Oxalá todo o povo de Deus fosse profeta!
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Números 11.4-6,10-16,24-29
Leituras: Marcos 9.38-50 e Tiago 5.13-20
Autoria: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: 18° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/09/2021
1. Introdução
Numa primeira leitura do texto da prédica ficamos surpresos que esse texto do Pentateuco tenha sido escolhido para um dos domingos do tempo de Pentecostes. E a estranheza continua com as leituras complementares do Evangelho de Marcos e da Carta de Tiago. Mas uma olhada mais atenta pode nos dar alguma ideia das razões de quem trabalhou essas perícopes do Lecionário Ecumênico. Ainda assim, isso não nos dispensa de pensar sobre os textos, refletir como trabalhá-los em vista do serviço comunitário, da pregação do evangelho e do contexto maior em que vivemos e atuamos. De minha parte percebi que há nesses textos, especialmente a partir da narrativa de Números, um desafio enorme: que o povo se torne instrumento da profecia! Será isso mesmo? E o que isso significa concretamente?
Vamos estudar o texto, compará-lo com as leituras previstas e depois fazer nossas escolhas para a pregação deste domingo. Em 2020, devido à pandemia da Covid-19, os cultos públicos foram cancelados em vista do isolamento social necessário para evitar aglomerações e reuniões que poderiam implicar um aumento do contágio do vírus. Isso foi necessário e correto, como se pode verificar nas comunidades. A presidência da IECLB foi muito clara e corajosa ao lançar as cartas pastorais nesse sentido, recomendando que se buscassem outras formas de fortalecer a fé comunitária bem como ações solidárias dentro das possibilidades de cada lugar. E chamou a atenção a criatividade de muitos colegas ao celebrarem de modo virtual, cada qual procurando ensaiar novas formas de proclamar o evangelho, anunciar a fé e a esperança, desafiando as comunidades a viver na prática o que cremos e louvamos no canto e na oração de intercessão.
Em 2021, não posso imaginar como estaremos em relação à pandemia. O desejo e a esperança é que o pior tenha passado e tenhamos voltado – com muitos cuidados – a reconstruir nossa vida social e coletiva. Não acho que isso possa ser conceituado com a palavra “normalidade”, usada de forma muitas vezes rápida demais e até leviana. Que normalidade podemos imaginar depois de tantas pessoas falecidas, tantas famílias destruídas, tantos profissionais de saúde que deram suas vidas para salvar vidas de outras pessoas? Que normalidade é possível num país em que a principal liderança ignorou a gravidade da pandemia e comprometeu a vida de toda a sociedade? Que normalidade se pode imaginar num momento em que a economia nacional foi destroçada por opções equivocadas e falta de um mínimo de senso social por parte das autoridades constituídas? O país jamais será o mesmo depois do ano de 2020. Aliás, o mundo deverá se repensar profundamente.
Se houve algum aprendizado na tragédia global, talvez tenha sido este: os Estados nacionais são extremamente necessários e fundamentais para a vida pública. Educação e saúde públicas são essenciais para o nosso povo, em sua maioria sem recursos para planos privados. Qualquer promessa de que a saúde privada é melhor e mais segura não resiste à crítica. Planos de saúde não conseguiram dar conta da tragédia que vivemos em 2020. E num país como o Brasil, com milhões de desempregados e uma pobreza generalizada, só a saúde pública, geral e irrestrita – como a define a Constituição Federal de 1988 – consegue oferecer os serviços básicos para garantir a vida de todas as pessoas. Por isso, mesmo quem sempre questionou o Sistema Único de Saúde – SUS, fruto da luta social assumida pela Constituição de 1988, precisou se convencer de que ele é o melhor sistema de saúde do mundo, como afirmou o Dr. Drauzio Varella. E isso diante do gigante dos EUA, país que se revelou completamente despreparado para enfrentar a pandemia. O Brasil pode enfrentar a pandemia por causa do SUS, mesmo com toda a falta de coordenação imposta pelas decisões equivocadas do governo federal e a precariedade dos hospitais e outros serviços. Sem o SUS, nem podemos calcular as dimensões da tragédia nacional. Nesse contexto maior e dramático, reler um texto como esse de Números em 2021 nos exige uma reflexão profunda, aberta ao Espírito Santo, de modo que Deus possa nos dizer algo novo a que não acedemos facilmente. Isso é o que entendo como porta de entrada neste momento. Que Deus nos ajude!
A narrativa de Números foi estudada antes nos volumes do Proclamar Libertação VIII (Milton Schwantes), 32 (Sisi Blind) e 41 (Roger M. Wanke).1 Consideremos as leituras para depois nos determos no texto da prédica.
Marcos 9.38-50 – A leitura do evangelho confronta-nos com um ensinamento de Jesus sobre a tolerância e o cuidado em não julgar pessoas. A grita do grupo de Jesus contra uma pessoa que expelia demônios em nome dele nos parece justificada, ainda mais hoje em dia com tantos pregadores que usam o estratagema para enriquecer. Jesus, porém, faz uma afirmação que nos desconcerta: Quem não é contra nós, é por nós. Penso que esse dito precisa ser repensado. Que significa hoje ser “por nós”, ser “por Jesus”? Será que, em nossa realidade, podemos ser condescendentes ao extremo com quem “cura em nome de Jesus”, por exemplo, depois das barbaridades que vimos acontecer nos tempos da pandemia? Antes, é preciso discernir quem de fato agiu “por nós”, pela vida e dignidade das outras pessoas, a quem Deus ama. A segunda parte dessa narrativa é dura. É o típico texto que constrange quem faz leitura literal da Bíblia. Pois quem pode garantir que, em algum momento de sua vida, não “fez tropeçar” alguma pessoa crente e vulnerável? Cortar uma das mãos ou um dos pés, ou mesmo arrancar um dos olhos é algo radical. Quem se dispõe, sendo honesto consigo e com Deus? Trata-se evidentemente de uma hipérbole! Mesmo assim, é difícil de interpretar esse texto de Jesus. Entrar no reino de Deus ou no seu reinado de paz e justiça sempre será o desafio mais radical, pois exige a entrega da vida, de tudo o que nos é mais caro. Ficar no meio termo não resiste ao tempo e à caminhada da fé, ainda que essa seja um aprendizado constante, uma conversão diária. Por isso, graças a Deus que Jesus também nos ensinou a pedir perdão e a perdoar. Bonhoeffer alertou no seu tempo: a graça que nos salva é graça cara. Baratear o seguimento de Jesus é uma tentação da igreja cristã em todos os tempos.
Tiago 5.13-20 – A carta traz recomendações bem práticas para a vida cotidiana das pessoas da comunidade de fé. Não jurar em falso é fazer com que nosso sim seja sim, e o não seja não. Outra vez, a ambiguidade não serve, embora sejamos mestres nela. Na continuação, a carta traz orientação sobre como acompanhar as pessoas enfermas da comunidade e da vizinhança. A oração da fé em favor da pessoa adoecida salva a pessoa, a consola e a resgata para o coração da comunidade. É oração vicária. A intercessão também liberta dos pecados, da vida equivocada que levamos. Como em 1 Pedro 4.8, também aqui o cuidado, o perdão e o amor para com o outro “cobre multidão de pecados”. Chama a atenção que os redatores não explicitem de que pecados se trata. Não importa. Cada qual conhece sua vida. Não se trata de inquirição, mas de perdão, de aceitação, de mudança de vida. Nesse sentido, Tiago nos dá uma orientação muito atual: muito pode a súplica do justo. Aprendamos com essas primeiras comunidades a suplicar, a interceder, a perdoar, pois assim vamos experimentar o que significa ser libertos de uma “multidão de pecados”.
2. Informações exegéticas
A narrativa de Números 11, na verdade, é uma compilação de duas ou mais narrativas que aparecem, por exemplo, em Êxodo 12 a 15, textos que compõem a história do êxodo pelo deserto e as tradições ligadas a essa história, com a demorada estadia no Sinai (Êx 19 – Nm 10). O pano de fundo é a murmuração dos israelitas pelos apertos que estão passando com a falta de comida (v. 1: queixou–se o povo aos ouvidos do Senhor). No conjunto dos versículos escolhidos para a reflexão temos, então, diversos assuntos: a ira de Deus e o fogo consumidor de Taberá (v. 3), o desejo das comidas (perdidas) dos egípcios como peixes, pepinos, melões, alhos, cebolas (v. 4-5), o que revela a saudade das panelas de “carne” (Êx 16.3). A liberdade tem preço! Viver do pobre maná do deserto ou das codornizes que o vento traz de graça é muito pouco, é uma desgraça para a multidão. Por que você, Moisés, nos trouxe até aqui para tanto sofrimento? Moisés se insurge contra o povo e contra Deus. E briga com Deus: por que fizeste mal a teu servo e por que não achei favor aos teus olhos, visto que puseste sobre mim a carga de todo esse povo (v. 11)? Acaso fui eu que “concebi este povo”? Moisés ousa confrontar o Deus libertador. A caminhada pelo deserto da libertação é duríssima, não é romântica como alguns filmes costumam mostrar. Conflito sobre conflito, murmuração sobre murmuração.
Então vem a última parte do texto, que narra a escolha dos auxiliares de Moisés. Eles são escolhidos para aliviar sua carga como líder, como aquele que conduz a caminhada de libertação (v. 16-29). Aqui a ordem vem de Deus mesmo (v. 16ss): Ajunta setenta homens anciãos de Israel […] e os trarás perante a tenda da congregação, para que assistam ali contigo. São esses homens que irão receber do Espírito que já se manifestava em Moisés para que possam dar conta da “carga” que é levar adiante a caminhada do povo (v. 17), que tem um alvo: a terra prometida aos pais (v. 12). Essa é a parte que nos ajuda a focar no que parece ser o centro da narrativa de Números. Quando o Senhor desce na nuvem e repassa aos setenta a parte que lhes cabe do Espírito que repousava sobre Moisés (v. 25), esses anciãos começam a profetizar. Milton Schwantes chama a atenção que a tradução de Almeida aqui pode ser diferente. Na tradução de Almeida, temos: quando o Espírito repousou sobre eles, profetizaram; mas depois nunca mais. Schwantes observa que na tradução grega da Septuaginta a formulação é outra: e não cessaram mais de profetizar. Quer dizer, sempre temos diante de nós a ingente tarefa de ler com todo o cuidado os textos e procurar estudá-los criticamente. Aqui parece que a Septuaginta tem razão, porque os anciãos assumiram a profecia da luta pela terra até que ela se realizasse (v. 12). Cabe lembrar aqui que o Pentateuco termina com a não entrada de Moisés, o grande líder do êxodo, na terra prometida. A tradição apenas diz que ele a viu de longe, mas então morreu e até hoje ninguém sabe onde ficou sua sepultura (Êx 34.4-6). Não parece estranho?
A questão da profecia em Números 11 tem a ver com a carga que é liderar uma caminhada de libertação cheia de sofrimento, disputas, traições, idas e vindas, e, por fim, uma aposta que pode apenas redundar em bênção para as futuras gerações. Nada está garantido no rumo da terra prometida. E essa carga não pode ser colocada apenas sobre um líder. Ela precisa ser compartilhada, distribuída, e até mesmo aberta para participações inesperadas como o que aconteceu no acampamento dos israelitas. De repente, além dos anciãos escolhidos, aparecem dois outros que também começam a profetizar: Eldade e Medade (v. 26). E isso gera ciúmes do grupo principal, que vai se queixar a Moisés: Você não vai proibir esses dois? Moisés rebate, firme: Que é isso, Josué? Tens ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito! (v. 29).
Uma última observação pode ainda ser importante. Não há certeza sobre o surgimento histórico desse texto, mas o conteúdo indica para a possibilidade de vir dos tempos do exílio. Foi quando se fez uma releitura em retrospectiva da história do êxodo e se vincula essa tradição à profecia. Tanto que Moisés é reivindicado como sendo raiz da profecia de Israel. Sabemos que os profetas, durante o reinado, foram marginalizados e perseguidos porque eram a consciência crítica no meio do povo. Mas Schwantes acrescenta ainda um ponto. Ele afirma que aqui os anciãos são reivindicados para a profecia. Por que essa afirmação? Ora, normalmente na história de Israel, os anciãos eram o baluarte conservador da sociedade, assumindo as funções de mantenedores da sabedoria, as funções de administração da justiça e do direito, junto com a elite sacerdotal. Por isso, normalmente, se colocavam em oposição aos profetas. Em Números 11 temos uma outra tradição! Justamente esses anciãos da caminhada profetizaram e se tornaram os auxiliares de Moisés, de quem receberam e assim partilharam do Espírito. O Espírito de Deus esteve com eles e não mais deixaram de profetizar na caminhada rumo à terra prometida. Provavelmente, mais tarde, o Espírito se calou e na terra de Canaã, especialmente após a organização do reinado, seus herdeiros se acomodaram. Mas essa é outra história e aqui fica apenas como hipótese incompleta.
3. Meditação
A análise da narrativa nos conduz a algo bem importante. Profecia tem a ver com a manifestação do Espírito de Deus. É um movimento carismático mediado por Moisés, como escreveu Schwantes. Moisés, assim, não fica restrito às leis, aos milagres do êxodo, aos sacrifícios, à liderança monocrática. Moisés guarda uma dimensão profética que contrabalança seu prestígio, porque – ao profetizar – precisa se insurgir contra o povo e discutir com o próprio Deus. Isso é muito importante hoje em dia, pois vivemos tempos em que muitos se apresentam como “cheios do Espírito” e se autoapresentam como “profetas”, “apóstolos”, alguns até ousam se intitular como “messias”. Há que discernir os tempos e os espíritos. Jesus foi muito claro a respeito. Então se alguém disser a vocês: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acreditem; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos (Mt 24.23s).
Por isso é preciso – com urgência – identificar os critérios que nos ajudem a reconhecer a profecia autêntica, aquela que não nos pode enganar. E um dos critérios é a carga que a profecia carrega, a cruz que identifica o discípulo e a discípula de Jesus. Profetas carregam a luta do povo rumo à liberdade, jamais se aproveitam da fé e da confiança de sua gente. Profecia é serviço em nome do Espírito e que se exerce na força do Espírito, para que venha a bênção divina sobre as pessoas, para que se chegue ao alvo da nova terra, da vida digna, da liberdade. Jesus afirmou que veio para servir e não para ser servido, veio para libertar e curar, e não para escravizar e oprimir, veio para dar a vida e não para tomá-la. Nesse sentido, quem sabe se pode afirmar que existe uma espécie de experiência vicária (Schwantes) no relato de Números. Essa forma de profecia vicária, que intercede e luta pelo povo e com ele não é algo incomum no Primeiro Testamento.
Pode-se mencionar aqui a vida de Jeremias, seu sofrimento e prisões por causa da atuação profética. Há um relato muito significativo sobre Jeremias no capítulo 38. Aí ficamos sabendo que o profeta – diante da prisão e da morte iminente – foi salvo precisamente por um etíope não israelita, um servidor negro de outro povo que visitava o rei Zedequias e era simpatizante da fé de Israel. O etíope intercedeu pelo profeta, salvando-o da morte (38.10-13). Cabe também lembrar a atuação de Ezequiel, que leva sobre si a iniquidade de Israel (Ez 4.4ss) ou os textos do servo sofredor, que levou sobre si os pecados de muitos (Is 53.12), além de outros exemplos. Talvez se possa mencionar aqui a história exemplar de Jó, que, depois de longo sofrimento, afinal testemunha a presença de Deus em sua história pessoal cheia de tribulações (Jó 42.1-6), mesmo sendo esse um livro da tradição da Sabedoria.
No caso da narrativa de Números, Moisés se sente solitário e desamparado (v. 11-15). Não aguenta mais. E grita contra Deus. Mas Deus o escuta. E aponta um caminho. Ele deve aprender a partilhar a liderança, precisa aprender a compartilhar as cargas que uma liderança assume ao ser escolhida para uma grande tarefa, que em certos momentos ultrapassa sua força humana, sua fraqueza. Nessa caminhada, é preciso que a liderança saiba escutar, aprenda a reconhecer seus limites. Na narrativa paralela de Êxodo 18, foi precisamente o sogro de Moisés, Jetro, um sacerdote midianita, não israelita, quem o advertiu de seu erro (v. 19-24). E Moisés o escutou! Não existe chance de fazer tudo sozinho. Aliás, essa é uma visão míope do que seja uma boa liderança, que exerça a coordenação com autoridade. O texto nos faz ver que o Espírito de Deus não é propriedade da liderança nem de ninguém. É Deus mesmo que o distribui e faz se manifestar. Até mesmo fora do arraial ele pode mover pessoas. Se podemos atualizar, até mesmo fora da igreja, da comunidade de fé, Deus mobiliza pessoas por meio do seu Espírito para que sua obra se realize. E a obra de Deus é que seu reino venha, que a paz e a justiça prevaleçam sobre a violência, a opressão e a morte. Assim, anciãos, lideranças e mesmo pessoas de fora da comunidade podem se unir para servir ao Espírito divino. Algo que neste momento de nossa história pode tornar-se alerta, desafio e consolo. Não estamos sozinhos.
4. Rumo à prédica
Domingo de culto em época de Pentecostes ajuda-nos a enfatizar outra vez o dom do Espírito Santo derramado sobre a comunidade de Jesus depois de sua ascensão (At 2). No Evangelho de João, o dom do Espírito já acontece no encontro com o Ressuscitado (Jo 20). Em uma e outra tradição, o que importa é dar-nos conta do que significa a comunidade se tornar cheia do Espírito Santo. A narrativa de Números nos mostrou que o Espírito não é propriedade da liderança, nem mesmo de Moisés, e que Deus o distribui como melhor lhe apraz. Lá o Espírito foi dado a anciãos, à gente experimentada, para que ela participasse da liderança como sustentação e fortalecimento nos momentos de crise, da pressão por resultados, da fome e da miséria. Como seria nos dias de hoje? Quem assume profeticamente a liderança na comunidade, disposto a enfrentar a resistência de alguns para que a vida seja digna para todas as pessoas?
Nos relatos do Novo Testamento sobre o derramamento do Espírito, a comunidade das discípulas e discípulos recebe com o Espírito o dom da paz: Que a paz enteja com vocês, diz Jesus em João 20.19. O Espírito habilita a comunidade para ser testemunha do evangelho: como o Pai me enviou eu envio vocês (Jo 20.20; cf. At 2). Na Carta de Tiago, o Espírito ensina a perdoar pecados, a reatar relações quebradas, ele é força libertadora. Em Números, ele ajuda a distribuir a carga pesada da profecia. Há que apostar na distribuição da liderança, a aprender a despertar e coordenar os carismas, a deixar que o Espírito atue na comunidade e habilite seu povo para a ação, para a caminhada da fé e da vida plena. O Espírito nos desafia a aprender a discernir o que conduz à vida, à justiça, à liberdade, à terra prometida, à comunhão e ao amor mútuo.
A multiforme dádiva do Espírito ensina ainda mais. Nos textos lidos junto com Números, percebemos que o Espírito de Jesus nos desafia a ser firmes, justos, verdadeiros com as pessoas: que o nosso sim, seja sim; que o não, seja não (Tg 5.12). O Espírito de Jesus nos ensina a orar pelas pessoas, a interceder pelo sofrimento alheio, a lutar por vida digna para todas as pessoas, mesmo aquelas que não nos são próximas ou merecedoras de atenção. Aliás, é bem nesses casos que o Espírito se manifesta de forma mais desafiadora. Ele não aponta pecados, mas se os houver, esses são perdoados; as pessoas libertadas de culpa, tristeza e dor podem recomeçar. Por fim, o Espírito se manifesta coletivamente, comunitariamente, ele quer revolucionar a comunidade inteira. E assim, a comunidade dos crentes se torna veículo da profecia. É isso que Paulo vai ensinar à comunidade de Corinto em sua pregação sobre os dons do Espírito (1Co 12 – 14). Ora , o dom maior é e será sempre o amor. O amor que recebemos e o amor com que nos amamos uns aos outros (Rm 13.8-10; Mt 5.43ss). O amor é o maior desafio porque nunca sabemos até onde ele nos há de levar. Também o amor é dom profético.
O Espírito de Jesus manifesta-se na vida das pessoas, no seu ser integral. Hoje poderíamos acrescentar – sem ofender a tradição evangélica – que o Espírito clama a partir da terra, das águas dos rios, dos mares, das fontes subterrâneas, do ar, das maiores alturas e da vida dos outros seres que compartilham conosco o mesmo planeta (Rm 8.20s). Todos vivemos perigosamente hoje em dia. Por isso é tempo de clamar ao Espírito da vida! É tempo da manifestação do Espírito para que a vida vença a morte, a justiça prevaleça sobre a injustiça e a liberdade sobre a escravidão. Todas as escravidões antigas e modernas, atuais e futuras.
Vem, Espírito Santo, renova a criação, a criação inteira (OPC, 208). Assim cantamos nos cultos comunitários. Essa é a nossa oração e a nossa súplica. E que o mesmo Espírito renove a igreja, a comunidade de fé, a nossa vida inteira. E nos faça um povo que profetize! Desde os maiores até os mais pequeninos.
5. Subsídios litúrgicos
Cantos
LCI 461 – Espírito, Verdade
LCI 465 – Vem, Espírito da vida
LCI 463 – Espírito, Deus, ó santo Senhor
LCI 469 – Ó Santo Espírito do Senhor
LCI 462 – Vem, Espírito Divino, grande ensinador
LCI 466 – Vento que anima
HPD 2 – 318, 437, 443
O Povo Canta – 208
Orações
Vem, Espírito Criador!
Vem, Espírito Santo Criador,
agora, hoje.
Fica conosco, dá-nos tua inteligência
e enche de bondade nossos corações.
Teu nome é: consolo, inspiração, vida, graça.
Tu és novidade, criação, força.
Vem, Espírito Santo, para que tua luz
ilumine nosso caminhar
e fortaleça nossas decisões.
Tu és quem fizeste todas as coisas boas –
Quem preside nosso discernimento
e aponta o caminho de nossas opções.
Teu nome é unidade, esperança, amor.
Afasta-nos do mal, do egoísmo, da injustiça,
da intolerância e da dispersão.
Dá-nos tua paz, tua bênção, teu consolo,
tua serenidade e tua sabedoria,
para que transformemos nosso presente
na vontade do Pai que está nos céus.
(Dom Pedro Casaldáliga – Bispo emérito de São Félix do Araguaia, MT.
Trad. Roberto E. Zwetsch.)
Vem, Espírito Santo
Se habitas apenas nos corações que são fiéis,
como poderei ser abençoado por ti?
Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração infiel,
transforma-o num coração que guarda fidelidade.
Se habitas apenas nos corações que são puros,
como poderei ser abençoado por ti?
Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração imundo
e faze com que seja um coração puro.
Se habitas apenas nos corações que são misericordiosos,
como poderei ser abençoado por ti?
Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração impiedoso
e transforma-o para que seja um coração misericordioso.
Se habitas apenas nos corações que são justos,
como poderei ser abençoado por ti?
Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração injusto,
e transforma-o num coração justo.
Se habitas apenas nos corações que creem,
como poderei ser abençoado por ti?
Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração descrente,
e transforma-o num coração que crê.
Ó Espírito Santo, quando tu entrares no meu coração,
serei ricamente abençoado.
Minha alegria então será a de um cego
que reconquistou a visão,
a de um surdo que reconquistou a audição,
a de um mudo que reconquistou a fala.
Tão grande será minha alegria.
Ó Espírito Santo, entra em meu coração. Amém.
(Johnson Gnanabaranam – cristão luterano da Índia, professor universitário e poeta.)
Nota:
1 Todos disponíveis no Portal Luterano.
Bibliografia
GNANABARANAM, Johnson. Senhor, renova-me. Reflexões. Trad. Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1993.
SCHWANTES, Milton. Auxílio homilético sobre Números 11.11-12; 14-17; 24-25. In: DREHER, Carlos A.; KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar Libertação
VIII. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 205-212.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).