O Desenvolvimento da Pesquisa em Torno de Lutero
Martin N. Dreher
OBSERVAÇÃO PRELIMINAR
O presente estudo foi preparado para um Encontro de Estudos sobre Lutero, realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais. Nele, estudo tão somente o desenvolvimento da pesquisa em torno de Lutero na área protestante e na historiografia marxista. A pesquisa católico-romana em torno de Lutero foi apresentada por outro palestrante. Como historiador protestante, tenho que dizer no início dessas minhas colocações que não desconheço a importância da pesquisa católico-romana e sei que foi justamente ela, pela sua maneira de fazer colocações, que provocou salutar desenvolvimento na pesquisa protestante.
Faço minha exposição apresentando, a um só tempo, as distorções do passado e as tentativas de correção que vou encontrando ao longo da história.
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Quando se lê a obra de Heinrich Bornkamm, Luther im Spiegel der deutschen Geistesgeschichte (1), pode-se constatar que dificilmente encontraremos uma personalidade da Idade Moderna e Contemporânea que não tenha feito colocações a respeito de Lutero e de sua obra. Creio que desde o século XVI não temos nenhum acontecimento da história que esteja de tal maneira relacionado com o nome de um único indivíduo como a Reforma com Lutero. Não encontro paralelo na Revolução Francesa nem na Revolução de Outubro de 1917. Não pretendo identificar Lutero com a Reforma. Sei que a Reforma é maior do que Lutero. Mas parece-me que a palavra ¨Lutero¨ é a chave, por meio da qual se tem acesso ao acontecimento-chave dos tempos modernos: A Reforma.
Tão variadas quanto são as interpretações daquilo que denominamos de Reforma, tão variadas são também as interpretações de Lutero. Creio que se um pesquisador protestante pudesse encontrar-se com Lutero na rua, em nossos dias, dificilmente iria reconhecê-lo; tantas são as imagens ideológicas e idolátricas que se formaram em torno do reformador. Temos imagens distintas de Lutero na Ortodoxia Luterana, no Pietismo Luterano, no Iluminismo, no período do Classicismo, no Idealismo e no Romantismo, na historiografia proveniente de Leopoldo von Ranke e naquela que se desenvolveu a partir da Teologia Dialética — para não falar nas imagens que existem no Catolicismo Romano antes e depois do Vaticano II ou no Marxismo.
Toda a imagem de Lutero corresponde a uma determinada ideologia e a imagem traçada por determinado autor corresponde a seu posicionamento diante de questões de sua época. O mesmo pode ser dito a respeito das pinturas feitas e que têm Lutero como tema. Em cada quadro uma ideologia. Sabendo das questões que afligiam uma determinada época, também estaremos em condições de compreender por que esse ou aquele aspecto da imagem de Lutero é realçado por determinado autor. Podemos inclusive detectar a determinante de uma determinada falsificação inserida na biografia de Lutero. Toda a biografia de Lutero é a tentativa de descrever o ¨verdadeiro Lutero¨, ¨assim como ele foi¨ e de construir um Lutero que corresponda às lutas, angústias e glórias do momento em que vive o autor da biografia. Assim, podemos encontrar biografias de Lutero em que nada temos de sua pessoa e obra e que ainda transformam Lutero no oposto daquilo que foi. Outros nos oferecem Lutero em um invólucro que temos que eliminar para poder encontrá-lo. Outros, afinal, nos dão o Lutero ¨verdadeiro¨. Mas, como descobrir a veracidade ou a falsidade de uma imagem de Lutero? Para isso necessitamos da leitura de Obras de Lutero, do testemunho de contemporâneos, de obras em que Lutero é situado no contexto dos acontecimentos de seu tempo.
O que apresento a seguir é uma coletânea de opiniões de pensadores, as quais não nos eximem de perguntas tais como: O que é a Reforma desencadeada por Lutero? Foi um movimento religioso, uma revolução? Caso foi uma revolução: Quem lhe deu o suporte? Camponeses, burgueses, baixo clero? O que conseguiu Lutero em seus dias? Conseguiu as mudanças almejadas? A realidade do mundo passou a ser diferente? Sua obra permaneceu nos séculos que se sucederam? Ou, teve rumos completamente diferentes?
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Vejamos algumas dessas imagens.
a) Quando Lutero morreu, em 1546, seus oponentes criam que pela primeira vez estava documentada, de maneira insofismável, a descida aos infernos (2). Melanchthon, o colega de Lutero, ao tomar conhecimento da morte do amigo e mestre, por seu turno, exclamou:¨Ach, obiit auriga et currus Israel¨ (¨Oh, foi-se o guia e o carro de Israel!¨), repetindo o grito de Eliseu ao ver o profeta Elias ascender aos céus no carro de fogo (2 Rs 2.12). Para ele, ¨pela obra de Martinho Lutero, (Deus) eliminou novamente as impurezas e o veneno das fontes do evangelho, devolvendo à igreja a doutrina em toda a sua pureza¨. Lutero, o Elias que luta contra os profetas de Baal, o mestre da Igreja, estava caracterizado (3)
Para outros ele era um verdadeiro Hércules. Seu ex-aluno, o Pastor Johann Mathesius, escreveria, em 1565, no prefácio de suas pregações a respeito de Lutero: ¨Pois como o eterno Filho de Deus, o supremo arcebispo de nossas almas, nos libertou, através desse homem maravilhoso, do reino e da doutrina atroz do Anticristo e reacendeu, e limpou o Evangelho obscurecido e como muitas pessoas que hoje vivem não sabem qual era a situação há 50 anos na oprimida e aprisionada Igreja, e muita pessoa mal-agradecida quer esquecer esse grande homem e sua fiel aplicação e trabalho, considerei aconselhável e proveitoso … fazer um relato pormenorizado, para a glória de Deus, e para o louvor e elogio desse bem-aventurado instrumento de Deus .. . ¨ (4) Lucas escrevendo a Teófilo a respeito do divus Lutherus! (Cf. Lc 1. 1-4). As críticas que Lutero recebera em vida também de seus adeptos, desaparecem. Muitos anos passariam até que essa imagem de Lutero fosse superada.
b) Em vida, Lutero sempre teve grande autoridade entre seus adeptos. No decorrer das discussões internas do protestantismo, com as quais nos deparamos nas décadas de 1550 e 1560, essa autoridade viria a crescer. Ponto culminante dessa tendência temos na Fórmula de Concórdia (1577). Nela os credos da Igreja Antiga são interpretados a partir de Lutero e não (!) vice-versa (5). Ele é visto como mestre exemplar da Igreja e passa a desfrutar, no seio da teologia, da autoridade do magistério infalível que se negava ao Papa. Entre os luteranos não há mais dúvida: Deus chamara, inspirara Lutero para reformar a Igreja. Com isso, as atenções concentraram-se em sua teologia e não em sua pessoa. Ele é simplesmente o anjo de Ap. 14.6, o qual tem na mão ¨o evangelho eterno¨ (Bugenhagen). Anjos não têm história! Ou, quando a têm, ela é maravilhosa, sobrenatural. Lutero passa a integrar o rol dos autores dos livros bíblicos, sua autoridade é praticamente idêntica a dos evangelistas e apóstolos. As eventuais discussões na interpretação de Lutero são encerradas em 1580, com a criação do Livro de Concórdia (6).
Na seqüência da ¨canonização¨ de Lutero devem ser vistas as festas jubilares da Reforma, que são introduzidas no período posterior à morte do reformador. Desde 1569, o dia de São Martim (11 de novembro), que é também o dia do batismo de Lutero, é celebrado na Pomerânia como dia de reverência a Lutero. Em Eisleben, cidade onde Lutero nasceu e faleceu, celebra-se a data de 18 de fevereiro, dia da morte do reformador. Não há um único dia para celebrar a Reforma. A situação modifica-se em 1617. Nesse ano, teólogos calvinistas (!) celebram a purificação da Igreja, levada a efeito por Lutero e iniciada com a publicação das Noventa e Cinco Teses de 31 de outubro de 1517. Talvez para documentar sua autoridade sobre a Igreja, o Príncipe-Eleitor Frederico V, do Palatinado Eleitoral, conseguiu estabelecer que a 2 de novembro de 1617 se reverenciasse a memória de Lutero em cultos festivos. A Faculdade de Teologia de Wittenberg, local de atuação de Lutero durante a maior parte de sua vida, por seu turno, solicitou ao Príncipe-Eleitor João Jorge II que igualmente ordenasse a comemoração do centenário da afixação das teses. Para a Saxónia Eleitora fixou-se a data de 31 de outubro a 2 de novembro para as comemorações. As pregações proferidas na oca-sião canonizavam a Lutero (7).
c) Esse tipo de interpretação de Lutero só vai começar a se alterar com o advento do Pietismo. O jurista Veit Ludwig von Seckendorf (1626-1692) altera ou modifica a imagem que até então se tinha de Lutero em sua obra ¨Commentarius historicus et apologeticus de Lutheranismo seu de Reformatione¨ (1688). Para Seckendorf, o jovem Lutero passa a ter novamente importância e, com isso, o homem Lutero e os primórdios do movimento reformatório voltam a ter importância. Seckendorf é o primeiro a voltar a fazer críticas a Lutero, se bem que bastante moderadas. Sua obra conclui com uma oração pela unidade dos cristãos! (8).
Seguindo a tônica que vai dar as suas colocações, o Pietismo, mesmo sem deixar de acentuar a importância de Lutero como mestre da teologia e da Igreja, acentua a praxis pietatis em Lutero. Por outro lado, não vai mais assumir acriticamente tudo o que Lutero afirmou. Os pietistas, por exemplo, vão ser unânimes ao ressaltarem o papel de Lutero frente a Roma, mas não vão mostrar a mesma unanimidade quando avaliam os posicionamentos de Lutero frente à ala esquerda da Reforma, os entusiastas. Desde o Pietismo não há mais uma interpretação uniforme de Lutero no seio do protestantismo. Spener, o pai do Pietismo, vai acentuar em Lutero aquelas passagens que falam de um novo nascimento e da piedade. Critica em Lutero aspectos ¨mundanos¨ e ¨naturais¨, que o reformador deveria ter superado. A tônica não vai mais estar na reta doutrina, acentuada pela ortodoxia, mas na vida de fé, que se espelha na oração, no amor a Deus e ao próximo. Nesse sentido, Spener via que a reforma de Lutero deveria ser concluída (9).
Mais radical que a crítica de Spener vai ser a crítica de Gottfried Arnold, autor da ¨Unparteiische Kirchen- und Ketzerhistorie¨ (¨História imparcial da Igreja e dos Hereges¨) (1699-1700). Arnold vê o valor de Lutero para a purificação da Igreja, mas critica-lhe os aspectos mundanos e nega-lhe a autoridade infalível em questões de doutrina. Faz crítica ferrenha a Lutero no tocante à ligação da Igreja Luterana com o Estado. Segundo Arnold, com essa ligação foi eliminada a autonomia das congregações e a Igreja foi violentada pelo Estado. As críticas, que Lutero outrora fizera a Roma, são agora levantadas por Arnold contra as Igrejas Territoriais Luteranas: A Igreja está corrompida por tradições humanas. Voltando-se contra o sistema teológico da ortodoxia luterana, Arnold inaugura um tipo de interpretação de Lutero que é o extremo oposto do que até então houvera. Arnold retoma questões que não haviam sido solucionadas nos dias de Lutero, principalmente em suas discussões com Karlstadt ou com Schwenckfeld (10).
d) O Iluminismo, retomando as discussões de Lutero com o papado, sublinha a negativa de Lutero de se submeter à autoridade papal. Na atitude de Lutero louva-se a luta em prol da razão e da liberdade de consciência. Lutero é, então, o homem que põe fim às horríveis crendices da Idade Média. Ele é o homem, no qual está agindo a Providência divina. Lutero representa uma fé progressista que, fazendo jus aos novos progressos alcançados, deve ser aperfeiçoada: tudo o que se volta contra a razão deve ser eliminado e superado. Esse é o legado de Lutero. Na boca desse Lutero esclarecido são colocadas as palavras: ¨Quem não ama vinho, mulher e canto é tolo por toda a sua vida¨ (¨Wer nicht liebt Wein, Weib, Gesang, der bleibt ein Narr sein Leben lang¨). O verso está documentado desde 1775. No Lutero esclarecido desaparecem os aspectos centrais da teologia reformatória: a teologia da cruz e a doutrina da justificação. O que resta é uma doutrina moralizante da autojustificação (11).
Mesmo que as formulações do Iluminismo, no tocante à teologia de Lutero tenham sido tudo, menos condizentes com a realidade, existe um aspecto que merece ser destacado. No Iluminismo vamos encontrar aqueles pensadores que deitaram as bases para um estudo histórico-crítico de Lutero e da Reforma. Aqui o teólogo Johann Salomo Semler (1725-1791) merece destaque. Semler é o iniciador da pesquisa histórico-crítica do cânone bíblico, mas é também o homem que deu importantes impulsos para um estudo crítico de Lutero e de sua obra. Semler nega que Lutero e os Escritos Confessionais Luteranas sejam infalíveis. Procura situar Lutero no contexto em que viveu e entendê-lo a partir daí. Com isso proporcionou boas pistas para estudos futuros (12).
Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), outro representante do Iluminismo, viu em Lutero a luta em prol de tolerância e liberdade. Essa tolerância e essa liberdade, Lessing não encontra na ortodoxia luterana, por isso vê que a defesa da liberdade e da tolerância na luta contra a ortodoxia é a continuação da obra de Lutero, e… considera-se o legítimo representante de Lutero em seu tempo (13).
O classicismo alemão, com Kant, Herder, Goethe, Schiller e Fichte, bem como o romantismo com Novalis e Schleiermacher não trouxeram nenhum impulso para o estudo de Lutero (14). Suas apreciações a respeito de Lutero são adaptações a sua própria maneira de pensar.
e) O século XIX vai trazer-nos aquilo que podemos designar de primórdios da pesquisa em torno de Lutero. Em 1826 publicou-se o primeiro volume de obras de Lutero da Edição de Erlangen (Erlanger Ausgabe — EA). A edição procurou ser crítica e completa. Pela primeira vez possibilitava-se um estudo profundo de textos de Lutero (15).
Paralelamente ao início da publicação da Edição de Erlangen e independentemente desta, Leopoldo von Ranke começava seus estudos científicos sobre Lutero e a Reforma. Ranke iniciou seus estudos frustrado com a pouquíssima literatura publicada em torno das comemorações dos 300 anos das Noventa e Cinco Teses de Lutero (1817). Ranke é o primeiro a não se deixar levar por escolas filosóficas a um estudo de Lutero; volta-se ao estudo das fontes. Mas essas fontes não são usadas para sedimentar tendências confessionais; Ranke observa-as no contexto de toda a história da Reforma. Só no contexto da história da Reforma é que, segundo Ranke, se pode entender o significado de Lutero. Entre 1839-1847, Ranke publicou as descobertas feitas em suas pesquisas na obra, para a época monumental, ¨Deutsche Geschichte im Zeitalter der Reformation¨ (¨História Alemã na Era da Reforma¨). Durante muito tempo os estudos desse historiador seriam normativos (16).
Ao lado de Ranke destacam-se, no século XIX, ainda os estudos de Albrecht Ritschl, de Theodosius Harnack e de Ernst Troeltsch. Ritschl (1822-1889) procurou estudar Lutero e a Reforma no contexto da história da teologia da Idade Média Tardia e de seus reflexos na Idade Moderna. Para ele o grande valor de Lutero reside na superação da metafísica especulativa e da mística. Lutero é o arauto da liberdade e da autonomia. A liberdade aqui não é mais entendida no sentido do Iluminismo, mas como liberdade frente às leis da natureza e da história e como possibilitação de domínio sobre o mundo. Digno de nota é o fato de que em Ritschl temos novamente uma pessoa que se ocupa com a teologia de Lutero. Ritschl apresenta Lutero a seus leitores como teólogo que tem questões decisivas a apresentar aos ouvintes do século XIX. Mesmo assim, Ritschl vai deixar aspectos importantes da teologia de Lutero de lado: a ira de Deus, o juízo, a relação dialética de lei e evangelho, bem como a radicalidade de sua doutrina de pecado e graça (17).
Os aspectos negligenciados por Ritschl vão ser acentuados por outro teólogo, Theodosius Harnack (1817-1889), cujo mérito é o de ser o primeiro a apresentar uma exposição sistemática da teologia de Lutero: ¨Luthers Theologie mit besonderer Beziehung auf seine Versöhnungs und Erlösungslehre¨ (2 volumes, 1862— 1866) (¨A Teologia de Lutero, com especial consideração de sua doutrina da reconciliação e da redenção¨). O subtítulo da obra evidencia o que Harnack pretende: no centro da teologia de Lutero estão a doutrina da reconciliação e da redenção. Somente a partir desse ponto central é que se pode entender aquela relação fundamental de Lei e Evangelho que perpassa toda a teologia de Lutero. Harnack redescobre o significado central da obra ¨De servo arbítrio¨, o grande escrito de Lutero contra Erasmo, e mostra que, segundo Lutero, não basta falar do amor de Deus sem que se fale ao mesmo tempo da ira de Deus (18).
f) No século XX, finalmente, vamos encontrar aquilo que podemos denominar de pesquisa em torno de Lutero. O homem que está inseparavelmente ligado à pesquisa em torno de Lutero é Karl Holl (1866-1926). Não se pode falar de pesquisa luterana sem Holl no século XX. Verdade seja, porém, dita que nunca tivemos condições para pesquisar Lutero tão intensivamente como no século XX. A base para tal pesquisa foi lançada há exatamente cem anos, em 1883, quando se lançou o primeiro volume da Edição de Weimar das Obras de Lutero (WA). Nessa edição, que entrementes aguarda a publicação de um registro, procedeu-se a uma publicação cronológica das obras e manuscritos de Lutero. Em seções especiais foram publicadas as cartas (WA Br), as Conversas à Mesa (WA Tr) e a Bíblia Alemã (WA DB). A Obra vem sendo continuada na publicação ¨Archiv zur Weimarer Lutherausgabe¨ (AWA). O esforço em torno dessa obra foi recompensado, pois no curso de sua publicação descobriram-se importantes manuscritos do jovem Lutero, entre eles as preleções sobre os Salmos (1513/15) e sobre a Epístola aos Romanos (1515/ 16). Com essas publicações pode-se acompanhar o desenvolvimento do jovem Lutero desde a sua entrada no convento dos agostinianos eremitas, em Erfurt, os primórdios de sua atividade docente até seus pronunciamentos frente à opinião pública. Com a publicação dos diversas volumes estavam dadas as condições para que se pudesse fazer afirmações solidamente fundamentadas a respeito de Lutero. Creio que a Edição de Weimar nos mostra que não existe personalidade dos tempos modernos sobre a qual estamos tão bem informados quanto sobre Lutero. Podemos observar cronologicamente seu desenvolvimento. Muitas vezes isso pode ser feito dia após dia.
As pesquisas de Karl Holl (19) sobrepujam todas as demais pesquisas feitas no início desse século (20). Discípulo do talvez maior pesquisador da História da Igreja dos últimos tempos, Adolf von Harnack (1851-1930), Holl parece predestinado para inaugurar a nova fase da pesquisa em torno de Lutero, pois está bem situado em todos os campos da História da Igreja. Com isso, consegue situar Lutero no contexto maior da História da Teologia. Não por último, Holl consegue acentuar a relevância de Lutero e de sua teologia para a época em que vive. Holl apresentou a teologia de Lutero em uma série de pesquisas, nas quais relacionou aspectos históricos e sistemáticos, descrevendo o desenvolvimento de determinadas concepções no pensamento de Lutero. Esses estudos foram publicados em um volume e ainda em nossos dias são fundamentais para o estudo de Lutero.
Em sua interpretação de Lutero, Holl coloca a pergunta pela situação do homem diante de Deus no centro das atenções. O homem sabe-se confrontado com Deus, mas não consegue satisfazer (satisfacere) ao apelo que vem de Deus. O apelo de Deus e a descoberta da incapacidade do homem em corresponder a esse apelo são apreendidos na consciência. A consciência é o lugar onde se dá o encontro do homem com Deus. Holl entende, pois, a religião de Lutero como ¨religião da consciência¨ (Gewissensreligion¨) (21).
g) Holl faleceu em 1926. Na Alemanha, centro das pesquisas em torno de Lutero, o campo eclesiástico começou a passar por polarizações entre os Teuto-Cristãos, um amplo grupo de centro e a Igreja Confessante, essa última fortemente influenciada por Karl Barth. As polarizações havidas durante o período do domínio nazista na Alemanha não deixaram de ter suas influências sobre a interpretação de Lutero. Por um lado prejudicaram bastante a imagem do reformador, por outro, levaram a um renovado estudo em torno de Lutero. Esse estudo se manifestou especialmente em uma série de trabalhos monográficos em que foram estudados aspectos da teologia e da vida de Lutero. As comemorações em torno dos 500 anos estão produzindo uma série de biografias. Nelas estão sendo introduzidas as conclusões e os estudos feitos nas últimas décadas. Mas o fato de nos últimos decênios não haver surgido mais nenhuma biografia realmente abrangente de toda a vida de Lutero está a evidenciar que há uma grande insegurança em torno da pessoa e da obra do reformador (22).
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Para concluir, faço algumas colocações a respeito da interpretação marxista de Lutero. Essa interpretação merece destaque, pois a direção do Estado da República Democrática Alemã esteve com o patrocínio dos festejos dos 500 anos do nascimento do reformador naquele país.
Para a interpretação marxista de Lutero, as ideias religiosas e políticas da Reforma não são causas, mas resultados da fase de transição do modo de produção feudal para o modo de produção pré-capitalista. Com base nessa tese, Marx e Engels, no século XIX, e historiadores da União Soviética e da República Democrática Alemã desenvolveram uma interpretação marxista do período da Reforma. Engels viu na Reforma a primeira das três ¨grandes batalhas decisivas¨ da burguesia européia contra o feudalismo. ¨A grande luta da burguesia européia contra o feudalismo culminou em três grandes batalhas decisivas. A primeira foi aquilo que nós designamos de a Reforma na Alemanha. O chamado de Lutero para a rebelião contra a Igreja foi correspondido por duas revoltas políticas: primeiro a da baixa nobreza sob Franz von Sickingen, em 1523, posteriormente pela grande Guerra dos Camponeses, em 1525. Ambas foram esmagadas, especialmente devido à indecisão do partido mais envolvido, os burgueses das cidades. … A partir desse instante, a luta degenerou em barulho entre os diversos nobres e o poder central imperial. … O segundo grande levante da burguesia encontrou a sua teoria de luta preparada no calvinismo. O levante ocorreu na Inglaterra. (…) A grande Revolução Francesa foi o terceiro levante da burguesia, mas a primeira que se libertara completamente do manto religioso e que foi travada em chão abertamente político. Mas também foi a primeira que foi travada até o fim, até o extermínio de um dos combatentes, a aristocracia, e até a vitória total do outro, a burguesia.¨ (23). Nessa formulação de Engels deparamo-nos com as principais teses que até hoje podem ser encontradas entre os historiadores marxistas: 1. A Reforma é um grande acontecimento revolucionário (¨rebelião contra a Igreja¨); 2. tem caráter burguês; 3. está relacionada com todo o movimento da época (revolta dos nobres, Guerra dos Camponeses); 4. está localizada no início de uma série de revoluções européias, das quais a inglesa é a segunda e a francesa a terceira.
Desde a década de 1950, historiadores da República Democrática Alemã vem falando da Reforma como da ¨frühe bürgerliche¨ ou ¨Frühbürgerliche Revolution¨, a ¨revolução burguesa primitiva¨, reservando o conceito ¨reforma¨ para caracterizar a ¨rebelião contra a Igreja¨. Reforma é, então, um entre outros acontecimentos da revolução burguesa primitiva, que abrange também a Guerra dos Camponeses e a revolta de Sickingen (23a).
Em 1981, a Academia de Ciências da República Democrática Alemã elaborou ¨Thesen über Martin Luther. Zum 500. Geburtstag. Martin Luther Ehrung 1983 der Deutschen Demokratischen Republik¨ (¨Teses sobre Martim Lutero. Em comemoração a seu 500º. aniversário. Homenagem a Martim Lutero 1983 da República Democrática Alemã¨) (24). Nessas teses, seguindo a terminologia cunhada na década de 1950, Lutero vai ser considerado ¨pertencente às grandes personalidades da história alemã de projeção mundial.¨ (25). Lutero faz parte das ¨tradições progressistas que nós cultivamos e transmitimos¨, no dizer de Erich Honecker (26). Lutero tem seu lugar ¨na multidão dos movimentos progressistas e revolucionários da história alem㨠(27). Essas mudanças são significativas, pois verificando-se colocações anteriores, nas quais Lutero era classificado de ¨traidor dos camponeses¨, ¨escravo de príncipes¨, ¨lambedor dos pratos¨ (dos príncipes), nota-se que novos ventos estão a soprar. Se antes o posicionamento de Lutero na Guerra dos Camponeses era classificado de ¨traição¨, fala-se agora em posição ¨trágica¨ (28). Lutero faz parte das forças progressistas que souberam criticar sua época. Destaca-se nele especialmente seus conceitos relativos à ética profissional, à educação e seus esforços em prol da língua alemã.
No todo, as teses formuladas na República Democrática Alemã são uma tentativa séria de avaliar positivamente a Lutero e a sua obra. Interessante é que se destaca também que a preocupação principal de Lutero se concentra na área da fé e da teologia (29). Quem se ocupa com a pesquisa de Lutero só pode desejar que os resultados dessa pesquisa frutifiquem também em nosso meio.
Notas
(1) BORNKAMM, Heinrich. Luther im Spiegel der deutsehen Geistesgeschichte. Mit ausgewählten Texten von Lessing bis zur Gegenwart. 2. ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1970.
(2) OBERMAN, Heiko A. Luther. Mensch zwischen Gott und Teufel. Berlin, Severin und Siedler, 1982, p. 12s.
(3) MELACHTHON, Filipe. Lutero visto por um amigo. Porto Alegre, Concórdia, 1983, p. 42.
(4) MATHESIUS, Johann. D. Martin Luthers Leben in siebzehn Predigten. Leipzig, Reclam, (1887?), p. 5.
(5) COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA (coord.). Livro de Concórdia. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução e notas de Arnaldo Schüler. São Leopoldo, Sinodal, Porto Alegre, Concórdia, 1980. Esp. p. 499ss.
(6) LOHSE, Bernhard. Martin Luther. Eine Einführung in sein Leben und sein Werk. München, Beck, 1981, p. 213s.
(7) LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 214s.
(8) LOHSE, Bernhard. Ibidem, p. 215.
(9) CL SPENER, Philipp Jacob. Pia Desideria, ed. p. Kurt Aland. 3. ed. Berlin, de Gruyter, 1964; LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 216s.
(10) Cf. SCHMIDT, Martin. Pietismus. Stuttgart, Berlin, Kôln, Mainz, Kohl-hammer, 1972, p. 84ss; LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 217s.
(11) Cf. BORNKAMM, Heinrich. op. cit., p. 16s.
(12) Cf. BORNKAMM, Heinrich. Ibidem, p. 17s; LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 219s.
(13) Veja-se os textos de Lessing in: BORNKAMM, Heinrich. Ibidem, p. 199-202.
(14) Textos em BORNKAMM. Heinrich. Ibidem, p. 205-248.
(15) Cf. LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 226.
(16) Veja-se os textos de Ranke in: BORNKAM_M, Heinrich. op. cit., p. 249-258, e ainda LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 227-228.
(17) Veja-se os textos de Ritschl in: BORNKAMM, Heinrich. Ibidem p. 285-290.
(18) Cf. LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 229-231.
(19) Quanto a Karl Holl, veja-se os estudos de WALLMANN, Johannes. Karl Holl und seine Schule. In: Zeltschrift für Theologie und Kirche, Beiheift 4. Tübingen, Mohr, 1978, p. 1-33, e SIEGELE—WENSCHKEWITZ, Leonore. Zu Karl Holls wissenschaftlichem Bildungsgang. In: Zeitschrift für Theologie und Kirche, Beiheft 4. Tübingen, Mohr, 1978, p. 112-119.
(20) Cf. HOLL, Karl. Gesammelte Aufsätze zur Kirehengeschichte 1 :Luther. 6. ed. Tübingen, Mohr, 1932.
(21) C. LOHSE, Bernhard. op. cit., p. 232-235.
(22) Um excelente estudo sobre a situação da pesquisa nos últimos anos encontramos em ZUR MÜHLEN, Karl-Heinz. Die Erforschung des ¨jungen Luther¨ seit 1876. In: Lutherjahrbuch. Organ der internationalen Lutherforschung. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 50: 48-125, 1983.
(23) ENGELS, Friedrich. Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft, Einleitung zur englischen Ausgabe (1892), citado in: BEUTIN, Wolfgang. Der radikale Dokter Martin Luther. Ein Streit-und Lesebuch. Köln, Pahl-Rugenstein, 1982, p. 192.
(23a) De grande valor são os resultados da pesquisa da Reforma, feitos na República Democrática Alemã, apresentados por LAUBE, Adolf, STEINMETZ, Max, VOGLER, Günter. Illustrierte Geschichte der deutschen frühbürgerlichen Revolution. Berlin, Dietz, 1982.
(24) 1. ed. Heiligenstadt, VOB Eichsfelddruck, 1981.
(25) Op. cit., p. 5.
(26) Ibidem, idem.
(27) Ibidem, p. 30.
(28) Ibidem, p. 19.
(29) Ibidem, p. 7.
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