elas não pudessem pregar. Ela interpretava o termo talento (talanton) não no seu sentido estrito, como uma moeda, uma quantia em dinheiro. Na patrística da Idade Média o termo talento era usado alegoricamente como a Palavra de Deus, que era confiada aos cristãos e que não poderia ser enterrada. Marie Dentière entendeu os talentos da parábola no sentido moderno, como uma habilidade natural ou mental, como um potencial que deveria ser desenvolvido. Como ex-freira vinda de Turnai, França, ela veio a Genebra em 1533 com seu marido, Antoine Froment.
Marie Dentière escreveu uma carta intitulada ¨Em defesa das mulheres¨ e nela argumenta: ¨Mesmo que não nos permitam pregar em assembléias ou lugares públicos, não nos proibiram de escrever ou de nos aconselhar mutuamente.¨ Esta carta foi publicada em Genebra e amplamente divulgada, o que lhe causou muitas perseguições. Marie mesmo havia pregado publicamente, no convento de Saint Clare, onde teria sugerido que as irmãs abandonassem sua vida celibatária por uma vida cheia do Evangelho e das alegrias de ter marido e filhos. Aparentemente, dentro do movimento da Reforma, e entre calvinistas, nos primeiros anos em Genebra, era permitido que mulheres pregassem publicamente. Mas, pela carta de Marie, esta tolerância foi se extinguindo aos poucos, fazendo com que ela tivesse que buscar uma argumentação bíblica para justificá-la. Assim, ela arrola exemplos de mulheres na Bíblia que tiveram grande influência, e cita especialmente aquelas que foram chamadas à pregação: a mulher samaritana, que não teve vergonha de proclamar Cristo, e as mulheres que anunciaram a ressurreição de Jesus.
Uma outra mulher, Rachel Speght, calvinista, na Inglaterra, também usou a parábola dos talentos em uma obra sobre o significado da morte (Mortalities Memorandum), em 1621. Ela escolheu escrever sob a forma de poesia. Como não podia pregar em público, ela publicava seus escritos. Nesta época, a maioria das mulheres que escreviam usavam pseudônimos masculinos, para manter-se no anonimato. Rachel foi uma das primeiras mulheres a usar seu próprio nome, como autora. Ela fazia uso de um artifício literário muito comum entre os protestantes: para cada argumento que ela defendia, anotava na margem do texto passagens bíblicas que justificavam sua posição, mostrando ter competência para argumentar bíblica e teologicamente. Também ela fez uso da parábola dos talentos. Dizia Rachel Speght que as mulheres receberam, de Deus, corpo, alma e espírito. Sendo a alma o lugar onde habita a mente, a vontade e o poder, por que Deus teria dado às mulheres todos estes talentos se não fosse para usá-los? Se as mulheres enterrassem ou fizessem mau uso dos talentos dados por Deus, seriam como um servo irresponsável. Assim, o fato de mulheres pregarem não era só uma questão de possibilidade, uma oportunidade que a Igreja ou a comunidade lhes oferecia. Antes, era um compromisso das próprias mulheres com o Evangelho, e elas tinham esta responsabilidade frente ao seu Senhor. Como os servos da parábola de Mateus 25.14-30, também as mulheres teriam que responder diante de Deus pelos talentos recebidos e o modo como os administraram.
A argumentação em torno dos talentos e dos dons espirituais foi amplamente utilizada nos séculos que seguiram a Reforma, assim como haviam sido utilizados anteriormente. O Espírito podia escolher e vocacionar qualquer pessoa para falar. Mas por que demorou até o século XX para que as mulheres pudessem ser ordenadas dentro das igrejas protestantes? Merry Wiesner explica que as mulheres tendiam a argumentar individualmente, e não como coletividade feminina. Argumentavam que elas tinham condições e vontade de estar acima das mulheres comuns, ou seja, que eram exceção.25 Elas se entendiam como eleitas, escolhidas para desempenhar determinadas atividades, como a pregação da Palavra. O Espírito as escolhia independente de serem mulheres. Assim, tratava-se antes de um favor divino que as tornava excepcionais. De maneira geral, elas não questionavam toda ideologia da inferioridade da mulher. Isto só viria mais tarde e, coincidentemente, a partir do movimento secular de mulheres, não da Igreja. Somente no século XVIII algumas escritoras começariam a argumentar sobre os direitos das mulheres como grupo, e não como indivíduos isolados. Dentro da Igreja, as mulheres tenderam a solicitar espaços especiais para si, baseadas em sua própria pessoa.
À análise de Wiesner deve-se acrescentar um outro dado importante: a questão da classe social de onde provinham as mulheres que escreviam acerca de seus talentos. Que tipo de mulher tinha acesso à educação, com capacidade de publicar seus escritos e até mesmo financiá-los? Somente as mulheres de classe alta, que defendiam também os seus interesses como grupo social. De maneira geral as mulheres das classes abastadas não defendiam os interesses de todas mulheres, mas o seu interesse em tornar-se iguais aos homens, ou seja, ter os mesmos direitos (religiosos) que os membros masculinos de sua classe. Não é surpreendente, portanto, que não houvesse um questionamento à ideologia dominante, seja a da supremacia masculina, seja a da hierarquia de uma classe sobre outra.
Inovadora, no entanto, é a discussão pública acerca do ministério feminino. A vocação depende de Deus, da ação do Espírito Santo. O Espírito sopra onde quer, quando quer e não faz acepção de pessoas. Os impedimentos para a aceitação de mulheres no ministério foram superados, em grande parte, pelo argumento de que estas mulheres eram chamadas pelo Espírito Santo para dar seu testemunho. Em um texto clássico, do século XVII, intitulado Women’s Speaking Justified que circulou em muitas igrejas nos Estados Unidos, uma mulher de tradição Quaker chamada Margareth Fell argumentava que as mulheres não poderiam ser impedidas de pregar a Palavra de Deus (uma discussão importante nos círculos protestantes, devido à centralidade da Bíblia) porque elas haviam sido escolhidas, movidas a falar pelo Espírito de Deus.26 Como vozes humanas ousariam se opor à vontade de Deus, se Deus estava falando por intermédio de mulheres? Apesar de vir de um grupo considerado sectário em sua época, e muitas vezes antagônico às igrejas instituídas, o questionamento feito por Margareth Fell vale também para as igrejas protestantes. Antes de falar do ministério ordenado como capacitação para administrar os sacramentos, é necessário falar da capacidade de pregar a Palavra de Deus, o Evangelho.
A presença das mulheres no protestantismo latino-americano
Dentro do protestantismo latino-americano, a atuação das mulheres se deu principalmente como leigas e voluntárias. Tanto entre as igrejas protestantes resultantes do esforço missionário, como entre as igrejas de transplante (resultado da imigração), as mulheres tiveram papel importante. De modo geral, o seu trabalho foi, dentro do conceito de ministérios e talentos, o dom do serviço. Através de seu trabalho voluntário, as mulheres protestantes organizaram e financiaram trabalhos diaconais, assistenciais e missionários. Através de seus esforços também mantiveram paróquias, comunidades locais e sustentaram o ministério ordenado masculino. Nos séculos XIX e XX, diversas sociedades missionárias na Europa e nos Estados Unidos enviaram missionárias para o continente. Uma grande parte destas mulheres era casada com missionários, mas algumas vieram solteiras, convictas de sua contribuição especialmente na área da saúde e da educação.
É notável o papel que as esposas de reverendos e pastores desempenhavam na edificação das comunidades. No Brasil, por exemplo, o ministério de Robert R. Kalley, de tradição presbiteriana, não teria tido o mesmo êxito sem a participação de sua esposa, Sarah Poulton Kalley, cujos versos saíram publicados em 1861 na coleção Salmos e Hinos, e que marcaram a hinologia evangélica brasileira.27 Entre as comunidades luteranas, era comum que os pastores designados para acompanhar as comunidades localizadas no Brasil viessem solteiros. Somente depois de algum tempo as noivas podiam juntar-se aos futuros maridos. As esposas de pastores participavam ativamente da vida e da liderança das comunidades locais. Lamentavelmente, no entanto, a historiografia não se preocupou em resgatar a biografia de muitas destas mulheres que acompanhavam seus maridos ou que vieram sozinhas para a América Latina.
No Congresso Missionário Protestante, ocorrido no Panamá, em 1916, foram registradas 418 missionárias e trabalhadoras sociais (provenientes dos Estados Unidos e Inglaterra) que eram solteiras e viúvas. Além delas, estavam atuando também 580 esposas de missionários, que trabalhavam juntamente com os maridos.28 O rosto do protestantismo latino-americano e a atuação das mulheres dentro dele é profundamente influenciado pelo papel alocado às mulheres dentro das igrejas protestantes de sua origem. Também os valores promulgados pelas missionárias refletem os padrões culturais de seu contexto. Muitas missionárias foram comissionadas a trabalhar na América Latina não porque houvesse uma profunda convicção teológica sobre a capacidade das mulheres, mas por questões práticas. Sendo a América Latina marcada pelo Catolicismo Romano e influenciada por uma cultura machista, haveria poucas chances de missionários evangelizarem e educarem as mulheres latino-americanas. Para tal eram necessárias mulheres missionárias. As missionárias, em contrapartida, vinham ao continente movidas pelo seu fervor religioso.
O intenso trabalho missionário, no entanto, não levou à pergunta pela ordenação de mulheres nas igrejas protestantes latino-americanas. Como Maria Valéria Rezende observa, ¨a maioria esmagadora das mulheres latino-americanas ainda se encontrava limitada, quanto à sua vida concreta e a seu nível de aspirações, às tarefas tradicionais e à situação de submissão, herdadas da época colonial.¨29 A própria pregação das igrejas protestantes nem sempre motivou a uma maior autonomia e independência das mulheres. A participação da mulher na vida pública era vista como uma extensão de suas atribuições no lar, ou seja, como dona de casa, esposa e mãe. A pergunta pela ordenação só podia ser feita a partir do momento em que outras perguntas já haviam sido respondidas nas comunidades, quanto ao seu papel de leigas. Perguntas do tipo: as mulheres podem votar nas assembléias? Podem participar e eleger-se nos sínodos? Podem falar em público? Podem ser líderes e dirigir homens? Quanto mais espaço as mulheres tinham dentro das igrejas como leigas, tanto mais forte vinha a pergunta pela ordenação. Mas as respostas dadas pelas denominações dependeram em muito do tipo de constituição eclesiástica de cada igreja. Aqui, mais uma vez, reflete-se a influência das igrejas de origem: na América Latina se repetia o que era feito na Europa ou nos Estados Unidos.
Dentro das igrejas protestantes com uma constituição congregacional, onde pessoas leigas tinham uma maior participação e influência, a aceitação de mulheres como pregadoras licenciadas foi mais rápida. Em 1853 aconteceu a primeira ordenação de uma mulher, justamente entre congregacionais. Os Discípulos de Cristo, nos Estados Unidos, aceitaram ordenar uma mulher para pregar antes mesmo de aceitar mulheres como ¨elder¨. Entre as igrejas protestantes de constituição presbiteriana e episcopal, a aceitação de mulheres foi mais lenta porque a liderança deveria receber o aval de um bispo. De maneira geral, no entanto, a ordenação de mulheres foi sempre o resultado de um longo processo.
Desde os meados do século XX, especialmente a partir da década de 50, a ordenação de mulheres se tornou cada vez mais freqüente nas igrejas protestantes.30 Mas o fato de haver cada vez mais mulheres em cargos de liderança não implica que este seja um ponto pacífico, aceito pela membresia. Na América Latina, muitas igrejas protestantes simplesmente seguiram a prática que estava ocorrendo em suas igrejas de origem, e bem pouca discussão teológica sobre a ordenação de mulheres ao ministério ocorreu no continente. Algumas, como a Igreja Metodista, começaram a ordenar mulheres na América Latina já na década de 60. Outras aderiram à prática posteriormente, como a Igreja Anglicana no Brasil, que ordenou a primeira mulher nos anos 80 (1983), mas ainda assim antes da ordenação de mulheres ter sido aprovada na Inglaterra. Em alguns casos, as igrejas chegaram à conclusão que ordenar mulheres era uma questão relativamente elementar, já que suas igrejas de origem também o faziam. Os questionamentos dirigidos pelos dirigentes das igrejas eram mais eminentemente práticos do que teológicos. Pesquisas feitas em duas igrejas protestantes históricas revelam que houve pouca reflexão teológica autóctone quanto à ordenação de mulheres.31
A preocupação pela argumentação bíblica e teológica sobre os diferentes ministérios das mulheres nas igrejas se manifestou fortemente no contexto pentecostal. O II Encuentro Latinoamericano de Mujeres Pentecostales, que aconteceu em 1995, no Peru, dedicou-se a explicitar os fundamentos bíblicos e teológicos do ministério pastoral da mulher, bem como reconhecer a participação das mulheres no processo histórico do movimento pentecostal no continente. A partir dos depoimentos e também das palestras é notável o reconhecimento do Espírito Santo no ministério (ordenado ou não) das mulheres. Assim como gerações de mulheres anteriormente haviam afirmado ser chamadas pelo Espírito de Deus para exercerem sua vocação ministerial, as pastoras pentecostais afirmaram e reconheceram os dons dados a elas e suas irmãs.
Esta breve trajetória histórica demonstra a riqueza de elementos teológicos presentes na Igreja que reforçam a presença das mulheres não só como membros batizados, mas também como pessoas chamadas à liderança em suas comunidades. O ministério da pregação, aqui abordado, representa um aspecto importante da presença e atuação feminina, mas certamente não representa a totalidade de experiências que necessitam ser resgatadas. Precisamos urgentemente reconstruir nossa memória como mulheres nas igrejas da América Latina. Ainda há pouco material publicado, especialmente em um setor que cresce, que são as igrejas pentecostais. Necessitamos de pesquisa qualificada sobre a atuação de mulheres leigas, que valorizem o seu trabalho no cotidiano das comunidades. Resgatar a presença das mulheres, como parte de uma historiografia feminista da história da Igreja, é reconhecer todos ministérios, onde cada qual, com seus dons, pode participar plenamente da Igreja. Assim, a Igreja será verdadeiramente o corpo de Cristo – a comunhão das pessoas santas – onde a inclusão é plena, onde se afirma a dignidade de todas, e se anuncia a cidadania do Reino de Deus assim como Jesus o pregou.
Notas:
1. Para um aprofundamento sobre ministério veja BRAND, Eugene L. Vocation and Ministry. In: KANYORO, Musimbi R.A. In search of a round table. Gender, theology and church leadership. Genebra : Conselho Mundial de Igrejas, 1997, p. 12-27.
2. A pesquisa bíblica sobre a atitude de Jesus para com as mulheres é vasta. Como exemplos veja REIMER, Ivoni R. Vida de mulheres na sociedade e na Igreja, São Paulo: Paulinas, 1995; SCHOTTROFF, Luise. Mulheres no Novo Testamento: exegese numa perspectiva feminista, São Paulo: Paulinas, 1995; TEPEDINO, Ana M. As discípulas de Jesus, Petrópolis: Vozes, 1990.
3. Romanos 16 oferece uma lista de nomes de mulheres e seus respectivos cargos ou funções no primeiro século.
4. FIORENZA, Elisabeth Schuessler. Bread ot stone. The challenge of feminist biblical interpretation. Boston : Beacon Press, 1984, p. 15.
5. BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo, Rio de Janeiro : Zahar, 1990.
6. Para um estudo mais detalhado da dinâmica participação das mulheres na Igreja primitiva veja STRÖHER, Marga J. A igreja na casa dela, São Leopoldo: IEPG, 1996.
7. RUETHER, Rosemary R. Patriarcalismo y espiritualidad, Vida y Pensamiento, v.14, n.1, p.34.
8. TORJESEN, Karen Jo. When women were priests: women´s leadership in the early church and the scandal of their subordination in the rise of Christianity. New York : Harper San Francisco, 1995, p. 156-157. Torjesen observa que a liderança deixou de ser um ministério para se tornar governança, e a figura do bispo se tornou sinônimo de monarquia, como a de um senhor que exerce poder e influência sobre seus súditos. A autora também constata a mudança arquitetônica nos templos, onde as primeiras basílicas construídas seguiram o modelo das basílicas romanas (edifício público onde funcionavam os tribunais e os cidadãos públicos se reuniam para tratar de negócios).
9. TORJESEN, Karen Jo, p. 159.
10. Tertuliano toma o termo disciplina do exército romano, onde a unidade em meio à diversidade étnica dos soldados é mantida submetendo-se à rigorosa disciplina militar, seguindo uma ordem de comando explícita. Tertuliano concebia a igreja como análoga à sociedade romana, dividida em classes ou grupos de acordo com sua honra e autoridade. O clero (ordo ecclesiasticus) era paralelo ao senado (ordo senatorius) e os leigos equivaliam às classes plebéias (ordo plebius).
11. TORJESEN, Karen Jo, p. 165.
12. TAVARD, George H. Woman in Christian Tradition. Notre Dame : University of Notre Dame Press, 1973, p. 125-126.
13. KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Malleus Maleficarum, Rio de Janeiro : Rosa dos Tempos, 1993, p. 116.
14. WILSON, Katharina M. (ed.) Medieval women writers. Athens, GA : University of Georgia Press, 1984.
15. KIENZLE, Beverly Mayne. The Prostitute-Preacher. Patterns of Polemic against Medieval Waldensian Women Preachers. In: KIENZLE, Beverly M. & WALKER, Pamela J. Women Preachers and Prophets through Two Millennia of Christianity. Berkeley : University of California Press,1998, p. 99-100.
16. KIENZLE, Beverly Mayne, p. 104.
17. BRENON, Anne. The voice of the Good Women. An essay on the Pastoral and Sacerdotal Role of Women in the Cathar Church. In: KIENZLE, Beverly M. & WALKER, Pamela J. Women Preachers and Prophets through Two Millennia of Christianity. Berkeley : University of California Press, 1998, p . 114-118.
18. TAVARD, George. Woman in Christian Tradition. Notre Dame : University of Notre Dame Pres, 1973, p.172-177. Tavard compara os escritos de Lutero e Calvino sobre as mulheres, especialmente em seus comentários sobre Gênesis. Conclui que Lutero reduz a mulher à função materno-reprodutora, instituída por vontade divina. Lutero demonstra ser fruto de seu tempo quando afirma a inferioridade natural das mulheres (herança de Aristóteles), que o casamento é a solução para a concupiscência (retomando idéias de Agostinho), e enfatiza a arbitrariedade da ação de Deus (um dos temas da escola nominalista). Calvino, em contrapartida, apesar de insistir na subserviência da mulher, defende uma relação de companheirismo entre ambos, apontando que o homem, sem a mulher, não existiria.
19. LUTERO, Martinho. Da vida matrimonial, Obras selecionas. Vol 5, São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 160ss.
20. DREHER, Luís H. Da letra às ordens: teologia e ética do matrimônio em Lutero. Estudos Teológicos, vol. 38, n. 3. P. 228-229.
21. SMITH, Preserved e GALLINGER, Herbert P. Conversations with Luther, New Canaan: Keats, 1979, p. 54: Deus negou às mulheres toda autoridade quanto a questões públicas, como podemos constatar, pois elas não possuem força suficiente para a função, seja no Estado ou na Igreja.
22. WA 8, p. 498.
23. Um passo importante nesta direção é apresentado no documento elaborado pela Comissão de Fé e Ordem, do Conselho Mundial de Igrejas, em 1982, Batismo, Eucaristia, Ministério: “Onde Cristo está presente, as barreiras humanas são superadas. A Igreja é chamada a a transmitir ao mundo a imagem de uma nova humanidade. Em Cristo não há homem ou mulher (Gálatas 3.28). Tanto mulheres como homens precisam descobrir juntos suas contribuições ao serviço de Cristo na Igreja. A Igreja precisa descobrir quais ministérios podem ser assumidos por mulheres tanto como por homens. Uma compreensão mais profunda de ministério, que reflete a interdependência de homens e mulheres precisa se manifestar na vida da Igreja.” (BEM, M 18)
24. Os dados referentes a Marie Dentière e Rachel Speght são obtidos de THYSELL, Carol. Unearthing the treasure, unknitting the napkin. The parable of the talents as a justification for early modern women’s preaching and prophesying. Journal of Feminist Studies in Religion. Vol 15, n. 1, Spring 1999, p. 7-20.
25. WIESNER, Merry. Women’s defense of their public role. In: ROSE, Mary Beth (ed). Women in the Middle Ages and the Renaissance: literary and historical perspectives, Syracuse: Syracuse University Press, 1986, p. 1-27.
26. FELL, Margareth. Women’s speaking justified, Los Angeles : Augustan Reprint Society, 1979.
27. CEHILA, História Geral da Igreja na América Latina. Tomo II/2. História da Igreja no Brasil – Segunda Época. Petrópolis : Vozes, 1980, p. 242-244.
28. REZENDE, Maria Valéria. O feminismo do movimento missionário protestante na América Latina. In: MARCILIO, Maria Luiza (ed). A mulher pobre na história da igreja latino-americana, São Paulo : Paulinas, 1984, p. 36.
29. ID., ibid., p. 39-40.
30. Para um detalhamento das datas em que as igrejas passaram a ordenar mulheres, veja o artigo de ZIKMUND, Barbara B. Winning Ordination for Women in Mainstream Protestan Churches. In: RUETHER, Rosemary R. & KELLER, Rosemary S. (eds). Women & Religion in America, vol 3. San Francisco : Harper & Row, 1986. p. 339-383.
31. Veja duas dissertações de Mestrado: CAVALHEIRO, Jussara R. O ministério pastoral feminino na Igreja Metodista no Brasil. São Bernardo do Campo : Instituo Metodista de Ensino Superior, 1996 e FREIBERG, Maristela L. Retratos do processo de formação e atuação das pastoras da IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. São Leopoldo: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, 1997.
32. Lydiette G. MORA, ed. La unción del Espíritu Santo en el ministerio pastoral de la mujer (II Encuentro Latinoamericano de Mujeres Pentecostales), Cartago, Costa Rica: Coordinación Programa de Mujeres/Comisión Evangélica Pentecostal Latinoamericana, 1995.
Texto publicado: DEIFELT, Wanda. Mulheres pregadoras: uma tradição da Igreja. Theophilos : Revista de Teologia e Filosofia. Canoas, Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Vol. 1, n. 2 (2001), p. 353-372.