Honrarás a teu pai e a tua mãe
Verner Hoefelmann
I — A posição dos velhos e jovens na família patriarcal
Como introdução ao tema do Quarto Mandamento, consideramos de fundamental importância uma compreensão básica a respeito da posição dos velhos e jovens na família patriarcal do Antigo Testamento. Um bom auxílio nos oferece o artigo de E. Gerstenberger, constante na bibliografia. Destacamos aqui seus principais pensamentos. As leis do Antigo Testamento e os livros de sabedoria conferem especial dignidade e honra aos idosos (cf. Ex 20.12; Dt 5.16; Ex 21.17; Lv 19.2,32; 20.9; Jó 29). Em termos de honra eles quase ocupam lugar ao lado de Deus (Lv 19.32). Por quê? Porque eles são os portadores da experiência acumulada do povo de Israel com o seu Deus Javé. Cabe-lhes intermediar esta experiência à geração seguinte (Ex 13.14; Dt 6.20ss). Portanto, toda a sociedade é orientada para os valores tradicionais do povo (Jr 6.16). A vida social e religiosa do israelita transcorre dentro destes moldes preestabelecidos.
Numa sociedade que valoriza tanto as tradições do passado, é compreensível por que a palavra, a experiência e a decisão dos velhos têm tamanha importância. Eles preservam os conhecimentos adquiridos pelo grupo e devem colocá-los a serviço da sociedade. Por essa razão frequentemente encontramos pessoas idosas em posição de liderança ou destaque.
E qual a posição dos jovens dentro desta estrutura social? A eles não resta muita coisa, além de adaptar-se ao seu grupo de convivência e deixar-se instruir pela sabedoria e experiência dos mais velhos, na medida em que vão assumindo maiores responsabilidades para com o seu grupo. Chegará o dia em que eles mesmos deverão responsabilizar-se pela conservação e transmissão dos valores tradicionais de seu povo, incluindo sua própria vivência. A vida para os israelitas é, então, um processo de amadurecimento dentro do grupo familiar e em seu beneficio.
II — Observações exegéticas sobre o Quarto Mandamento
O Quarto Mandamento encabeça a lista das assim chamadas sete prescrições sociais do Decálogo. Numa primeira leitura de Ex 20.1 -17, logo salta aos olhos que o mandamento relativo aos pais se diferencia formalmente dos demais. Enquanto os outros são negativamente formulados, em forma de proibições, o Quarto Mandamento, em nosso texto, encontra formulação positiva.
Etimologicamente, portanto, cabe apenas a ele a designação de mandamento, pois somente aqui o povo é exortado a expressar a aliança com Javé com atitudes positivas. Também o Terceiro Mandamento é positivamente elaborado, mesmo que logo a seguir seja complementado com uma série de proibições.
Muitas especulações foram feitas para explicar esta diferença formal entre os preceitos. O mais provável é que a formulação positiva dos Terceiro e Quarto Mandamentos refuta um estágio posterior na história da redação. Em algumas passagens, como Dt 27.16; Lv 20.9 e Ex 21.17, ainda encontramos a fórmula original negativa. Essa desapareceu no decorrer dos tempos, quando o Mandamento foi passado adiante de maneira mais aprofundada e desafiadora.
O lugar vivencial do Quarto Mandamento no Antigo Testamento slo típicas situações de conflito no seio da grande família. Que um tal conflito de gerações era possível, mesmo em se tratando de uma sociedade tão estática e patriarcal como a israelita, nos confirmam diversos exemplos no Antigo Testamento. Ao examinarmos a natureza destes conflitos, vamos chegar muito perto do sentido do verbo KAB-BED (honrar), que é fundamental para o mandamento.
Alguns textos, como Dt 21.18-21 e 1 Sm 2.22-25, parecem reforçar a compreensão tradicional do Quarto Mandamento, que interpreta honrar pai e mãe como o dever de obediência absoluta e incondicional dos filhos. Aqui realmente está sendo resguardada a tarefa educativa dos pais, e fortalecida a sua autoridade. Mas o próprio Antigo Testamento não esconde que esta autoridade não permanece incontestada. Veja-se, por exemplo, os episódios de Gn 27 ou 1 Rs 12.8. Ilustrativa, também, é a disputa pela sucessão do rei Davi (1 Rs 1). Nestes exemplos é principalmente a ambição por poder que leva os jovens a transgredir as regras estabelecidas e a contestar a autoridade dos mais velhos. Em todo caso, a pena prevista para o filho contumaz e rebelde, que não obedece à voz de seu pai e de sua mãe, é a morte por apedrejamento.
Outros textos apontam para a responsabilidade ético-social dos filhos em relação aos pais. Passagens como Ex 21.15,17; Lv 20.9; Dt vr 16, Pv 19.26; 20.20:30.17 condenam o mau trato, o desprezo e o abandono dos pais idosos, que já não estão mais fisicamente capacitados para o trabalho, e por isso estão entregues à misericórdia dos filhos. Honrar pai e mãe, portanto, também significa responsabilizar-se pelo seu sustento material, por sua proteçâo e segurança, quando o peso da velhice estiver esgotando suas energias vitais.
Como vemos, a diversidade dos textos não nos obriga a fazer uma escolha entre esta ou aquela interpretação, mesmo que o próprio Antigo Testamento constate a problematicidade da primeira. De forma geral poderíamos dizer que KABBED é uma expressão bastante abrangente, que designa diferentes formas de respeito que a geração mais nova deve à mais velha.
A crítica literária tem mostrado que os termos honrar pai e mãe constituem as palavras fundamentais do Quarto Mandamento. Como se pode verificar também em outros mandamentos, esta fórmula recebe complementações no decorrer da história da tradição, proveniente de seu uso litúrgico e catequético-didático. Em nosso caso, acrescentam-se as palavras: para que se prolonguem os teus dias na terra que Javé, teu Deus,te dá. Esta promessa de vida, que também a carta aos Efésios menciona especialmente em relação ao Quarto Mandamento (Ef 6.2s), vale, segundo a concepção do Antigo Testamento, também para todos os outros mandamentos (Dt 4.1). Vida longa é sinal de graça e consequência da obediência aos mandamentos divinos (Dt 5.16:30.19; Gn 25.8; 35.29; Jó 42.17). Que a promessa da terra é mais uma vez retomada no Quarto Mandamento (cf. Ex 20.2) provavelmente se deve ao fato de que é no pedaço de terra de cada família que a grande promessa da terra se concretiza para o israelita.
III — Meditação
Conversei com alguns grupos de Ensino Confirmatório sobre a interpretação do Quarto Mandamento, e não deu outra coisa: mesmo que, às vezes, as manifestações revelassem uma carga de inconfor-mismo e protesto, honrar pai e mãe foi assimilado pelo confirman-dos como o dever de obediência e submissão que cabe aos filhos. Até aqui nada de novo: é a célula mater da sociedade reproduzindo as relações sociais. Dependência material parece implicar simultaneamente em outros níveis de dependência. Quem não produz ou não pode usufruir dos meios de produção, é automaticamente excluído do diálogo, do debate, da participação, dos centros de decisão, da democracia. Este não tem direito de opinar, de discordar, de propor mudanças, de decidir. A ele só resta ouvir, assimilar, obedecer, e conformar-se.
Também em Lutero, é esta a linha predominante de interpretação do Quarto Mandamento, pelo menos de acordo com o seu Catecismo Menor e Maior. No Catecismo Maior, numa dissertação bastante ampla em comparação aos demais mandamentos, Lutero insiste em apresentar os pais como legítimos representantes de Deus, que devem ser honrados como tais, mesmo que tenham conduta imprópria. Não existe boa obra maior e mais nobre do que obedecer a eles. Aos filhos compete dar razão aos pais e silenciar, mesmo que eles sejam demasiadamente exigentes.
Por outro lado, da autoridade dos pais emana toda a autoridade humana. Lutero considera uma vergonha para os cristãos o fato de as autoridades não serem honradas e estimadas como pais, a exemplo dos romanos, que chamavam os senhores e senhoras da casa de pais e mães da casa, e os príncipes e governadores de pais da pátria. Também a obediência a estas autoridades é considerada vontade de Deus. Vemos aqui que o Quarto Mandamento é interpretado de forma a se tornar um fator de estabilização da estrutura social e política. E como Lutero fundamenta esta submissão à autoridade? De modo muito simples: este é um mandamento de Deus, e tudo o que Deus ordena deve ser muito sábio e justo do que nós mesmos possamos excogitar.
É evidente que esta compreensão do Quarto Mandamento é extremamente problemática para os nossos dias. Com justa razão, nossa sociedade procura libertar-se da visão patriarcal da família e da sociedade, em evidência no Antigo Testamento e na Idade Média. Em muitas partes as minorias (muitas vezes a maioria) oprimidas começam a conscientizar-se da discriminação de que são vitimas e a questionar os valores, outrora considerados intocáveis, que a possibilitaram durante tanto tempo; começam a perceber que estes valores são determinação divina coisa nenhuma. São, isto sim, resultado da astúcia daqueles que tem o poder nas mãos. Na ânsia de preservar seus privilégios e satisfa-/er seu prazer de dominar, são eles que dividem o mundo em classes: ricos e pobres, governo e povo, autoridade e subordinados. A uns cabe decidir e mandar, aos outros cabe obedecer e conformar-se. E para inculcar esta mentalidade na cabeça dos oprimidos, ainda por cima, se procura sacralizar esta ordem, como se ela fosse mandamento divino.
Também o relacionamento entre pais e filhos está sofrendo profundas transformações nos últimos decénios. Antes de qualquer coisa, as experiências de vida da criança estão cada vez menos restritas ao grupo familiar. Grande parte da responsabilidade educativa está sendo transferida dos pais para a escola e, de forma exagerada, aos meios de comunicação de massa. Vindos de um extremo (autoritarismo, patriarcalismo), estamos partindo para um outro (omissão, índiferentismo). Em consequência, já chegamos ao cúmulo de transferir uma responsabilidade que cabe aos pais, às babás eletrônicas. Quantos pais não respiram aliviados (e de consciência limpa) quando enxergam seus filhos consumindo comportadamente os enlatados de televisão. Ou então comecemos a prestar atenção ao número de menores carentes e abandonados que circulam sem rumo pelas cidades e orfanatos. Segundo estimativas, no ano 2000 o Brasil terá 70 milhões de crianças carentes, incapazes de reivindicar qualquer coisa. Atualmente o pats tem 25 milhões de menores em total estado de carência e miséria (Coojornal n° 61). Neste exemplo certamente divisamos os efeitos da pobreza sobre o relacionamento afetivo de pais e filhos.
Os dados acima nos fazem clamar por medidas estruturais. Mas eles apontam também para a necessidade de se reorientar as relações na família. Que os pais se lembrem disso: No Reino de Deus, proclamado e antecipado por Jesus, autoridade não é expressão de domínio e sujeição, mas de serviço e dedicação em prol do outro. Os filhos são os próximos mais próximos de nós, a quem devemos amar. Eles não são mão-de-obra barata, garrafa vazia que deve ser preenchida ou objeto de nossos caprichos, ambições e frustrações. Entendemos que os filhos devem ser levados a sério em sua individualidade, e integrados na família como parceiros de diálogo. Educação cristã é aquela que conduz para a autonomia responsável, e não para a dependência. Especialmente em nosso contexto, a família não pode tornar-se um lugar de domesticação das crianças, onde elas são preparadas para a obediência cega e acrílica e entregues sob medida para as estruturas opessoras e degradantes de nossa sociedade. A família deveria ser, isto sim, um lugar onde a participação critica e responsável é incentivada e exercitada — família como o lugar de ensaio de uma sociedade fraterna, justa e participativa.
Naturalmente que este é um processo conflituoso e sofrido, tanto para pais como para filhos. Mas é um processo necessário. É no confronto entre o velho e o novo, entre a tradição e a renovação, que a história deve buscar o seu dinamismo. Além do mais, desde Jesus Cristo não são os valores tradicionais que nos norteiam. Estamos a caminho do futuro, da realidade chamada Reino de Deus, presente na palavra e ação de Jesus Cristo, e questionadora de toda ordem estabelecida. Em termos de Decálogo, isto significa que o Quarto Mandamento deve permanecer sujeito ao Primeiro. Também no relacionamento entre pais e filhos importa antes obedecer a Deus do que aos homens (At 5.29; cf. Mt 10.37). Também no pensamento de Lutero encontramos esta ressalva, embora de maneira bastante modesta.
Por outro lado merece ser destacado que honrar pai e mãe é extremamente atual se for interpretado como um ato de justiça social, como uma exortação, não à sujeição, mas à ajuda aos fracos e marginalizados. Quer nos parecer que é esta também a interpretação predominante em Jesus. Os evangelhos sinóticos reproduzem o Quarto Mandamento em dois episódios da vida de Jesus (Mc 10.17-22 e Mc 7.1-23). Reportando-se ao Quarto Mandamento, neste segundo texto, Jesus demonstra como a tradição dos homens é usada para fugir à responsabilidade inerente aos mandamentos de Deus (Mc 10.8-13). Alguém podia fazer uma doação ao templo, subtraindo o objeto ao uso profano. Acontece que este uso degenerou em abuso, pois frequentemente se negava determinados bens a outrem, mesmo sem entregá-los sempre ao templo. Em nosso exemplo, os filhos se negam a prestar ajuda material aos pais, alegando que o que teriam à disposição é oferta ao Senhor (vv. 11-12).
Neste sentido, certamente temos exemplos em abundância em nossas Comunidades. Nem precisamos pensar nos asilos de velhos, onde muitos pais são internados para esperar a morte em abandono e •olidflo. Frequentemente eles se sentem abandonados e solitários em iua própria casa, ou mesmo na companhia dos filhos. Aqui teríamos razões suficientes para lembrar a Comunidade da dádiva da paternidade e maternidade. É através dos pais que Deus nos contempla com a dádiva maior, que é a vida. São eles que a conservam e a tornam possível, especialmente nos primeiros anos. E mesmo assim, com relativa facilidade esquecemos seu amor, dedicação e carinho. Como os escribas e fariseus, temos muitas ofertas a fazer, especialmente ao nos-ao comodismo e à nossa ambição. Na ânsia de fazer a nossa vida, nos esquecemos daqueles que a geraram. Também Lutero ressalta que nos compete honrar os pais por meio de atos, isto é, com o nosso corpo e bens, servindo-os, ajudando-lhes e cuidando deles quando idosos, enfermos, alquebrados ou pobres (Catecismo Maior, p. 412).
Esta tarefa de se postar ao lado dos fracos e enfraquecidos é de Ioda a Comunidade. É importante lembrar que o Quarto Mandamento (como todos os outros) não é dirigido a indivíduos, mas ao povo de Israel. O campo de trabalho é vasto. Abundam em nosso meio os que são excluídos da vida longa, plena e intensa, porque estão sendo pisoteados em seus direitos e em sua dignidade humana.
Para a prédica, sugerimos recontextualizar as duas linhas de interpretação do Quarto Mandamento, de acordo com as pistas da meditacão
IV — Subsídios litúrgicos
Sugerimos que os textos bíblicos sejam lidos numa versão atualizada, a fim de facilitar a compreensão para a Comunidade.
1. Intróito: Lucas 14.26
2. Confissão de pecados: Nosso Deus e Pai! Tua vontade é que pais e filhos vivam em família, enriquecendo-se mutuamente através do diálogo, da confiança, do respeito e da ajuda. Mas muitas vezes nosso relacionamento se torna difícil e pesado, porque o convívio frequente revela quem realmente somos. Também na família muitas de nossas vontades secretas desejam concretizar-se nossa sede de mandar e sujeitar outros aos nossos interesses, nossa impaciência, nosso orgulho, nossa dureza em perdoar, nossa busca por liberdade sem compromissos. Outras vezes queremos transformar nosso lar num paraíso, enquanto fora dele semeamos a injustiça, a discórdia e a miséria. Perdoa-nos, Senhor, e transforma a nossa mentalidade, fazendo de nos instrumentos de tua graça! Para tanto te pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
3. Absolvição: 2 Corintios 5.17.
4. Oração: Agradecemos-te, Senhor, que o teu Santo Espirito nos reúne novamente neste lugar. Confronta-nos com tua palavra; trabalha em nós, a fim de que também tua Comunidade se torne de fato uma família de verdadeiros irmãos. Por Jesus Cristo, Amém.
5. Leitura Bíblica: Mateus 15.1-9.
6. Assuntos para a oração final: Podemos agradecer: pelo amor, pela segurança, pela protecão que temos experimentado de nossos pais; pela alegria e pelo estimulo de nossos filhos, que muitas vezes nos devolvem o ânimo de viver; pelas pessoas dedicadas e prestativas, que colocam seus dons e sua energia a serviço daqueles que lhes são confiados, nas escolas, nos asilos, nos orfanatos; pelas pessoas que decidem adotar uma criança abandonada. Podemos interceder: por aqueles que desejam ter filhos, mas não os podem ter; pelos que, por falta de informação, geram mais filhos do que estão em condições de criar; pelas mães solteiras, que arcam sozinhas com a irresponsabilidade dos pais; pelos órfãos, que não têm mais pais para honrar; pelas crianças que sentem vergonha ou medo de seus pais, viciados em bebida ou jogo; pelos pais que geraram filhos excepcionais; pelos menores carentes e marginalizados; pelos idosos, que vêem seu amor recompensado com solidão e abandono; pelos aposentados, para que não se sintam aposentados para a vida; pelos que são vítimas do despotismo cruel das autoridades; pelos que dominam os meios de comunicação, para que os usem como meio de informação, educação e formação de consciências, e não para a deformação de mentalidades.
V — Bibliografia
BARTH, C. Das Elterngebot (Exodus 20,12). In; Gottinger Predigtmeditationen. Ano 67. Caderno 5. Gottingen, 1978.
GERSTENBERGER, E. A pessoa idosa no povo de Deus. In: Estudos Teológicos. Ano 21. Caderno 1. São Leopoldo, 1981.
LUTERO, M. Catecismo Maior. In: Livro de Concórdia. São Leopoldo/Porto Alegre, 1980.
PÄSCHKE, B. Religionspädagogische und sozialethische Erwägungen zum vierten Gebot. In: Zeitschrift für Praktische Theologie und Religionspädagogik. Ano 6. Caderno 1. Hamburg, 1971.
TEMPEL, F. Gerações em dúvida. São Leopoldo, 1970.
Proclamar Libertação – Suplemento 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia