Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Números 21.4-9
Leituras: João 3.14-21 e Efésios 2.1-10
Autora: Carlos Artur Dreher
Data Litúrgica: 4º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 15/03/2015
1. Introdução
O texto de Nm 21.4-9 já foi estudado em quatro auxílios homiléticos, que se encontram em PL VII, XIII, XXII e XXXIII. Há, pois, uma boa série de abordagens a respeito. Proponho um estudo desvinculado daqueles.
A relação entre os textos de leitura e o da pregação dá-se, a meu ver, a partir de uma interpretação alegórica do texto de Números. Isso é bastante claro no evangelho do domingo, Jo 3.14-21, que inicia dizendo: “E do mesmo modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado”. Para o evangelista, a passagem de Números apresenta-se como uma prefiguração do evento salvífico realizado na cruz de Cristo. O que segue no evangelho é o desdobramento da afirmação de que “quem nele crê tenha a vida eterna”. Crer no Filho unigênito do Pai é como olhar para a serpente de bronze erguida por Moisés: é garantia de vida, agora, de vida eterna. A passagem de Efésios acentua a salvação por graça mediante a fé. A nós, que estávamos mortos, Deus nos deu a vida com Cristo. Tudo isso é dom gratuito de Deus.
O tema do domingo parece claro. Destaca o amor e a misericórdia de Deus, expressos na cruz de Cristo, para além da morte.
A pergunta que fica é como interpretar o texto de Números sem, de imediato, fazê-lo à luz do Novo Testamento. O princípio hermenêutico luterano – o que promove a Cristo – não pode ser ponto de partida exegético em textos do Antigo Testamento. É ponto de chegada. Só poderá ser critério depois de interpretarmos o texto em seu próprio contexto.
2. Exegese
A narrativa em apreço faz parte do complexo maior das tradições do deserto no Pentateuco. Essas iniciam em Êxodo 16-18, sendo interrompidas pelo grande bloco do Sinai e da lei, que se estende de Êxodo 19, passando por todo Levítico até Números 10.10. O tema do deserto é retomado em Nm 10.11, seguindo até o final do livro e, ainda em boa parte, continuando no Deuteronômio. Um dos principais temas das tradições do deserto é a murmuração do povo, seguida da intervenção salvífica de Deus (cf. Êx 15.22ss; 16.1ss; Nm 11.1ss). É
esse também o tema de nosso texto.
Em termos literários, a passagem é coesa e está bem delimitada em relação ao que a antecede e a sucede. Compõe-se de um itinerário (v. 4a) e de uma narrativa que se desdobra em quatro partes:
v. 4b-5: a murmuração do povo;
v. 6: o castigo de Deus – as serpentes abrasadoras;
v. 7: arrependimento e pedido de socorro por parte do povo; intercessão de Moisés;
v. 8-9: a serpente de bronze e a salvação divina.
O motivo da murmuração continua o mesmo: não há pão nem água. Acrescenta-se aqui o fastio em relação a “este pão vil”, seguramente uma referência ao maná. Como em outras vezes, volta a ideia de que teria sido melhor permanecer no Egito do que morrer no deserto. Diante das dificuldades da caminhada prefere-se o retorno à aparente segurança da escravidão em lugar das incertezas provocadas pela novidade da liberdade.
Se nas primeiras vezes (cf. Êx 15.22ss; 16.1ss) Deus intervém de imediato, provendo ao povo o que lhe falta, agora faz valer a sua ira. Isso já ocorrera em Nm 11.1ss, quando a murmuração do povo também provocara a ira de Deus: “(…) fogo do Senhor ardeu entre eles e consumiu extremidades do arraial” (Nm 11.1b).
A ira de Deus manifesta-se agora de forma aterradora. Ele manda entre o povo serpentes abrasadoras. Tais serpentes picam muitas pessoas, levando-as à morte (v. 6).
Hanahash hasaraf, a serpente abrasadora, é tida como uma má e perigosa habitante do deserto (assim Dt 8,15). Nahash é em si o designativo de “serpente”. Saraf é um adjetivo, também utilizado de forma substantivada, derivado do verbo srf, cujo significado é “queimar, arder”. Na ligação com nahash, deve referir-se à cor avermelhada da serpente ou efetivamente à queimação provocada por sua picada. Hanahash hasaraf é tida como uma serpente alada. Conforme Is 30.6, o deserto é um território da serpente alada ou volante. De acordo com Is 14.29, uma serpente alada ou voadora é muito mais perigosa do que uma serpente comum. Tudo leva a crer que se trata de uma naja.
Apavorado, o povo arrepende-se de sua murmuração. Dirige-se a Moisés, confessando sua culpa e pedindo pela intercessão de Moisés para que Deus afaste esse mal. Moisés atende o pedido de socorro e ora a Deus pelo povo (v. 7).
Arrependimento e confissão de culpa levam à intercessão, que é atendida por Deus. Moisés recebe a tarefa de fazer uma serpente abrasadora – ainda nada é dito de que material – e a ponha sobre uma haste. Quem olhar para esse objeto após ser picado por uma serpente escapará da morte (v. 8).
O relato termina com a execução da tarefa. Moisés faz uma serpente de bronze e a põe sobre uma haste. Ocorre o que foi previsto: quem olha para a serpente de bronze após ser picado sara (v. 9).
A pergunta que permanece é pelo lugar vivencial dessa narrativa. Essa questão leva-nos de imediato a uma interessante nota presente em 2Rs 18.4.
Na reforma do culto promovida por Ezequias em 705 a. C., num momento em que a ameaça assíria havia diminuído, o rei “removeu os altos, quebrou as colunas e deitou abaixo o poste-ídolo, e fez em pedaços a serpente de bronze que Moisés fizera, porque até aquele dia os filhos de Israel lhe queimavam incenso e
lhe chamavam Neustã”.
O nome Neustã evoca nahash, nossa conhecida serpente, mas também nehoshet, bronze. A referência a Moisés, porém, é tanto mais significativa. Embora a narrativa de Números 21 não conclua com a fórmula “até o dia de hoje”, típica para sagas etiológicas, ela tem tudo para ser a etiologia da estranha serpente de bronze encontrada no templo de Jerusalém.
Outra referência interessante é de Is 6.1ss, a conhecida passagem da vocação de Isaías. O profeta encontra-se no templo e vê o Senhor assentado sobre um trono, acima do qual voam serafins. Esses seres alados são mencionados apenas nessa passagem. Ao que tudo indica, tais serafins são serpentes voadoras, como vimos acima. Teriam, nessa visão de Isaías, alguma relação com a Neustã despedaçada um pouco mais tarde por Ezequias?
Aparentemente, sim. Estamos diante de uma tradição idólatra, que via a serpente como uma espécie de divindade com alguma função salvífica. Teria alguma relação com aquela outra serpente do jardim do Éden?
Em todo caso, na narrativa de Números 21, tal tradição da divindade-serpente já está subordinada a Javé, Deus de Israel. Neustã, ou seja lá qual for o seu nome, é fabricada por ordem de Deus e salva porque Deus assim o ordena. Não tem poder por si mesma.
Mais uma vez, a fé em Israel incorpora antigas tradições de naturezas distintas, reinterpretando-as à luz do Deus Libertador.
3. Pensando na pregação
É grande a tentação de esboçar de imediato uma pregação a partir do Evangelho de João (3.14), interpretando a passagem de Nm 21.4-9 alegoricamente. Nosso texto não seria mais do que uma espécie de prefiguração da morte de Jesus Cristo por nós na cruz.
Contudo é preciso esforçar um pouco mais nossa inteligência antes de capitular diante de um texto. Como pregar sobre essa estranha história sem desprendê-la de seu contexto na Bíblia Hebraica?
Como vimos, estamos diante de uma tradição possivelmente idólatra de adoração a um deus-serpente. A notícia de 2Rs 18.4 corrobora essa afirmação. Um culto monolátrico, que não admite outros deuses, tampouco qualquer tipo de imagem, precisa despedaçar a Neustã encontrada no templo de Jerusalém por ocasião da reforma de Ezequias.
É interessante observar que a atitude de Ezequias em relação à serpente de bronze é a mesma tomada por Moisés em relação ao bezerro de ouro em Êxodo
32. Também o bezerro é destruído, queimado e reduzido a pó.
Não obstante, em Números 21, a imagem representa exatamente o contrário. O próprio Deus ordena a Moisés que a faça. Se a Neustã de 2 Reis é a mesma serpente de bronze de Números 21, por que é destruída por Ezequias? Não seria uma bela recordação de mais uma intervenção salvífica de Deus?
Ao que parece, estamos diante de duas interpretações teológicas distintas sobre um mesmo fato ou, melhor, de um mesmo objeto. Ezequias interpretou-o negativamente. Por isso o destruiu. O autor da passagem de Números, por sua vez, compreendeu positivamente a imagem de bronze.
Entendo que João também leu positivamente a passagem de Números. Retoma, sem qualquer ressalva, a imagem da serpente alegoricamente como uma prefiguração da morte de Jesus na cruz.
Penso que os textos deste domingo oferecem-nos uma ótima oportunidade para abordar questões relacionadas a intransigências religiosas e iconoclastias exacerbadas.
Israel soube muito bem absorver e reinterpretar tradições diferentes da sua, ao menos em seu início. Exemplo disso é a tradição do Deus dos Pais. Os deuses de Abraão, de Isaque e de Jacó, entre outros, foram reinterpretados como manifestações do Deus de Israel em tempos antigos (cf. Êx 6.3). Provavelmente, antigas sagas, como a da luta de Jacó com Deus no Jaboque (Gn 32.22-32), sejam reflexos da crença na existência de outras divindades. Também essas foram reinterpretadas a partir da percepção monoteísta que se instalou em Israel desde os tempos de Elias.
O movimento do “Javé-único” não destruiu o antigo imaginário religioso de diferentes grupos, mas os assumiu como manifestações do Deus único. Assim, o deus-serpente pode também ser reinterpretado, se não como o próprio Javé, como um sinal de salvação ordenado por ele a Moisés. Na mesma direção apontam os serafins de Isaías 6. Serpentes aladas, provavelmente originárias do mesmo culto não israelita ao deus-serpente, transformam-se em seres alados a serviço de Javé.
Assim também ocorre em Jo 3.14-21. A serpente de bronze, destituída de qualquer dignidade divina já no texto de Números, pode agora tornar-se prefiguração da crucificação de Jesus Cristo. E mais: pode agora tornar-se prefiguração da salvação em Cristo.
Proponho que a pregação reflita esse tema da absorção de aspectos de outras religiões na fé cristã. Tal absorção não significa mera aceitação tácita de tais aspectos. Ela precisa ser refletida.
Penso aqui na atitude de Paulo no areópago de Atenas (At 17.16ss), transformando o altar ao deus desconhecido dos atenienses no altar ao Deus Pai de Jesus Cristo. Paulo incultura-se na religião grega. Não a destrói, como Ezequias reduz a pó a Neustã. Incorpora-a e a reinterpreta.
Não deveríamos fazer o mesmo com aspectos das religiões afro-brasileiras e indígenas? Não seria possível uma inculturação em vez de uma simples negação? Também não tenho a fórmula de como fazê-lo. Contudo bons missionários indigenistas ligados ao COMIN já o fizeram.
Em todo caso, o texto de Números diz em alto e bom som um não à iconoclastia. Não se trata de quebrar imagens. Trata-se de reinterpretá-las, às vezes até não mais do que interpretá-las.
Nosso mundo evangélico é muito rápido em quebrar e destruir imagens irrefletidamente. Pensando apenas dentro do universo cristão: pode-se simplesmente quebrar uma imagem de São Francisco de Assis (por ser uma “idolatria católica”) sem pelo menos perguntar o que tal santo homem fez? Sua vida é certamente um exemplo de fé para muitos cristãos evangélicos que só pensam no próprio sucesso.
Como se diz: antes de jogar a água da banheira pela janela, é bom verificar se a criança não está mais dentro. Antes de quebrar a imagem, convém observar a sua história.
De qualquer modo, será mais evangélico reinterpretá-la do que reduzi-la a pó.
4. Imagens para a prédica
Na Igreja do Relógio em São Leopoldo (RS), na qual celebro como pastor voluntário um culto por mês, há uma belíssima imagem do Cristo Ressurreto em um nicho sobre o altar. É um ícone que quer assinalar o nome daquele templo, que pouca gente recorda: Erlöserkirche, Igreja do Redentor. O Ressurreto está de braços abertos, estendidos em direção à comunidade.
Uma vez por ano, aquela imagem é retirada do nicho e substituída por outra. Isso ocorre na Sexta-feira Santa, e a outra imagem é a do Cristo Crucificado, artisticamente muito bem trabalhada em metal.
Ainda há outras imagens nos vitrais do templo e num belo candelabro que pende do teto, bem no centro da nave. Quatro seres alados entalhados em madeira seguram as lâmpadas fluorescentes que iluminam o interior da igreja. Lembram os serafins de Isaías 6.
Todas essas imagens contribuem para o fortalecimento da fé, não por si mesmas, mas por apontar para conteúdos fundamentais da palavra de Deus. Não vejo motivo para reduzi-las a pó. Ao contrário, tenho muitos motivos para preservá-las, pois me falam dos propósitos de Deus.
Certamente cada pregadora, cada pregador terá exemplos de imagens úteis no templo em que pregará. Proponho que as utilizem para demonstrar que apontam para a fé, sem ser ídolos que nos afastam de Deus.
Ideal seria se a pessoa responsável pela pregação encontrasse exemplos de imagens não cristãs que pudessem ser reinterpretadas em função de nossa fé.
5. Subsídios litúrgicos
Dois hinos do HPD II parecem-me importantes para o culto. Trata-se dos hinos 340 e 375, não tanto pelo seu conteúdo, mas pelo estranhamento que causam. A letra do primeiro está em língua Guarani: Oré poriaju verekó Ñandeyara; a do segundo em uma língua africana, conhecida na África do Sul: Thuma mina, Samandla. Tanto Ñandeyara quanto Samandla são nomes para Deus.
Para versículo de introito sugiro Jo 3.14s: E do mesmo modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado.
As três leituras indicadas para o domingo deveriam ser utilizadas e relacionadas na pregação.
A oração de intercessão não deveria esquecer de mencionar grupos étnicos e religiosos distintos, pedindo que Deus os proteja e conceda que nós os respeitemos em sua diversidade. Penso aqui principalmente nos povos indígenas e nos grupos negros praticantes de cultos afro-brasileiros. Ideal seria que não fossem esquecidas também as religiões orientais conhecidas em nosso meio.
Bibliografia
Como bibliografia sugiro os auxílios homiléticos sobre o texto de Números 21 já publicados em Proclamar Libertação, mencionados na introdução deste escrito. Como complemento para a temática da inculturação e da reinterpretação de símbolos de outras tradições religiosas sugiro:
TISS, Frank; SASS, Walter. Um só Deus Criador. Diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas. Cadernos do COMIN, v. 11, 2012.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).