1 – Algumas considerações preliminares
1.1 – Antes de mais nada, expresso minha alegria e gratidão a Deus que possibilita este primeiro encontro entre os pastores sinodais da IECLB e representantes da CNBB. Os dois grêmios são diretamente responsáveis pela definição e promoção da missão que Deus quer realizar em sua igreja e através dela.
1.2 – Em nosso contexto globalizado, os desafios missionários estão se tornando maiores do que uma igreja sozinha possa abraçar:
– pois, dos 6 bilhões da população nada menos do que 4 bilhões vegetam abaixo da linha de pobreza, segundo informação do próprio FMI;
– a Rede Globo difunde, em horário nobre via novela, ensinamentos islâmicos e espíritas;
– segundo recente pesquisa da Veja, 98 % da população brasileira afirma crer em Deus;
– contudo, apesar do crescimento populacionais igrejas históricas, via de regra, registram uma estagnação se não regressão do número de seus membros, enquanto movimentos, de caráter neopentecostal e carismático, crescem impressionantemente;
– as perguntas pela ética no campo da bio-tecnologia, da política econômica e da convivência transcultural ou intercultural estão assumindo dimensões globais. Não podem ser respondidas individualmente, nem por uma só igreja, nem por um só povo.
1.3 – Por isso, além do mandato que o próprio Cristo nos deixou em Jo 17.21, a realidade atual clama pela união de forças e recursos os mais diferentes.
Acerca da complexidade do momento atual do diálogo ecumênico reflete Gottfried Brakemeier em seu artigo Ecumenismo – repensando significado e abrangência de um termo, publicado na revista “Perspectiva Teológica, ano XXXIII, nº 90, 2001, p 195-216. Devo a ele algumas importantes ins-pirações.
Dada a amplitude do assunto, ouso apenas tecer alguns aspectos que julgo marcantes, desde a assinatura da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, celebrada a 31/10/1999 em Augsburgo. Faço esta tentativa, obviamente, a partir de minha percepção na IECLB, filiada ao CONIC, ao Clai, à FLM e ao CMI.
2 – Caminhada ecumênica entre avanços e retrocessos
2.1 – A eufórica alegria que caracterizou o evento da assinatura conjunta teve ecos também no Brasil. Houve celebrações ecumênicas em diversas comunidades da IECLB, como, p. ex., Porto Alegre e São Paulo. Em Brasília houve mesmo uma celebração de assinatura conjunta da versão brasileira.
2.2 – Essa alegria foi turvada e esfriada por notícias e publicações do Vaticano como, por exemplo, “Dominus Iesus”, a beatificação do Papa Pio IX, a reinterpretação do documento sobre indulgências e a reinsistência no celibato ministerial.
2.3 – Simultaneamente acontece que todas as igrejas históricas estão enfatizando o planejamento missionário, o que pode contribuir para uma maior estagnação de seu envolvimento ecumêncio.
2.4 – Também me pergunto, como alguém que olha o Vaticano a muita distância, se atrás do fato de o Papa João Paulo II, apesar de sua fraqueza física, se manter no cargo não esteja o interesse de um grupo muito forte que persegue seus interesses político-eclesiásticos.
2.5 – Com muita gratidão registro um belo exemplo do espírito ecumênico vivenciado pela comissão bilateral de diálogo, reunida nos dias 7-8/09/1999, no seminário de estudos sobre “Ministério e Ministérios Eclesiais”. Diante da recente publicação de ‘Dominus Iesus’ ela manifestou sua estranheza com esta declaração e, apesar disso, reafirmou seu propósito de continuar comprometida com a causa ecumênica. A Presidência da IECLB e a conferência dos pastores sinodais ratificaram o posicionamento. A mesma postura confirmadora do empenho ecumênico demonstrou a Conferência de Bispos e Presidentes das igrejas luteranas da América Latina, da América Central e do Caribe, filiadas à FLM.
3 – Em busca por redefinições
3.1 – Estamos em busca por uma redefinição do que vem a ser ecumenismo. Ela vai refletir e evidenciar os objetivos do mesmo. São antigas as polarizações entre ecumenismo de cúpula e ecumenismo de base, ecumenismo doutrinário e ecumenismo voltado à práxis. Entrementes deve ter ficado claro que se trata de ênfases distintas mas necessariamente complementares. Caso contrário o ecumenismo se desvirtua em pragmatismo ou em relativismo e perde toda identidade.
3.2 – No rastro da globalização da pluralidade pós-moderna, associou-se ao desejo pela unidade da Igreja, que caracterizava os primeiros tempos do CMI e inclusive o Vaticano II, também o desejo pela unidade da humanidade. Fala-se em ecumenismo das culturas, ecumenismo cultural e político, ecumenismo social e em ecumenismo planetário. Ao diálogo ecumênico se associa o diálogo interreligioso e intercultural em sua distição e interrelação. Surge a pergunta se a palavra ecumenismo ainda se presta em vista da amplitude dos desafios ou se não seria melhor falar em “Comunhão de Igrejas” a exemplo da FLM e mesmo em “macro-ecumenismo”.
3.3 – Com essas ampliações de conceituação sua tradicional fundamentação cristológica reclama um embasamento trinitário. O trino Deus é Senhor do mundo (Sl 24.1; Jo 1) e da Igreja. A comunhão tem nele sua origem e vocação. Na ‘koinonia’ há parentes mais próximos e outros mais distantes. Jesus manda amar a todos, inclusive os inimigos (Mt 5.44).
3.4 – Não podemos jogar um tipo de ecumenismo contro um outro, ou seja, o doutrinal contra o pragmático, ou do clero contra o da base. Importa resgatar o significado trinitário de Igreja e de criação, de passado, presente e futuro da humanidade. Na ecumene interreligiosa deve valer a mesma distinção e relação entre parceiros mais próximos e outros mais distantes. O imperativo consiste na busca de entendimentos, da amizade, da cooperação em meio às diferenças, salvo em casos de organização criminosa a exemplo de 11/09/2001.
3.5 – Devemos cuidar para não confundir ‘missão’, caracterizada pelo convite à fé em determinada igreja, com ‘ecumenismo’ que consiste na busca por paz e comunhão mediante reconciliação e compatibilização de diferenças. Ambas precisam cultivar a postura dialogal por causa da consciên-cia da fragmentariedade do conhecimento humano (1 Co 13. 8-10).
3.6 – Será uma questão de sobrevivência da humanidade e do planeta achar formas de comunhão com os de perto e de longe. Elas implicam perdão dos pecados, conversão à verdade e aprendizagem de misericórdia. Já que a comunhão plena permanece esperança escatológica empenhamo-nos hoje pela colocação de sinais concretos da nova comunhão. É nesse sentido que pretendo listar alguns aspectos da atualidade.
4 – Alguns sinais da comunhão ecumênica da atualidade
4.1 – Inicialmente, trago alguns fatos práticos:
a) Relembro as celebrações católico-luteranas após a assinatura da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação;
b) – há 23 anos, o bairro Vale do Selke, na cidade Pomerode-SC, caminha ecumenicamente, reunindo evangélicos luteranos e católicos num mesmo templo… e compartilhando a mesma infra-estrutura, bem como várias atividades. (ver anexo, Jornal O Caminho);
c) no ano passado, realizei o ato de ordenação de uma diácona da IECLB na igreja católica, em Paracatu, Minas Gerais, com ampla participação de ambas as denominações;
d) em 30 de dezembro de 2000, realizei a ordenação de um pastor proveniente de um seminário católico que, após o estudo de atualização e o período prático de habilitação ao ministério, agora é pastor de uma páróquia da IECLB.
São exemplos concretos de nosso ecumenismo católico-luterano. Poderíamos acrescentar experiências de cooperação semelhante com outras denominações. Neste aspecto, por exemplo, é muito importante a cooperação com a Igreja Metodista na área da educação teológica no Instituto Ecumênico de Pós-Gradução em São Leopoldo e São Paulo.
4.2 – Estas experiências são frutos de uma semeadura, de uma já longa caminhada de cooperação em causas comuns que fomos ensaiando. Desde os anos 50, houve diálogos bilaterais entre teólogos na Grande Porto Alegre. Há mais de 30 anos, as comunidades luteranas, católicas, metodistas e episcopais de P. Alegre promoveram a criação e a manutenção do SICA-Serviço Interconfessional de Aconselhamento. Em Porto Alegre também aconteceram os encontros mais significativos que levaram à criação do CONIC-Conselho Nacional de Igrejas Cristãs. Em muitas comunidades se realizam anualmente as semanas de oração pela unidade dos cristãos onde participam católicos, luteranos das duas igrejas, Assembléia de Deus e outras denominações. Nos anos do regime militar, as igrejas, pressionadas por desafios da coletividade, deixaram em segundo plano suas diferenças teológicas e somaram forças no empenho por justiça e paz, na Comissão de Pastoral da Terra, nas Comunidades Eclesiais de Base, em favor da reforma agrária. Criamos um serviço de assistência aos pequenos agricultores (CAPAs), que trabalha em base ecumênica, também em projetos de saúde, nutrição e medicina alternativa.
4.3 – As tarefas práticas, portanto, tiveram bastante peso e contribuíram para a aproximação. Mas simultaneamente prosseguem os diálogos teológicos entre a IECLB e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Esses encontros tiveram novo impulso através do debate em torno da Doutrina da Justificação pela Fé e após a assinatura conjunta deste documento. Além dos encontros regulares da comissão bilateral, ela organizou nos anos recentes três seminários de estudo: o primeiro, sobre a doutrina da justificação pela fé (1996); o segundo, sobre a hospitalidade eucarística (1998); o terceiro, sobre os ministérios (2000). Estão em andamento diálogos bilaterais também com a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Com ela a FLM está realizando, nestes dias, um seminário sobre a questão do ministério e a sucessão apostólica. Além de diálogos, programa de publicações e seminários de estudo, temos um convênio de cooperação com a Igreja Evangélica Luterana do Brasil que se concretiza, por exemplo, na publicação de 70 mil devocionários diários Castelo Forte, obras de Lutero e confecção de programas televisionados para o Dia da Reforma. Estamos dialogando com ela sobre a possibilidade de comunhão de altar e de púlpito.
4.4 – Paralelamente aos diálogos teológicos oficiais, foram surgindo iniciativas ecumênicas em outras áreas. Cresceram as co-edições entre editoras e a cooperação na área da comunicação como na União Cristã Brasileira de Comunicação. Participamos de entidades diaconais como a CESE-Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Salvador, BA) e a Diaconia (Recife, PE) que trabalham ecumenicamente em projetos de desenvolvimento visando amenizar o sofrimento dos segmentos mais carentes do povo. Cooperamos também no CESEP-Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular, no CEBI/CECA-Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria; CEBEP-Centro Ecumênico Brasileiro de Estudos Pastorais, na CELADEC-Comissão Evangélica Latino-Americana de Educação Cristã. Sem querer ser completo não posso esquecer as boas contribuições à fraternidade ecumênica trazidas pelo Movimento dos Focolares, com o qual temos boas relações pessoais. Além de integrar o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, a IECLB participa da Sociedade Bíblica do Brasil. A divulgação da Bíblia constitui uma base comum muito forte e essencial para a missão cristã no mundo de hoje. Fortaleceu-se também a presença evangélica na ADCE-Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas, e quero destacar a importância de as igrejas, apesar da opção preferencial pelos pobres, acompanharem com orientação ético-pastoral os líderes da economia.
4.5 – Estamos conscientes de que grandes contingentes ficam à margem do envolvimento ecumênico ou mesmo o julgam como traidor do evangelho. Várias igrejas neo-pentecostais, de linha evangelical, carismática, são avessas ao ecumenismo com as denominações protestantes históricas e principalmente com o catolicismo.
4.6 – De modo geral, considero importante essa proliferação ecumênica. Como cristãos e cidadãos, todos afetados pela globalização econômica, devemos nos dar conta de que estamos no mesmo barco. Precisamos crescer em direção a propósitos comuns, maior solidariedade, maior comunhão e unidade. Os grandes organismos ecumênicos em Genebra estão caminhando nesta direção. A Federação Luterana Mundial, desde há décadas, busca tornar-se cada vez mais uma comunhão de igrejas solidárias. E nisso estende a mão à Associação Mundial de Igrejas Reformadas (WARC) e ao Conselho Mundial de Igrejas, com o qual desenvolve iniciativas comuns, por exemplo o programa ACT-Action of Churches Together, para serviços de auxílio em calamidades internacionais. Neste serviço diaconal, por sua vez, há cooperação com a ONU e com organizações não-governamentais. No planejamento das grandes assembléias, também há estudos para uma melhor coordenação de eventos e temas. A tendência, portanto, vai no sentido de uma maior sincronização.
4.7 – Acho que isso seria importante também para nós, na América Latina. Muitas vezes, temos oportunidade de nos encontrar nos Estados Unidos ou na Europa. Precisamos fortalecer as relações sul-sul. Isso pode acontecer através do incremento de parcerias, pelo intercâmbio de estudantes, professores e obreiros, como já o estamos praticando principalmente nos países do MERCOSUL. Como luteranos, anualmente realizamos a COP-Conferência de Bispos e Presidentes da América Latina e Central. Seria desejável que sempre tivéssemos um participante do CLAI, ou um hóspede católico.
4.8 – Aumentam os desafios que precisam ser enfrentados em esforço conjunto, ou seja, por todos os segmentos da sociedade mundial. Penso, por exemplo, nas novidades sobre o mapeamento do genoma humano, nas clonagens, nas possibilidades de manipulação genética de plantas, animais e pessoas humanas. Na área da biogenética há novidades que já não são amparadas por estudos teológicos nem por legislação adequada. As descobertas científicas surgem aos saltos, mas a legislação carece de debates e está vinculada a processos de aprendizagem, de ritmo biológico. Como cristãos, devemos participar mais significativamente da política e como igrejas nos cabe a tarefa de acompanhar e orientar o trabalho de nossos cientistas e governantes, responsáveis pelo bem-estar da coletividade, da vida digna tanto da humanidade quanto do planeta. Devemos valorizar e comprometer todas as religiões, entidades governamentais e não governamentais bem como toda a sociedade civil, por causa do mandato que o trino Deus nos legou como seus mordomos e cooperadores.
5 – Concluindo
reafirmo a necessidade de continuarmos e intensificarmos o nosso empenho ecumênico aqui no Brasil e no nível sul-sul. Penso que devemos a Deus, às igrejas e demais religiões, às culturas e a toda a criação esta nossa contribuição.
Pastor Presidente da IECLB – Huberto Kirchheim