Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Números 11.24-30
Leituras: João 20.19-23 e 1 Coríntios 12.3b-13
Autoria: Roger Marcel Wanke
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 04/06/2017
1. Introdução
Em tempos pós-modernos, a igreja de Jesus Cristo deve ser exortada a viver a partir do Espírito Santo e não a partir do espírito da época. Aqui reside a relevância de um culto de Pentecostes ontem e hoje. O diálogo com o espírito da época é necessário e saudável para a igreja, para que ela possa conhecer o contexto no qual ela deve estar inserida. Mas não é o contexto, muito menos o espírito da época que deve determinar o agir, a palavra e a relevância da igreja. A igreja é de Jesus Cristo. Ele é do seu Senhor. Por isso somente a voz de seu Espírito Santo tem permissão para falar à igreja e nortear sua atuação no mundo, independente do que diz o espírito da época em que se vive. Conforme o relato bíblico, o Espírito Santo é a presença do próprio Deus, que age no seu povo e no mundo, o qual criou. A ênfase dos textos previstos para o culto de Pentecostes deste ano aponta para a presença e para a ação do Espírito Santo dentro da comunidade. Ao soprar seu Espírito, Deus capacita sua comunidade a assumir sua tarefa missionária, catequética, diaconal e pastoral, não apenas para ministros ordenados, mas sobre toda a sua comunidade.
O texto previsto para a pregação do culto de Pentecostes deste ano encontra-se no livro de Números 11.24-30. Como veremos a seguir, a ênfase do texto está na dádiva do Espírito Santo sobre os anciãos de Israel, capacitando-os a ser auxiliadores de Moisés na condução do povo de Israel durante sua caminhada pelo deserto até a Terra Prometida. Já os textos previstos como leitura bíblica são do Novo Testamento. O primeiro, João 20.19-23, está inserido no contexto do domingo da Páscoa. Ele relata a aparição do Cristo ressurreto a discípulos, que estavam trancafiados em uma casa com medo dos judeus. Após desejar a paz aos seus discípulos e dizer-lhes que veio para enviá-los, pelo fato do próprio Pai tê-lo enviado (missio Dei), Jesus sopra-lhes o Espírito Santo, dizendo: recebei o Espírito Santo (v. 22). Diferente da tradição lucana, que compreende o sopro do Espírito Santo no dia de Pentecostes [50 dias após a Páscoa], João localiza-o no próprio dia da Páscoa. A ênfase de João em seu relato não está na cronologia, mas nas implicações de receber o sopro do Espírito Santo. Tendo como ponto de partida o “discurso de despedida” (Jo 13-17), no qual Jesus anuncia a vinda do “Consolador”, referindo-se ao Espírito Santo, João aponta para a capacita- ção que os discípulos vão receber do próprio Cristo ressurreto ao soprar sobre eles o Espírito Santo. Para João, o Espírito Santo é a presença do próprio Cristo ressurreto em sua comunidade, consolando-os e fortificando-os e certificando-os da paz com Deus diante das aflições deste mundo (Jo 16.33). O Espírito Santo é aquele que convence do pecado, da justiça e do juízo (Jo 14.7-11). Ele os guiará à verdade e anunciará todas as coisas que hão de vir (Jo 16.13-15). Jesus não deixa sua igreja órfã ou à mercê deste mundo. Mas prometeu estar presente nela por meio do seu Espírito Santo. Assim fica evidente que a igreja só poderá cumprir sua função e tarefa no mundo se o Espírito Santo habitar no meio de sua comunidade, consolando-a e capacitando-a a fazer o que Jesus Cristo fez e anunciou. O segundo texto previsto é do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 12.3b-13. No contexto conturbado da comunidade de Corinto, Paulo exorta-os a olhar para a comunidade da forma como Deus a pensou, ou seja, como um corpo vivo, em que há vários membros com seus dons, presenteados pelo Espírito Santo, a fim de edificar a comunidade. É o Espírito Santo que cria a igreja e capacita-a para seu serviço dentro dela e também no mundo. Em Corinto, parece haver uma concorrência entre os membros no que se refere aos melhores dons, e esses acabam esquecendo que o principal de todos os dons é o amor (cap. 13). Esse texto deixa claro que, infelizmente, também é possível haver dificuldades de relacionamento dentro da comunidade cristã quando o assunto são os dons do Espírito Santo. Alguns acham que são melhores do que outros. Outros acham que são incapazes se comparados com alguns. Alguns acham que precisam fazer tudo sozinho no reino de Deus. Outros acham que não precisam fazer nada.
Em suma, a relação entre os dois textos previstos como leitura bíblica com o texto da prédica está em apontar para a realidade da missio Dei, que agora ganha dimensões comunitárias, ou seja, Deus enviou Jesus, que enviou (soprou) o Espírito Santo sobre os discípulos, e esses agora são enviados a criar e edificar comunidades. Deus desce do céu (nuvem) para partilhar e conceder dons a seu povo (Nm 11.25). Na comunidade, o Espírito Santo age concedendo a palavra de Deus e os dons para o serviço e para a edificação da comunidade. Portanto não é possível ser cristão sem ser tocado, transformado, convencido e capacitado pelo Espírito Santo tanto para crer como para servir. A perícope indicada já foi trabalhada em duas contribuições anteriores de Proclamar Libertação. Ambas também estão previstas para o Domingo de Pentecostes.
2. Exegese
O texto de Números 11.24-30 está inserido num grande bloco chamado na pesquisa de perícope do Sinai [Êxodo 19 – Números 10], que narra os eventos que aconteceram ao pé do monte Sinai. Entre eles destacam-se a dádiva da Lei (Decálogo e outros mandamentos – Êx 20-21), as orientações relativas à construção do tabernáculo (Êx 25-31), o bezerro de ouro e a renovação da aliança (Êx 32-34), leis cultuais e relacionadas aos sacrifícios (Êx 35-40; Lv 1-16), a Lei de Santidade (Lv 17-26). É muito curioso perceber que a moldura desse bloco (o que vem antes e o que vem logo depois) narra os mesmos assuntos entre si: a murmuração do povo de Israel no deserto e a escolha de anciãos para auxiliar Moisés na condução e orientação do povo. A primeira moldura está em Êxodo 15-18, na qual o povo de Israel reclama das águas amargas e da falta de alimento. Deus, então, envia-lhes o maná e codornizes para alimentá-los e faz com que águas amargas se tornem água doce (potável) para saciar sua sede. Em Êxodo 18, Moisés recebe uma visita inusitada de seu sogro, Jetro, que fica horrorizado com a forma como Moisés orienta o povo: “Não é bom o que fazes. Sem dúvida, desfalecerás, tanto tu como este povo que está contigo; pois isto é pesado demais para ti; tu só não o podes fazer” (Êx 18.17-18). Diante disso Jetro sugere a Moisés escolher pessoas capazes entre o povo para auxiliá-lo. A segunda moldura repete esse mesmo enredo em Números 11. Após partir do Sinai, finalmente rumo à Terra Prometida, o povo de Israel começa a murmurar novamente: “Quem nos dará carne a comer?” (Nm 11.4). A saudade dos peixes gratuitos do Egito, dos pepinos e cebolas, dos melões e dos alhos silvestres (v. 5) fazia-os embrulhar o estômago só em pensar que tinham somente o maná para comer. E então começaram a chorar e a lamentar diante de Moisés. Quando finalmente tudo parecia estar certo para seguir a viagem sem problemas, a fé e a motivação dos israelitas são bombardeadas pelo ronco de seus estômagos, pela ingratidão em seus cora- ções e rebeldia no seu relacionamento com Deus (em hebraico: amargura, como paralelo às águas amargas).
Diante dessa situação, a ira de Deus acende-se contra os israelitas (Nm 11.1-3). E não era por menos! Deus até então estava sustentando-os, não apenas com sua presença e seu guiar no meio do deserto, mas também com o sustento físico, dando-lhes alimento e água e tudo o que lhes era necessário para viver. Moisés, como líder do povo, cumpre sua tarefa. Ele se assenta à porta de sua tenda (v. 10) e ouve um por um (por famílias) chorar diante dele, reclamando da situação. O texto diz que mais uma vez a ira do Senhor se acende. Mas dessa vez também Moisés fica irado. O fato de Deus estar novamente irado com seu povo “pareceu mal aos olhos de Moisés” (v. 10). Por isso Moisés ora a Deus e questiona seu agir, questiona seu chamado, questiona o fato de Deus ter escolhido o povo de Israel, de ter com ele um plano e de usar o próprio Moisés como líder desse povo. Moisés diz a Deus que sozinho não tem condições de continuar guiando esse povo por ser um fardo pesado demais. Sua oração termina com um pedido de morte: “Mata-me de uma vez!” (v. 15).
O contexto da perícope deixa o cenário da nossa perícope bem claro diante dos nossos olhos: vemos um povo ingrato, rebelde e manhoso, vemos um líder cansado, solitário e decepcionado com Deus. Vemos também um Deus cheio de planos e promessas, animado com a condução de seu povo até a Terra Prometida, mas irado com esse mesmo povo por conta de sua falta de fé, confiança e perseverança. Contudo Deus, por sua vez, não deixa essa situação ficar desse jeito. O povo está sem perspectivas. Moisés está sem perspectivas. Mas Deus tem perspectivas! Deus sabe do que sua comunidade precisa. O povo quer carne, mas Deus envia e dá-lhe seu Espírito. O povo quer algo visível e palpável. Deus, porém, dá-lhe algo invisível: seu Espírito. Moisés quer abdicar da sua função. Prefere a morte a viver. Deus, porém, concede-lhe auxiliadores e dá aos anciãos o Espírito que concede vida e força para viver e servir. Assim chegamos à perícope proposta para a prédica.
O texto não apresenta nenhuma dificuldade lexical ou gramatical. As poucas chamadas textuais do aparato crítico não alteram o sentido da perícope. Muitas delas apontam apenas para mudanças em comparação ao Pentateuco Samaritano. Da mesma forma, as pequenas variações nas traduções em português apenas ajudam a compreender melhor o texto em si. Uma única informação interessante é o fato da Nova Tradução da Linguagem de Hoje traduzir um pouco diferente no v. 29 a reação de Moisés à sugestão dada por Josué de repreender Eldade e Medade por profetizar no arraial e não na tenda. Ela traduz: “Por que você está preocupado com os meus direitos, quando eu é que deveria estar?”. Todas as outras versões portuguesas usam o termo ciúmes. Ainda assim, o sentido permanece o mesmo. A perícope pode ser dividida e compreendida da seguinte maneira:
a) Moisés obedece ao Senhor e reúne-se com os anciãos (v. 24)
Após a oração de Moisés a Deus pedindo para morrer diante dessa situação tão lastimável dos israelitas, Deus vem a seu encontro e orienta-o no que deve fazer. O v. 24 inicia falando que Moisés obedece às ordens dadas por Deus. Ele vai até o local onde está o tabernáculo (tenda), convoca setenta anciãos e juntos colocam-se na presença do Senhor, esperando o agir de Deus. Esse é o lugar do culto. Ali Deus vai revelar-se ao povo. Ali ele vai ajudar Moisés e seu povo. O texto deixa algo de suspense no ar, embora Moisés saiba bem ao certo o que Deus vai fazer, pois foi instruído por ele (v. 16-23). Os anciãos não são apenas os mais idosos dentre o povo, mas também aqueles que assumem funções dentro do povo.
b) Deus desce e sopra seu espírito sobre os anciãos (v. 25-26)
Deus desce da nuvem onde está e tira uma parte do Espírito Santo que ele havia concedido a Moisés e concede aos setenta anciãos do povo de Israel (cf. Gn 46.27; Lc 10.1,17). Isso não significa que Moisés perde uma parte do Espírito de Deus ou que ele fica enfraquecido por isso. Pelo contrário, o Espírito Santo permanece agindo na vida de Moisés. Pode-se entender essa atitude de Deus de forma pedagógica a Moisés. Não apenas o fardo e o peso do ministério são tirados de Moisés, mas também eles são tirados e compartilhados quando o Espírito que é dado também é compartilhado. O Espírito Santo é de Deus e não de Moisés. O texto continua dizendo que o Espírito repousou sobre eles e que imediatamente os anciãos começaram a profetizar. O dom de profecia é na Bíblia um fenômeno visível do agir do Espírito Santo (cf. 1Sm 10.6-13; 19.20-24; 1Rs 22.6,10-12; Jl 2.28; At 2.4; 1Co 12.10). Muitos estudiosos associam esse dom aqui a um estado de êxtase (cf. 1Co 12-14). O texto não fala a razão de Eldade e Medade não estarem juntos, ao redor da tenda, com os demais anciãos. Fato é que ambos não são excluídos de receber o dom do Espírito e de apresentar os sinais dessa dádiva, descritos no texto como o dom da profecia. O que se pode depreender disso é que o Espírito Santo age na comunidade lá onde há culto (na tenda) e lá onde se vive (no arraial).
c) Reações distintas diante do Espírito que sopra onde e como quer (v. 27-28)
A concessão do Espírito Santo aos anciãos foi um fenômeno notório no meio do povo de Israel e causou reações distintas. Um jovem anônimo, ao ver Eldade e Medade profetizando no meio do arraial, corre em direção a Moisés para informá-lo do ocorrido. O texto não deixa claro se o fato causa indignação ou espanto. O que fica evidente é que isso não seria algo normal, e por isso Moisés deveria ficar sabendo. Já no v. 28, vemos a reação de Josué, filho de Num (cf. Êx 17.1-16; Dt 31.1-8; Js 1.1), que assume uma reação negativa diante do fenômeno da profecia, ocorrida no meio do arraial. Para Josué, os dois anciãos profetas deveriam ser repreendidos por Moisés. Também aqui o texto não dá maiores explicações. A razão poderia ser o fato de eles terem desobedecido à ordem de Moisés de estar todos ao redor da tenda. Mas também isso seria especulativo, pois o texto não os recrimina por estar no arraial. Moisés e Josué permanecem como espectadores do agir de Deus por meio da dádiva do Espírito Santo aos anciãos. Moisés agora pode estar mais tranquilo e aliviado. Deus capacitou setenta anciãos para auxiliá-lo. Também Josué, um dia, vai colher os frutos dessa dádiva, quando ele deixar de ser o servidor de Moisés e passar a ser o substituto de Moisés, escolhido por Deus e aprovado pelos anciãos para liderar o povo e entrar com ele na Terra Prometida (cf. Js 1.1-18; 23.1-24.25).
d) A visão de ministério de Moisés (v. 29-30)
Moisés reage de forma inusitada ao pedido de Josué: “Tu tens ciúmes por mim?”. É muito interessante essa resposta de Moisés. De fato, ele poderia ter ficado com ciúmes. Afinal, Deus chamou-o para libertar o povo de Israel da escravidão do Egito e capacitou-o o tempo todo para liderar esse povo. Moisés poderia pensar que era o único capaz de fazer tal obra e pensar que teria sozinho força para isso. Mas, pelo contrário, Moisés aprova a profecia de Eldade e Medade no arraial ao dizer a Josué: “Tomara todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhe desse o seu Espírito!” (v. 29). Moisés deixa claro que o dom do Espírito Santo não era algo somente dado a ele como líder do povo de Deus. Seu desejo, talvez dito até por desabafo, era que todos pudessem receber o Espírito de Deus. O que Moisés expressa aqui se torna realidade com a profecia de Joel 2 e principalmente com o derramamento do Espírito Santo sobre os discípulos em Atos 2, no dia de Pentecostes, inaugurando assim a atuação da igreja no mundo.
3. Meditação
Ao meditar sobre esse texto, fazemo-nos algumas perguntas: Como pode o povo de Deus reclamar tanto e ser tão ingrato a Deus? Esse é o povo de Deus, sua comunidade! Como pode? Como pode um líder, servo de Deus, como Moisés ter tanta dificuldade para aprender a delegar funções? A visita de Jetro não adiantou nada? Por que vemo-lo novamente cansado e sobrecarregado, querendo “carregar o piano” sozinho? Como pode um servo do Senhor pedir para morrer por não dar conta do seu ministério? Por mais que todas essas perguntas sejam legítimas e inusitadas, elas podem ser percebidas também hoje na comunidade cristã e no ministério cristão.
Por isso não é difícil contextualizar a perícope de Números 11.24-30. O texto fala de realidades bem comuns hoje no contexto eclesial. A rebeldia do povo de Deus hoje, a sobrecarga, bem como o cansaço ministerial são notórios. Mas também a iniciativa de Deus de vir ao encontro de seu povo ingrato, que possui dura cerviz, bem como de vir ao encontro de seus servos cansados e sobrecarregados é realidade visível hoje.
O escopo do texto deixa claro que o agir do Espírito Santo não apenas gera a fé, mas também o serviço. Esse serviço não é dado por Deus como fardo, mas como bênção, se for entendido do jeito de Deus. Por isso ele é chamado de ministério. O texto aponta não para a inércia na comunidade. Problemas, dificuldades e desafios sempre vão existir. Deus chama, capacita e envia pessoas para justamente não haver sobrecarga ao lidar com situações difíceis no seio da comunidade. Talvez nossa maior vontade seja que não haja carga alguma para carregar no ministério. Talvez desejamos ser o centro das atenções no ministério.
O texto parece mostrar, por um lado, que Moisés não se convence de que a forma como Deus resolve o problema será realmente acertada. Deus desafia-o sarcasticamente. Leia o v. 23! Por outro lado, parece que Josué entende que Moisés estaria com ciúmes, já que agora não apenas ele, mas setenta anciãos receberam o poder do Espírito de Deus e que dois deles estão meio sozinhos profetizando pelo arraial. Como lidamos com a concorrência? Ou melhor, como lidamos com o ministério compartilhado? Não somos os únicos que “profetizamos”. O Espírito de Deus sopra também em outras igrejas. Com isso não se quer defender um carismatismo exacerbado. Fato é que a igreja de Jesus Cristo é sim carismática, no sentido bíblico do termo, ou deixa de ser igreja.
Isso significa que na igreja de Jesus Cristo não há espaço para um pastorcentrismo, ainda bastante presente em nossas comunidades. As razões para isso partem tanto de ministros como também dos próprios membros. Ministros podem pensar que, por conta da ordenação, são os únicos chamados, capacitados e autorizados para exercer o ministério (cf. artigo XIV da Confissão de Augsburgo). Já os membros podem pensar que não precisam envolver-se no trabalho da comunidade, porque pagam um ministro para fazer esse trabalho. Ministros podem reagir com ciúmes de membros que exercem os dons na comunidade. Ministros podem querer impedir e repreender o sacerdócio geral por medo de perder espaço ou por excesso de zelo confessional. Membros podem esquivar-se de seu chamado e de seu serviço dentro da comunidade.
Há também outro fenômeno perceptível, chamado por alguns de leigocentrismo. Tal visão transforma ministros em funcionários da igreja, que precisam apresentar níveis de qualidade (Pastor ISO 9001), que, além de destruir sua auto-estima, sobrecarregam-no em demasiado. O texto deixa-nos bem claro o caminho do equilíbrio diante de tal situação.
De qualquer forma, falar do Espírito Santo também é polêmico no con- texto eclesial brasileiro. Mas isso não deveria ser empecilho. O Espírito Santo continua agindo na igreja, continua chamando, capacitando com seus dons e enviando pessoas para a edificação da comunidade. Se, por um lado, esse texto é uma exortação clara à edificação da comunidade por meio dos dons do Espírito Santo, ele também é um bálsamo para todos os ministros que andam assim como Moisés, cansados e sobrecarregados, sem perspectivas para o ministério, em vias de pendurar o talar.
O Senhor tem perspectivas para sua igreja. Ele respondeu à oração de Moi- sés não como ele esperava, mas como ele precisava. Do que nós precisamos hoje em nosso ministério e em nossas comunidades?
Considerando que estamos em plena época do jubileu dos 500 anos da Reforma, cabe aqui ainda lembrar que Lutero se ocupou com esse assunto também no contexto da Reforma. Tanto a pneumatologia como a edificação da comunidade são temas centrais da teologia de Lutero. Sobre isso indico abaixo literatura para aprofundamento. Cito, a título de sugestão para meditação, palavras do próprio Lutero no Catecismo Menor ao explicar o terceiro artigo do Credo Apostólico: “Creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a Ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo Evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé […]”. Ser chamado pela fé e servir pelo amor é obra única e exclusiva do Espírito Santo em nossa vida. Moisés é testemunha disso.
A perícope parte de uma realidade sem perspectivas (o povo de Israel e Moisés) e culmina no agir surpreendente do Espírito Santo. Assim deveria ser a direção da pregação.
Tema da pregação: Deus capacita sua igreja
1. O Senhor sabe do que sua comunidade necessita
1.1 Há demandas e mais demandas na comunidade
1.2 Moisés sente-se sozinho e sobrecarregado
1.3 Deus chama pessoas para ajudá-lo
2. O Senhor concede seu Espírito Santo
1.4 Deus envia o Espírito Santo
1.5 O Espírito Santo habita (repousa) no meio do povo de Deus
1.6 O Espírito Santo age no meio do povo de Deus
3. O Senhor capacita com seus dons
1.7 Os dons do Espírito Santo são partilhados na comunidade
1.8 Os dons do Espírito Santo servem para edificar a comunidade
1.9 Os dons do Espírito Santo impulsionam à missão da comunidade
4. Imagens para a prédica
O futebol pode auxiliar muito bem a exemplificar a perícope. Conta-se que, certa vez, um técnico de futebol foi entrevistado por um repórter de uma revista esportiva muito famosa, que tinha interesse em saber qual seria a grande contribui- ção do futebol para a saúde e para manter a forma física. Ao ser perguntado pelo repórter, o técnico responde: “Em minha opinião, o futebol não ajuda em nada para manter a forma física, muito menos ajuda na saúde”. O repórter, espantado, indagou: “Mas como? Que explicação você daria para essa afirmação?”. O técnico prosseguiu convicto de sua afirmação, dizendo: “Num jogo de futebol, encontramos 22 atletas correndo 90 minutos de um lado para o outro num campo de futebol atrás de uma bola sem poder descansar. Eles vivem sob a pressão de uma grande multidão, mais de 50 mil, que estão meramente sentados nas arquibancadas sem fazer um esforço sequer para que o jogo tenha um vencedor”. Esse exemplo, por mais simples que possa parecer, ajuda-nos a entender o que muitas vezes acontece na igreja cristã. Poucos fazem todo o trabalho, que são alvo de críticas daqueles que não participam da vida da comunidade, que não se envolvem nas atividades, não servem com seus dons. A igreja sofre com as expectativas e críticas de muitos e padece com a falta de participação de muitos. Na igreja de Jesus, não há arquibancadas nem banco de reservas. Todos são chamados a jogar.
Além desse pequeno exemplo, e como estamos no ano do jubileu da Refor- ma, nada melhor do quer ilustrar a pregação para o culto de Pentecostes com informações, textos, imagens de Lutero e da confessionalidade luterana. O texto de Números 11.24-30 aponta para a realidade do sacerdócio geral de todos os crentes. Esse tema foi desenvolvido bastante por Lutero em alguns de seus escritos. A título de sugestão e de informação, deixo abaixo algumas referências bibliográficas sobre o tema do Espírito Santo e do sacerdócio na perspectiva de Lutero e da confessionalidade luterana, que podem inspirar nesse sentido a prédica:
a) LUTERO, Martim. Catecismo Maior. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 82-88.
b) LUTERO, Martim. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1989. v. 2, p. 277-340 [especificamente p. 282-286].
c) LUTERO, Martim. Dos Concílios e da Igreja. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1992. v. 3, p. 404-408; 413-420.
d) SPENER, Phillip Jakob. Mudança para o futuro – Pia Desideria. Curitiba: Encontrão; São Bernardo do Campo: IEPG, 1996. p. 90-94.
e) BAYER, Oswald. A Teologia de Martim Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2007. p. 173-184; 185-203.
f) LOHSE, Bernhard. Luthers Theologie in ihrer historischen Entwicklung und in ihrem systematischen Zusammenhang. Göttingen: V&R, 1995. p. 248- 255; 294-315.
g) WACHHOLZ, Wilhelm. História e Teologia da Reforma. Introdução. São Leopoldo: Sinodal, 2010. p. 127-131.
h) DREHER, Martin. Igreja, Ministério, Chamado e Ordenação. Estudos a partir de Lutero. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2011.
i) VOIGT, Emilio. Quem somos nós? Princípios da Fé Cristã e da Confessionalidade Luterana. São Leopoldo: Sinodal, 2014. p. 51-57; 96-97.
j) BRAKEMEIER, Gottfried. Confessionalidade luterana – Manual de Estudo. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2010. p. 67-73. (Série Educação Cristã Contínua).
5. Subsídios litúrgicos
O culto de Pentecostes na IECLB tem sido, nos últimos anos, o culto de lançamento da Campanha Vai e Vem. Sugiro não esquecer de contemplar esse aspecto importante da missão de nossa igreja no culto. O sustento missionário também é um aspecto do agir do Espírito Santo na vida do cristão e da comunidade cristã.
Vejamos algumas sugestões para a liturgia do culto:
Liturgia de entrada
Para o início do culto pode ser cantado o hino Vem, Espírito Divino (HPD 1 – 85). Ao orarmos pelas dores do mundo ou pela confissão dos pecados, podemos cantar um hino de Lutero sobre Pentecostes: Ó Santo Espírito do Senhor (HPD 1 – 82). Ele nos ensina a dirigir-nos ao Espírito Santo enquanto clamamos: Kyrie Eleison! Se houver um momento de louvor mais delongado, sugere-se cantar os hinos 318: Vem Espírito de Deus, vem nos consolar e 320: Espírito Santo de Deus, ensina-nos a orar (ambos do HPD 2).
Liturgia da palavra
Após a leitura do texto previsto de João 20.19-23, pode-se cantar o hino 319: Vem, Espírito Santo, vem iluminar (HPD 2), baseado no texto do Evangelho de João. Após a leitura do texto apostólico de 1 Coríntios 12 e antes da pregação, pode-se cantar o hino 78: Santo Espírito clemente (HPD 1), também por estar baseado no texto bíblico indicado.
Liturgia de despedida
No final do culto, sugere-se cantar o hino 81: Espírito, Deus, ó Santo Senhor (HPD 1). O hino é uma oração que se encaixa muito bem no momento da oração final de intercessão.
Bibliografia
BLIND, Sisi. Números 11.24-30 – Domingo de Pentecostes. Proclamar Libertação: Auxílios para o anúncio do evangelho. São Leopoldo: Sinodal, 2007. v. XXXII, p. 169-173.
NOTH, Martin. Das 4. Buch Mose – Numeri. Göttingen: V&R, 1977. [ATD 7].
SCHWANTES, Milton. Números 11.11-12,14-17,24-25 – Domingo de Pentecostes. Proclamar Libertação: Auxílios para o anúncio do evangelho. São Leopoldo: Sinodal, 1982. v. VIII, p. 205-212.
WENHAN, Gordon J. Números. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1985.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).