Creio em Deus Pai, todo-poderoso
Martin Weingaertner
Os ensaios seguintes propõem-se a interpretar o Credo Apostólico no contexto da Bíblia. Antes disto, porém, deveríamos refletir a relação entre confissão de fé e Palavra divina.
I – A confissão de fé no contexto da mensagem bíblica
A Palavra de Deus e a confissão de fé estão numa sequência, num fluxo irreversível: A confissão nasce do ouvir da Palavra. Esta Palavra divina contida na Bíblia Sagrada sempre precede à confissão. Não lhe precede somente num sentido histórico, por ser mais antiga, mas também em conteúdo e em autoridade. A autoridade da Palavra é primária, enquanto que a da confissão sempre é secundária e derivada.
Confissão é a resposta humana à mensagem revelada e crida. Barth a define como um aviso de recebimento da criadora palavra de Deus (apud Lienemann, p. 542). Também Lutero a descreve como sendo uma resposta e uma confissão dos cristãos que está baseada no Primeiro Mandamento (Der grosse Katechismus, p. 92). Desta observação podemos tirar duas conclusões para o nosso confessar da fé:
1. O confessar da fé não subsiste desvinculado da mensagem bíblica. Quando nosso confessar deixa de ser resposta ao Evangelho, então deixa de ser confissão, ainda que seja uma formulação ortodoxa. Fica esvaziada, tornando-se uma casca sem vida. Por isto a reflexão do Credo Apostólico somente tem sentido a partir de um ouvir renovado da Palavra de Deus. A confissão precisa essencialmente deste contexto. Fora dele desintegra-se.
Nossa catequese tradicional, que se contentava e, ainda hoje, se contenta com a recitação dos artigos da fé, desleixa o ensino bíblico, dando-lhe, quando muito, uma função secundária e opcional. Ela precisa reconhecer nisto o seu pecado, a sua corresponsabilidade no cristianismo formal e descomprometido em nossa pátria.
2. Se confissão é a resposta ao anúncio da Palavra de Deus, nunca o processo de confessar, de formular esta resposta está encerrado. Por isto mesmo a Comunidade cristã não pode parar de formular, contentando-se com um texto formulado. A abertura constante para um ouvir renovado implica sempre na possibilidade de um responder novo e distinto. Neste sentido K. Barth define: O que nós conhecemos como dogma basicamente é falível e, portanto, aperfeiçoável e sujeito a alteração (apud Lienemann, p. 550). O Evangelho permanece o mesmo, e não muda. A Palavra de Deus é uma só em todos os tempos. Mas o nosso reconhecimento das implicações deste Evangelho, desta Palavra em nossa vida é distinto, aperfeiçoável e corrigivel a partir de um ouvir novo e obediente.
Portanto, a interpretação do Credo Apostólico não é a análise de um processo de reflexão da fé concluído, mas sim um acontecimento no fluxo entre este ouvir e responder e, assim, basicamente, aberto para um responder novo e corrigido.
II. O Credo Apostólico
O que refletimos acima não é nada estranho, ao menos não o foi á Igreja Antiga. O próprio Credo Apostólico é um exemplo deste processo contínuo.
O Credo Apostólico é uma confissão da Igreja Ocidental. Não é uma confissão da Igreja universal, mas sim uma confissão particular. Originou-se de uma confissão bastimal, denominada Credo Romano, que surgiu em Roma, no decorrer do segundo século. Este Credo Romano cristalizou-se da liturgia batismal a partir de Mt 28.20. Já era formulado em três artigos que, no entanto, originalmente não parecem ter sido afirmações, mas sim, perguntas dirigidas ao batizando por ocasião do seu Batismo.
O Credo Apostólico, por sua vez, é a complementaçâo posterior deste Credo Romano e o seu texto pode ser documentado a partir do inicio do oitavo século. O abade Primínio (falecido 753), fundador de um mosteiro à margem do Lago de Constança, faz menção dele no seu escrito De singulis libris canonicis scarapsus. Primínio cita o Credo Apostólico duas vezes, das quais uma em forma de pergunta tripla dirigida a batizados. Isto mostra que também seu desenvolvimento está intimamente ligado à liturgia batismal.
Não podemos mais reconstituir plenamente este desenvolvimento, mas presume-se que tenha acontecido no final do sexto ou no decorrer do sétimo século da era cristã, não em Roma, mas nalgum lugar ao norte dos Alpes (Kelly, p.411), talvez no sul da França. Ao final do oitavo e no início do nono século, porém, o Credo Apostólico já deve ter tido considerável difusão e aceitação, a ponto de ter sido acolhido pela reforma e unificação litúrgica promovida pleos reis francos, especialmente por Carlos Magno (768-814). Pelo enérgico empenho destes, o Credo Apostólico adquiriu, no decorrer do nono século, praticamente um monopólio (Kelly, p. 416) na Europa Ocidental e assim na Igreja Ocidental, que perdura até os dias atuais, tanto na Igreja Romana como nas Igrejas da Reforma. Os outros símbolos da Igreja Antiga comuns a toda a cristandade ficaram praticamente incógnitos.
A interpretação de M. Lutero, em seu Catecismo Menor (1529), mostra que o movimento da Reforma não considerava o processo de formulação da fé concluído. Do novo ouvir da Palavra brotou um confessar corrigido, novo: Destaca-se a ênfase no pró me (por mim) e a conclusão ética na interpretação de cada artigo.
III – Análise de João 14.1-11
V. 1: Não se apavore o seu coração: Creiam em Deus e creiam também em mim.
Solidão ameaça os discípulos. No contexto desta perícope Jesus prepara os seus discípulos com vistas à sua ida ao Pai, à morte na cruz. Sem a presença visível de Cristo, os discípulos estarão expostos e obrigados a ver a ameaça deste mundo. Justamente este ver o mundo traz dúvida, inquietação, pavor e incerteza. Nisto a situação dos discípulos é paradigmática para todo cristão. Também nós vemos apenas a ameaça.
Jesus sabe disto. Por isto ele chama da solidão para a fé. Somente a certeza das cousas que não vemos(Hb 11.1) vence a insegurança que nasce das cousas que vemos. Esta fé nasce do convite de Jesus. Fé nunca é empreendimento nosso. Sua raiz não está em nós mesmos, mas sim no portador da fé, Jesus Cristo (cf. Rm 10.17).
A fé é uma só. Fé no Pai e fé em Jesus é a mesma fé, assim como o Pai e o Filho são um. Os imperativos creiam devem ser entendidos em seu paralelismo. Do contrário Cristo e a fé nele tornar-se-iam complemento. Cristo não convida para a fé em si mesmo, pressupondo a fé (já existente) em Deus. Vale: Ninguém vem ao Pai se não por mim (v.6). Por isto, a tradução de Almeida não é possível teologica-mente. É apenas uma possibilidade gramatical.
Crer, na Bíblia, tem um significado distinto! O nosso uso do termo é indistinto: Cremos que vá chover até a noite. Cremos que o preço da gasolina aumente logo. Neste contexto confessamos que cremos em Deus. Assim, a fé em Deus torna-se uma entre muitas outras. A Bíblia não fala assim! A fé sempre e unicamente se dirige a Deus. A Bíblia só usa esta palavra para descrever a relação de confiança para com Deus. Nós não somos chamados a crer em milagres ou na criação, mas sim, no Deus que faz milagres e que cria! Também não podemos dizer que cremos na Bíblia, mas sim, que cremos em Deus que se mostra a nós na Palavra da Bíblia. Assim devemos entender o convite para a fé. Ele quer dirigir toda a nossa confiança a Deus, o Pai. Crer é sempre crer nele. O mais é descrença, e crendice! O Evangelho não permite que substituamos o Criador por uma criatura sua.
O convite creiam é dirigido a todos. Ninguém está excluído. Mas a resposta ao convite não é coletiva. É individual. Lutero destaca isto em sua interpretação: Somente no Primeiro Artigo ele sublinha o por mim sete vezes. A fé cristã não pode ser massificada. Portanto, você também não pode ajudar-se a si mesmo, mas Cristo é seu auxiliador e Salvador; isto faz, que seu pecado está perdoado. Você precisa sentir e confessar isto em seu coração. Se não o sentir, então não pense que você já tenha a fé; mas a Palavra ainda está encalhada no seu ouvido e espumeja na sua boca como a espuma sobre a cerveja(Lutero, apud H.M. Barth, p. 574).
Mas isto não quer dizer que a fé seja individualista, que cada qual tenha a sua fé particular. A fé para a qual Jesus convida é sempre comunitária, pois reúne os crentes na igreja. Por isto a aceitação do convite para a fé implica sempre no compartilhar com os irmãos.
V.2: Na casa de meu Pai há muito espaço. Pois, do contrário, eu diria que vou preparar lugar para vocês?
V.3: E quando for e preparar lugar, retornarei para levar vocês comigo, afim de que onde eu estou, também vocês estejam.
Ao contrário do mundo que nos ameaça com ação de despejo, Deus oferece abrigo. Assim como uma casa com muitos quartos pode acolher a muitos, assim a casa de meu Pai é acolhedora. A expressão casa de meu Pai equivale a Reino de Deus (Schlatter, apud Michel, p. 125). O conteúdo parabólico desta comparação está explicado na parábola do pai misericordioso que acolhe e convida (Lc15. 11ss). E, por Deus ser como este pai, a confiança nele vence todo o medo. Mas este lugar na casa do pai não é um direito adquirido! Por nossa própria culpa o perdemos, desperdiçando nossa herança. Por isto Jesus vai preparar o lugar. Esta é sua obra: Empenha-se por nosso abrigo, indo à cruz. Nela consuma-se a salvação (Jo 19.30). Recebemos o direito de morar na casa do Pai de graça, sem termos direito algum. Eis o milagre! Podemos crer, porque Cristo possibilitou esta confiança.
V.4: Pois para onde vou, vocês conhecem o caminho.
V.5: Interrompeu-o Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos conhecer o caminho?
V.6: Replicou-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e ávida. Ninguém chega ao Pai, se não por mim.
V.7: Se vocês me conhecerem, também conhecerão meu Pai. Agora, pois, vocês o conhecem e vêem.
A mensagem de Jesus é inaudita e nova. O coração turvo é pequeno, apertado e bitolado demais para receber o Evangelho. A notícia da libertação é surpreendente demais para ser crida. Daí a pergunta, a dúvida de Tomé. A ida de Jesus, sua morte na cruz, excede o horizonte humano. Também o dos discípulos! Jesus compreende esta desorientação dos discípulos e lhes oferece nova oportunidade de aceitá-lo, revelando-se a si mesmo: Eu sou. Esta formulação encontramos mais vezes. Duas passagens parecem-me elucidativas: o flagrante da prisão de Jesus (cf. Jo 18.5) bem como o interrogatório perante o Sinédrio (Mc 14.62). Em ambas as passagens é descrita uma identificação policial. Jesus identifica-se e este ato sempre teve duas consequências:, por um lado, foi escândalo para os judeus (1 Co 1.23) e motivo para crucificá-lo (cf. Mc 14.63-64; At 7.56-57). Mas para os que foram chamados (1 Co 1.24) esta identificação traz paz. Na caminhada sobre o mar Jesus Diz: Sou eu! Não tenham medo (Mt 14. 27).
No v.6 Jesus concretiza sua identidade, afirmando que é o caminho. Ele é o caminho exclusivo e único. Os outros caminhos são desmascarados como sendo mentira e mortíferos. Nisto a Palavra de Jesus continua sendo, até hoje, chamado para a fé e, simultaneamente, motivo de escândalo. No contexto de nossa interpretação do Primeiro Artigo do Credo Apostólico isto significa: Somente ouvindo a Palavra de Jesus Cristo, que é pregada pelo Espirito Santo na Igreja, é possível crer em Deus, o Criador (Barth, apud Hübner, p. 340).
Jesus é o caminho. Os discípulos são chamados a caminhar nele. A partir deste chamado, sua vida é marcada pelo seguimento. Desistem de seus próprios caminhos e aceitam o caminho da cruz. Nisto a jornada requer obediência diária.
V.8: Aí Felipe pediu: Senhor, mostra-nos o Pai, e isto nos basta.
V9: Respondeu-lhe Jesus: Tanto tempo estou com vocês, e você (ainda) não me conhece, Felipe? Aquele que me viu, viu o Pai. Por que você diz: Mostra-nos o Pai?
V.10: Vocês não crêem que eu estou no Pai e o Pai está em mim ? As palavras que eu falo a vocês não provêm de mim mesmo! Pois o Pai põe em mim as suas obras.
V.11: Creiam-me que eu estou no Pai e o Pai está em mim. Se não, creiam por causa das próprias obras.
Jesus não é apenas o caminho que, uma vez encontrado o Pai, se torna obsoleto. Jesus afirma ser a vida e, com isto, identifica-se com o Pai.
Novamente os discípulos não conseguem abarcar a mensagem ouvida. Felipe não entende que o motivo de Jesus ser o caminho é justamente a sua identidade com o Pai e, por isto, pergunta pelo Pai.
Jesus não desiste. Continua lutando pela fé dos discípulos. Jesus não deixa buscar o Pai noutro lugar do que nele. O Pai fica visível nele, não ao lado dele nem acima dele (Schlatter, p. 227). O falar de Jesus é Palavra de Deus. Jesus não está fazendo promoção própria, não age por conta própria. Deus age nele. Por causa deste agir de Deus somos chamados à fé, por Jesus. Assim, pois, fica claro que não podemos falar de Deus sem confessar a Jesus.
IV – Síntese querigmática
Confessamos creio. Isto quer dizer: Fé não provém de mim mesmo, mas eu fui chamado para crer pelo próprio Deus, através de Jesus Cristo. Este convite implica na sua aceitação obediente de minha parte. Confessamos em Deus Pai, todo-poderoso. Isto significa: Deus não é projeção, imagem ou ideia ou produto da nossa religiosidade humana, mas sim, o Senhor onipotente que Jesus Cristo revelou como Pai que acolhe misericordiosamente os pecadores.
V – Sugestões para o sermão
Proponho orientar o sermão numa sequência de perguntas que o pregador vai escrevendo num quadro negro, durante a pregação. (Aliás, um quadro é um instrumento indispensável para a pregação!)
1. Tema: Que é fé?
2. Introdução: A confusão e desorientação sobre a fé. Coloque alguns exemplos vivenciados! (Não vou à igreja. Mas, graças a Deus, tenho muita fé! dizia-me um senhor numa conversa. Outro que negara contribuir para o trabalho da Igreja, argumentou: Não preciso, pois a gente dá se quiser. E o Senhor não acha que assim está negando a fé? Não, isto não é contra a fé. Mais vale dar para um pobre! Tenho minha fé. Esta ninguém me tira. — Colecione exemplos que vivenciou mesmo!)
3. Texto
4. Desdobramento: De onde provém a fé? Quem convida? Quem é convidado? Aceitar o convite? A quem dirige-se a fé? Quem é Deus? Como encontramos Deus? Para que cremos? Qual é o rumo da fé? Por que confessar a fé? Aviso de recebimento; louvor e gratidão.
VI – Subsídios litúrgicos
1. Cânticos: Hinos do Povo de Deus n° 213; 221; 240 e 257
2. Intróito: Isaias 6. 1-3
3. Leitura: Romanos 8. 12-17
4. Confissão (tópicos): Medo da solidão nascida das ameaças do mundo. Mencione as ações de despejo do mundo contra os discípulos. Confesse o desânimo, a fuga. Levante a voz por socorro. Não esconda as tentativas próprias de assegurar-se (ganância, seguros, dominação sobre outros).
5. Oração final: Louvor pela revelação. Gratidão pelo convite à fé. Alegria por Jesus. Agradecer pelas testemunhas da fé (pastores, professores da Escola Dominical, pais, padrinhos (?) e incógnitos). Pedir pela missão e difusão da revelação.
VII – Bibliografia
BARTH, H.M. Erfahrung, die der Glaube bringt. In: Wissenschaft und Praxis in Kirche und Gesellschaft. Ano 69. Göttingen, 1980, p. 567.
BRANDI, H. Meditação sobre João 14.1-12. In: Proclamar Libertação. Vol.2 São Leopoldo, 1977, pp. 63-71.
HÜBNER, E.Evangelische Theologie in unserer Zeit 3. eu., Bremen, 1969.
KELLY, J.N.D. Altkirchliche Glaubensbekenntnisse. 3. ed., Berlin, 1971.
LIENEMANN, W. Hören, Bekennen, Kämpfen. In: Evangelische Theologie. Ano 40. München, 1980, pp. 537 ss.
LUTHER, M. Der grosse Katechismus. In: Calwer Luther-Ausgabe. Vol. 1. 2. ed., München/-Hamburg, 1967.
MICHEL, O. Artigo OIKOS. In: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vol. 5. Stuttgart, 1954, pp. 122-133.
SCHLATTER, A. Das Evangelium nach Johannes. Stuttgart, 1970.
VOIGT, G. Meditação sobre João 14.1-12. In: Die grosse Ernte. 2. ed., Göttingen, 1976, pp. 247-254.
Proclamar Libertação – Suplemento 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia