Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Números 6.22-27
Leituras: Lucas 2.15-21 e Filipenses 2.5-11
Autoria: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: Ano Novo (Nome de Jesus)
Data da Pregação: 01/01/2016
1. Introdução
As bênçãos acompanham os atos litúrgicos de Israel em diferentes momentos de sua vida cúltica. No Salmo 121.7-8, um cântico convida os fiéis, em sua peregrinação a Jerusalém, a meditar sobre a proteção de Javé. É possível perceber o acabamento da peça litúrgica como se fosse uma prece impetrada pelo sacerdote sobre os peregrinos. Ele é guarda contra o mal, tanto na saída como na entrada na cidade santa. Nessa mesma direção, no Salmo 97, uma espécie de reminiscência de salmos anteriores, o v. 10 aponta para a proteção divina sobre aqueles que detestam o mal. Nesse texto específico, a proteção é explícita contra os ímpios.
Quando se examina o sonho de Jacó, é possível encontrar, na promessa de Javé, a garantia de que o povo será guardado e será reconduzido àquela terra, conforme ele havia prometido. A resposta de Jacó aparece também na forma de compromisso sobre a fidelidade àquele Deus, erguendo uma pedra e prometendo dízimos (Gn 28.15; 20-22).
A literatura deuteronomista, ao tratar da firmação do pacto entre Israel e Javé, retoma a forma dos pactos de vassalagem assíria. Acena com a bênção que virá sobre o povo, na entrada e na saída, reafirmada sobre toda a terra que será ocupada futuramente (Dt 28.6,8). Ao ser firmado o pacto, antes da entrada na Terra Prometida, a promessa da bênção é reafirmada duas vezes, quando estão se constituindo os acertos, e depois, quando acontece a resposta do povo na assembleia dos líderes (Dt 30.1,19).
Outra construção deuteronomista promove um acabamento ao Código da Aliança (Êx 20.22-23.33), no qual a promessa de guarda e a presença da bênção de Javé são asseguradas. Assim, antes de entrar na Terra Prometida, Israel recebe a bênção (Êx 23.20,25).
Hoje é o primeiro dia do ano, que costumeiramente inicia com muitas promessas. Ele começa com o anúncio da paz, como aquela que foi trazida pelos anjos aos pastores (Lc 2.14). Assim como provocou uma atitude nos camponeses da Palestina (Lc 2.15-21), essa paz deve provocar nossa atitude de testemunho no decorrer de todo o ano. Também é um convite à humildade ao esvaziar-se da soberba e assumir uma postura de simplicidade para confessar o nome de Jesus como o Senhor de nossas vidas para a glória de Deus (Fp 2.5-11).
2. Exegese
O livro de Números chamava-se originalmente “No deserto”, isso no hebraico. Trata das provações que o povo enfrentou quando peregrinava pelo deserto e como se contextualizou nessa realidade. Listas, leis, relatos, ordens divinas, instruções para a liturgia demarcam o cuidado de Deus para com o povo em situação de vulnerabilidade existencial (ADAM, 2009). É um texto que se encontra inserido no final da permanência dos hebreus junto ao Sinai. Junto ao monte, Deus entrega a Torá ao povo, que segue sua trajetória em direção à Canaã (REIMER, 2012).
Percebe-se que o papel do sacerdote tem um significado importante na parte inicial do livro de Números. É significativo referenciar que essa literatura fazia parte de um registro pré-monárquico, uma informação primária da primitiva vida de Israel. A repetição do nome de Javé, invocado três vezes na fórmula da bênção, significa a garantia da presença de Deus sobre o povo. Trata-se de uma fórmula semítica utilizada para invocar o favor divino. Essa bênção sacerdotal garante a luz divina sobre Israel.
A força dessa fórmula alicerça-se sobre dois elementos: o nome de Javé e a ação do sacerdote, uma de suas principais funções. Não se trata de uma bênção pronunciada por um pai sobre seu filho, mas daquele que ouve e interpreta a voz divina e, portanto, conhece os desígnios de Deus. Sua presença abençoadora, enquanto mediador entre Javé e o povo, confirma e valida a eficácia da bênção.
Entretanto, não se pode olvidar que, apesar de ser uma fórmula falada pela autoridade do sacerdote, a autoria pertence a Deus. Ele é o doador e garantidor da bênção. Mesmo que a presença seja do sacerdote, é Javé quem está abençoando.
V. 24 – O ato de abençoar transmite tanto a marca do nome de Javé, impresso sobre o povo de sua aliança, como o dom da vida que se plasma como garantia; a proteção, expressa na fórmula sacerdotal, diz respeito à peregrinação do povo em busca do seu locus – trata-se de um povo andante que ainda aprende enquanto anda e, por isso mesmo, arrisca-se na andança.
V. 25a – Aponta para o resplandecer da face divina. É possível que se possa perceber melhor a profundidade desse resplandecer se, em vez de procurar entender o que signifi ca “resplandecer”, se pudesse substituir essa palavra por “sorrir”: Deus sorri sobre os filhos de Israel. Nada pode ser mais alentador do que contemplar o “sorriso” divino. Trata-se de um sorriso que transmite alegria. Ele constitui uma presença que pode livrar Israel das mãos dos inimigos. Evita que o povo seja envergonhado (Sl 31.14-17). Significa promessa de restauração de salvação. É demonstração de poder e de soberania (Sl 80.1-3). O resplandecer do rosto divino está associado às misericórdias de Javé (Sl 67.1). Mas essa luz divina também está associada à compreensão da sua vontade (Sl 119.135). O brilho do rosto está referido à sabedoria (Ec 8.1).
V. 25b – A misericórdia é a síntese de todas as bênçãos. Para Israel, a misericórdia é representada por duas convergências do sentimento semita: a com paixão e a fidelidade. Trata-se, em primeiro lugar, do apego comprometido de um ser pelo outro, um apego instintivo que tem seu nascedouro no seio materno, nas entranhas do coração (1Rs 3.26), algo que se pode traduzir por ternura. Em segundo lugar, trata-se do sentimento de piedade, que se traduz numa relação entre dois seres amarrados pelos laços da fidelidade; não só uma ternura, mas também uma bondade consciente, intencional, resposta a um dever interior de fidelidade a si próprio. A misericórdia é a oferta de um favor imerecido.
V. 26a – Quando Javé está contra alguém, ele põe o seu rosto contra essa pessoa (Jr 21.10; 44.11). Quando Deus esconde o rosto, a maldade toma conta (Jr 33.5). O mostrar da face tem o valor de Deus. Não esconde nada, pois tudo está às claras, e seus propósitos não são obscuros. Por essa bênção, Javé manifesta-se em toda a extensão do seu projeto. É como se um novo e iluminado dia se mostrasse sobre Israel. O rosto de Javé constitui a fonte de luz mais expressiva de Deus. Na manifestação do seu rosto, Javé abençoa o povo através de coisas boas, tais como fartas colheitas, descendência, prosperidade, proteção contra os inimigos.
V. 26b – A palavra paz (shalom), cuja possibilidade de tradução para português é quase impossível, possui o significado profundo de segurança de vida diante das provas terríveis da existência. Mas pode representar a harmonia interior da pessoa, o equilíbrio, a plenitude nas experiências de vida. Sobretudo é entendida como presença da paz, fruto da presença divina sobre a pessoa.
V. 27 – Trata-se de uma expressão característica do semitismo, que se reporta ao favor divino. As três repetições do nome de Javé são garantias da presença e da proteção divina. Fala de uma tradição fundamental na formação do povo: a marca de Javé sobre as pessoas. Ela está relacionada à ideia de comunicação do dom da vida.
3. Meditação
Na qualidade de povo de Deus, vivendo a fé em Jesus Cristo, somos uma comunidade peregrina. Avanços e retrocessos fazem parte de nossa trajetória em direção ao reino que já está presente, mas que ainda é almejado pela fé.
Agora não mais carregamos o nome de Javé enquanto doador de leis e diretrizes de um caminhar perfeito. Portamos, pela bênção, o nome de Jesus, o Cristo, que em nós habita pela presença do Espírito. Não carregamos mais a Arca da Aliança, mas levamos o testemunho da graça que liberta e salva. Somos abençoados e portadores da bênção enquanto nos dirigimos à Terra Prometida: a plenitude do reino.
Como povo abençoado, portadores da bênção, refletimos a luz de Cristo, que se esparge pelas campinas onde se encontram agricultores familiares e pelas vilas, bairros, becos, ruas e avenidas das cidades e metrópoles da era contemporânea. Levamos o “sorrir” de Deus, que transmite alegria em meio às tristezas; resplandecemos a face do Senhor, onde homens e mulheres acham-se cabisbaixos pelas agruras de uma sociedade dividida e esfarelada pelo consumo descomedido. Nosso resplandecer da luz divina repercute como esperança para os cansados de tantas lutas sem respostas.
Como o sol que se levanta no horizonte de um novo ano, um alento novo levanta-se com a certeza da graça de Cristo ao alcance de todos a partir dos mais enfraquecidos. A graça, fruto da nova aliança, constitui a plenitude da misericórdia divina, que se estende sobre nós como um manto de expectativas boas para os novos tempos. Compaixão e fidelidade mostram-se como realização de bondade do Senhor sobre todos.
A face de Javé, que outrora mostrava-se em atos de salvação e misericórdia para Israel, agora se apresenta desvelado em sua grandiosidade na face de Cristo. Ele revela a vontade soberana de Deus e o projeto de libertação e de salvação para toda a humanidade. Essa face não está mais ligada ao cumprimento de leis e normativas de convivência, mas ao usufruir da graça de Cristo em toda a sua plenitude. Se outrora o nosso coração estava oprimido pela consciência tenebrosa do pecado, agora a paz ampla, do novo shalom, espraia-se sobre o povo de Deus imerso na genuína e duradora alegria de participar da comunidade – o corpo de Cristo.
4. Imagens para a prédica
Conta-se que, certa vez, um menino de oito anos distraiu-se brincando e por isso atrasou-se em recolher os animais para o estábulo. A noite de inverno caíra rapidamente sobre a campina. Com certa dificuldade, o menino encontrou as vacas e terneiros no meio da noite escura. Arrebanhou todos os animais e foi tocando-os pelo campo. Porém era necessário atravessar um bosque escuro, cortado por um riacho, e o menino começou a experimentar um sentimento de medo muito forte. Na entrada do mato, parou, orou e pediu que Deus lhe desse forças para enfrentar aquela dificuldade. Isso não foi suficiente, então ele começou a repetir insistentemente: “Deus está comigo!”, como se fosse a invocação de uma bênção, ao mesmo tempo em que o confessava como certeza. Assim, tocou os animais pelo estreito caminho através do bosque, atravessou o riacho e seguiu confiante para o estábulo.
A invocação da bênção, combinada com a certeza da ação divina, aplacou o medo e fortaleceu o menino em sua trajetória confiante.
5. Subsídios litúrgicos
Bem no início da celebração, o pastor ou a pastora convidam a comunidade para reunir-se em pequenos círculos em pé (4 ou 5 pessoas – pode ser por família). Todos levantam as mãos sobre as cabeças e as juntam, pelos punhos, no meio do círculo. As mãos ficam abertas numa atitude de recepção da bênção. O pastor impetra a bênção sobre todos. Essa é a primeira bênção de ano novo, e todos a recebem. O culto prossegue com todos os elementos litúrgicos. No final, o pastor ou a pastora convidam toda a comunidade a fazer um grande círculo no templo, e todos estendem os seus braços e colocam as suas mãos sobre a cabeça dos seus vizinhos, da direita e da esquerda. O pastor ou a pastora falam a bênção, frase por frase, e todos a repetem, transmitindo a bênção sobre todos os irmãos da comunidade. Assim termina o culto.
Bibliografia
ADAM, Júlio Cézar. Auxílio Homilético: Números 6.22-2 7. In: Proclamar Libertação. Volume: XXXIII (2009). Disponível em: .
CIMOSA, M. Levítico e Números. São Paulo: Paulinas, 1984.
GIBSON, J.C.L. Antigo Testamento Comentado: Números. Buenos Aires: Ediciones La Aurora, 1983.
REIMER, Haroldo. Auxílio Homilético: Números 6.22 -27. In: Proclamar Libertação. Volume: XXXVI (2012). Disponível em: . Acesso em 22 maio 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).