l — Palavras introdutórias
Nosso intento é compartilhar um pedaço da experiência colhida ao longo de nossas atividades em Cacoal, Rondônia. Isto nos remete para a história, sem a qual não conseguimos compreender a vida do povo e das comunidades aí presentes. Mas, não é a história dos dominantes, dos poucos que se saíram bem. É a história dos fracos, dos que nada têm, dos despojados de sua própria história, banidos de sua existência: de fala muda, de corpo surrado, gesto desfeito, canto calado. Contar algo de sua vida não-vivida requer a tarefa de ajuntar cacos de sua anti-história, espalhados pelos caminhos do sofrimento, pisados e enterrados pelo esquecimento das igrejas, da sociedade capitalista…
Os povos mais massacrados até hoje foram os indígenas Suruí, Cinta-Larga, Zoró, Mequéns, Uru-Eu Wau-Wau… Em cada povo sobrou uma semente santa — os que conseguiram resistir ao total extermínio. Mas continuam sob a ameaça das madeireiras, latifundiários, mineradoras… Borracha, madeira de lei, minérios, terra, sempre foram os alvos prediletos da classe detentora do poder dos estados do sul e sudeste (São Paulo, principalmente). Todos estes alvos sempre resultaram na concentração da terra e conseqüentemente, no etnocídio destes seus legítimos donos. Tudo se dava, é claro, não por acaso, mas em nome do desenvolvimento do Grande Brasil.
Os principais fatores que contribuíram para dar início à concen¬tração de terra em Rondônia foram o primeiro e o segundo ciclos da borracha que ocorreram em fins do século XIX e por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Na época foram conferidas grandes extensões de terra aos seringalistas.
A titulação das terras na Rondônia foi realizada em sua grande maioria pelos Estados do Amazonas e Mato Grosso, a quem pertenciam as terras que, a partir de 1943, constituíram o antigo território do Guaporé. Outra grande parte das terras foi titulada pelo governo do ex-território a partir de 1946, através de aforamentos e licenças de ocupação. Outro fator concentrador da propriedade em Rondônia foram as licitações promovidas a partir de 1972, com incentivos do governo federal para atrair investimentos da média e da grande empresa. Através do processo licitatório poucas pessoas ou empresas adquiriram grandes extensões de terra.
Considerando a parte mais recente da história vale ressaltar que até o ano de 1985, dos 24.304.480 hectares de Rondônia, 13.330.735 estavam cadastrados. Destes, 8.780.016 hectares pertenciam a 5% dos proprietários, o que corresponde a 2.550 proprietários, e 4.550.719 hectares pertenciam a 95% dos proprietários, correspondendo a 51.947 proprietários. Estes dados estatísticos são significativos. O resultado desta concentração de terras aponta imediatamente para o elevado número de aproximadamente 50.000 famílias sem-terra na Rondônia.
Esta concentração da terra nas mãos de poucos não se alimentou apenas do sangue sacrificial dos povos indígenas. Milhares de migrantes, lavradores e lavradoras que, uma vez já levados ao empobrecimento, são triturados uma segunda vez, na diabólica engrenagem da máquina do progresso brasileiro. Isto se dá a partir da década de 70 quando o Grande Brasil começa a atrair homens sem terra para a terra sem homens. Quem nada tem, nada terá a perder, nem a própria vida! Assim enormes massas de sem-terra arriscaram o destino adentrando na vasta mata amazônica. Destino este que, por ironia do sistema, já estava predeterminado: malária, pobreza, falta de saúde, morte… Muitos não esperavam por este cruel destino. Uma mulher que teve o seu marido assassinado por causa do conflito de terra dizia: Desde que isto aconteceu não tenho mais coragem de matar galinha. Com toda certeza a morte lhe ensinou o valor da vida e o valor de lutar por ela!
Outros se entregavam à dura sorte do destino. Não era opção. Era teimosia de viver.
Fazem 15 anos que viemos para a Rondônia. O INCRA nos deu terra em Ouro Preto (150 km de Cacoal). Eu (o marido), mais outros companheiros saímos a pé 75 km. Mais tarde, quando o lote estava aberto, a mulher também foi (com os/as filhos/as). Mas foi duro. Era uma malária em cima da outra. A mulher ficou muito fraca. Não deu para aguentar. Tivemos que abandonar o lote para se tratar. Viemos para Cacoal, trabalhar de meeiro. Mais tarde soubemos através da mãe deste homem que, dos 4 filhos, resta 1. Os outros três morreram em consequência da malária, um deles com três meses de vida. Mais uma família arrebentada em meio a esta multidão de gente que tem os seus dias contados. Não faz diferença. Para o sistema é normal, sacrifício do progresso.
II — A lógica do destino
Para compreender as razões que conduzem tantas pessoas a tamanho sofrimento temos que ter em vista a máquina que o produz. E perigoso cair no fatalismo de ver na própria pessoa as causas deste grande mal que é a migração. É claro que as más línguas dos que têm tudo a perder dirão: O povo brasileiro é migrante por natureza, não é muito achegado ao trabalho… Mas, em poucas palavras, a sabedoria popular nos coloca a par da situação: Lá fora (MG ou ES) não dava mais; a gente era meeiro e tinha esperança de possuir um pedaço de terra que seria da gente. Lá fora um pé de capim tinha mais valor que uma pessoa. O pobre não tinha mais vez. O rico tomou conta.
E claro, a terra regada com o suor e fecundada com o sangue de tantas mulheres, homens, crianças era agora pisada pelo boi. Porque no sistema capitalista nunca valeu e nunca valerá a pessoa. Vale o boi, a máquina, o robô… A produção, o lucro é o que importa.
Desta forma, Rondônia, apesar de já estar num processo avançado de concentração de terra, foi achada como válvula de escape para esvaziar os conflitos pela posse da terra que se agravavam cada vez mais. Uniu-se o útil (aos olhos do sistema capitalista) ao agradável (esperança do pobre) o que resultou em todo este processo migratório que marcou e marca a história no chão brasileiro.
Esta é a primeira razão dentro da lógica do capitalismo que vai premeditando o destino da humanidade. E consegue fomentar todo este êxodo forçado porque se reveste de uma roupagem completamente falsa: promessas bonitas e esperançosas, oferecendo chances de vida quando a vida está cada vez mais ameaçada e diminuída. A migração é a última gotinha de esperança desse povo lascado, que foge à ameaça do latifúndio! E parecem não acreditar naquilo que os espera aqui, na sua terra prometida: outra vez o conflito pela posse da terra. O problema é que ainda acreditam no sistema capitalista, e por isso se submetem a ele, aceitando as saídas que o mesmo propõe, na esperança de melhoras. Uma vez estando na terra prometida a ilusão cai por terra. Usados como testas-de-ferro recebem a missão de entregar a terra amansada para o grande capital que tem sede impressionante de se expandir e se instalar também aqui. O asfaltamento da BR 364 (Cuiabá — Porto Velho) é a maior prova disso.
As cidades vão crescendo assustadoramente, as lojas oferecem artigos de luxo, a última moda das metrópoles, madeireiras em suas oficinas fabricam móveis cobiçosos; telefone, antenas parabólicas, hospitais particulares à escolha… Enquanto isso no campo apodrece a produção de arroz porque não tem estradas para escoá-la e os preços são irrisórios. A malária continua matando. A lepra se expande. O conflito armado faz parte do pão de cada dia. E os migrantes continuam chegando dia e noite. Alguns já deram início ao futuro cinturão de miséria das cidades: a favela. Outros ainda estão numa melhor; vão conseguindo seu sub-emprego na indústria que está se instalando. Os que se instalaram na roça um dia vão ter que entregar (se já não tiveram que fazê-lo) a terrinha aos capitalistas.
Estamos cansados de observar como os cerealistas (compradores dos produtos agrícolas), comerciantes, profissionais liberais e outros estão adquirindo mais e mais os lotes (áreas rurais) dos lavradores. Explorados nos preços, e diante de uma política agrícola que desconsidera totalmente as reais necessidades do povo da roça, são obrigados a se desfazer de seus lotes. Outro fator que não pode ser desconsiderado é a necessidade de venda da terra por causa de uma despesa hospitalar. O atendimento por parte dos órgãos governamentais é extremamente deficiente. Aliás, é um dos grandes motivos porque um número elevadíssimo de famílias que há anos passados possuíam terra, agora estão à procura da mesma. A fila do exército de mão-de-obra barata, a favela, a remigração os espera. É o destino. É um universo de sofrimento sem fim. Até quando?
Ao ler estes apontamentos, você poderá estar se perguntando: Será que é assim mesmo? Não existem famílias bem situadas? A resposta será positiva. Em primeiro lugar você poderá perceber que nas cidades mora gente muito abastada. Em parte também a realidade do campo é esta, se bem que em outra proporção. Algumas famílias são vencedoras. Elas se sobressaem. Vão aparecendo como pequenos novos ricos. O sistema precisa promover alguns para segurar as pontas. A riqueza deles não é resultado do esforço meramente individual ou familiar. É claro que os mais bem situados tiveram a chance de ser mais espertos na aplicação de alguns recursos oferecidos pelos bancos em algumas ocasiões, ou porque tiveram a sua disposição famílias inteiras como meeiros, arrendatários, etc. para que pudessem ter uma produção em maior escala — como por exemplo, o café!
Ill — Quem são os/as luteranos/as nesta realidade?
1. Migrantes como outros
Dentre os milhares de migrantes que se deslocaram para esta região, também encontramos a leva de migrantes vinda principalmente dos Estados do Espírito Santo e Minas Gerais que fazem parte de nossa igreja. São descendentes de alemães pomeranos, em sua grande maioria. A migração interna representa mais uma face da história de opressão deste povo esquecido e marginalizado. Neste sentido a nossa igreja aqui, em seus primórdios, tem como semente de sua presença um povo escravo, resto de um resto, o lixo da sociedade e, em boa parte, de nossa própria igreja.
2. Resto de nossa igreja
Há pouco afirmamos que nossa igreja tem em sua origem aqui a marca do resto de sua própria história. Foram as famílias mais marginalizadas em suas comunidades de origem que formaram nossas primeiras comunidades na Rondônia. Por exemplo, dificilmente alguém no passado fazia parte da diretoria de uma comunidade. A sua participação na comunidade se resumia ao silêncio.
A gente ficava sentado mais no fundo da igreja. Lá na frente, perto do pastor, ficavam os mais ricos, os que tinham mais força e poder.
O senhor é quem sabe, pastor.
Lá fora, o pastor e o tesoureiro faziam tudo. Eles vinham na assembleia paroquial e diziam: Olha, gente, tanto cada um precisa pagar este ano — e pronto. Aí o povo ia embora.— Meu pai conta que antigamente o povo tinha mais respeito. Quando enxergava um pastor ou um soldado se escondia de medo.
Quando o pastor apontava numa esquina, a gente desviava de¬pressa para outra…
Estas e outras são expressões significativas que denotam o grau de dependência em que se encontra este povo, o qual foi, de fato, subjugado durante longos anos. E por isso hoje não dá para entender este povo, como diz Mariana (numa entrevista realizada com ela para a formulação deste trabalho).
O povo é muito frio, prefere viver na miséria do que lutar por seus direitos.
Esta sua afirmação tem fundamento. Ela não é tirada do nada. Inúmeros exemplos concretos (que no caso esta mulher ia colocando) vão tornando transparente o fatalismo em que este povo-massa está submerso. E nem poderia ser diferente. Como pode sobreviver um povo quando é jogado de um canto para outro, quando lhe arrancam suas raízes, lhe roubam sua dignidade? E a migração, no caso, destrói valores essenciais de sua mística de fé, tornando-os frios em relação a sua igreja/comunidade. As expressões abaixo confirmam isto:
Na igreja de Santa Maria (ES) me sinto em casa. Aqui me sinto como se estivesse na casa dos outros.
E nós não imaginamos o quanto são importantes alguns elementos externos da mística do povo: Aqui (na igreja) faz falta um coral de trombones, sinos badalando, chamando a gente para a igreja. Isto estimula a gente e anima a gente a participar na igreja.
IV — A tradição e a busca pelo povo
Ao falar da presença das comunidades da IECLB na Rondônia, algumas perguntas podem estar nos acompanhando: E possível uma igreja diferente? O que acontece nestas comunidades? Qual a possibilidade de nascer um novo jeito de ser igreja?
Estas e outras perguntas são colocadas como um desafio para o nosso trabalho. Elas sempre alimentaram nossos sonhos. Só que, ao chegar aqui, além de nos defrontarmos com um povo desenraizado até de seus valores religiosos, fomos percebendo que este povo permanece preso a uma tradição muito fechada, que cultiva uma espiritualidade desvinculada da materialidade da vida. Ser cristão não tem a ver com a luta pelo pão nosso de cada dia! É o lado negativo da tradição. E é muito forte. Provavelmente este fechamento se acentua aqui porque oferece um falso mecanismo de defesa e de segurança.
Aí também nos deparamos com uma realidade na qual o pastor foi e, em parte ainda é, a figura central. As marcas desta realidade são profundas. Inúmeras vezes tivemos a impressão de que membros fizeram de seus pastores o seu fundamento de fé, um semideus. Diante disto sempre foi necessário buscar com insistência e perseverança uma forma de estar a serviço do Evangelho, não no sentido de preservar uma tradição hierárquica de igreja. Pois tantas vezes o sacerdócio geral de todos os crentes tem permanecido como mera teoria. A presença tão marcante deste passado confirma isto. Eis porque hoje enfrentamos muitas dificuldades em articular um novo jeito de ser igreja. Não é possível fechar os olhos para esta realidade. A centralização de poder tem se transformado numa tradição escravizadora. Ela tem impedido a compreensão do Evangelho como um desafio comunitário e trans¬formador.
V — Sinais de esperança
Ao longo de alguns anos de caminhada vão aparecendo alguns sinais interessantes. Apesar de serem pequenos, são promissores. Parece até uma contradição com o que afirmamos acima. Mas não podemos esquecer de que nenhum sistema político por mais despótico que seja, nenhuma igreja por mais autoritária que seja, consegue calar em definitivo a voz de um povo. A sementinha subversiva permanece, e, quando a terra é revirada e regada, ela brota. Há muitas destas sementinhas por aí. Há muitos/as que aprenderam com esta história e por isso buscam caminhos diferentes a partir de uma nova sociedade, baseada na partilha e na vida abundante para os que hoje são os empobrecidos. Nos últimos tempos, temos experimentado que a leitura bíblica vem trazendo uma nova visão de ser igreja e de ser cristão/ã na sociedade. O estudo da Bíblia tem animado muitas pessoas. Falamos principalmente de um grupo de lideranças. Tem sido surpreendente o avanço na redescoberta do valor da Bíblia. Esta vem servindo como uma luz que ilumina todos os aspectos e setores da vida. Começa a haver uma clara relação entre a proposta bíblica e o sonho por uma nova sociedade. Dimensões do Evangelho esquecidas durante tantos anos tornam a ser redescobertas. Estas, por sua vez, começam a contagiar uma e outra pequena comunidade. Despontam sinais de um novo jeito de ser igreja. Fé e vida começam a aparecer não como duas realidades separadas ou opostas entre si, mas interligadas.
Alguns encontros de fins de semana, sob a coordenação destas lideranças, têm despertado especial interesse na continuidade destes estudos bíblicos. O manuseio da Bíblia, o estudo de alguns textos e/ou temas específicos fazem brotar sinais de esperança contagiante. Pessoas e comunidades pobres, marginalizadas historicamente, na sociedade em geral e na igreja, vão se tornando porta-vozes do Evangelho e sujeitos na construção de sua própria história. A dimensão económica, social, política e ideológica que perpassa nossa sociedade começa a ser vista com outros olhos. Há a percepção de que o que aí está não é assim por mero acaso. Desencadeia-se assim o envolvimento e a participação em órgãos e entidades que visam a organização da classe oprimida que reivindica seus direitos, como associações de lavradores, sindicato de trabalhadores (CUT). Aliam-se àqueles que lutam pela superação de uma sociedade dividida entre exploradores e explorados.
Ao finalizarmos, transcrevemos a avaliação sobre a atuação da igreja colhida num encontro de lideranças comunitárias a nível distrital. Neste encontro foi feito um levantamento dos principais problemas que o povo enfrenta na Rondônia. Logo após, entre outras, foi colocada a seguinte pergunta: Como a igreja está fazendo missão diante destes problemas?
As reações diante da pergunta foram as seguintes:
— A igreja vê os fracos, os pobres.
— Incentiva nas várias lutas dos pobres, dos índios, dos sem-terra.
— As pastoras/es e os leigos/as (lideranças) estão levando os problemas para o culto.
— Procura encorajar, pela Bíblia, para que não haja exploração.
— Há o envolvimento dos leigos/as nas comunidades nestes problemas.
— Apoia na prevenção de doenças.
— Trabalha para conscientização e pelo direito à terra (estudos bíblicos e CPT).
— Há incentivo pastoral para a conquista de direitos através dos sindicatos, associações e movimentos populares em geral.
— Promove encontros de estudos bíblicos com lideranças para melhor conscientização.
– Valoriza o trabalho de conscientização das mulheres.
VI- Bibliografia
– CENTRO de Estudos Migratórios. Migrações no Brasil. São Paulo 1986.
– SANTIAGO, A. G. Síntese da palestra apresentada no dia 24 de maio de 1986 na Universidade Federal de Rondônia. In: UNIR IV Encontro de Geografia: A Reforma Agrária. Polígrafo, Porto Velho!