Não matarás
Huberto Kirchheim
I — O Quinto Mandamento na compreensão da Comunidade
Via de regra, os Dez Mandamentos são compreendidos pela Comunidade como lei necessária para garantir o convívio e punir os transgressores da comunhão. Tal compreensão também se evidencia no próprio código dos povos. Nele se considera o ato criminoso consumado, mas somente em relação ao homicídio e não em relação ao suicídio. Além disso, não considera o sentimento de ódio que, por sua vez, já conflita com a intenção do Quinto Mandamento na compreensão neo-testamentária.
Conseqüentemente, os membros da Comunidade normalmente «stão com a consciência tranquila diante deste mandamento. Dizem: N3o matei ninguém! Dessa maneira o membro até consegue justificar-se perante Deus e os homens com o cumprimento, ao pé da letra, do mandamento. Por isso ele faz questão de que os mandamentos sejam transmitidos aos filhos e decorados pelos mesmos.
O pregador deve estar ciente dessas premissas e condicionamentos da comunidade em relação ao Quinto Mandamento.
II — O Quinto Mandamento no Decálogo
As diversas tribos de Israel haviam chegado à terra prometida e gradativãmente se fundiram em um povo.
Deus lhes deu o Decálogo como possibilitação de vida – vida com o próprio Deus e vida entre eles mesmos. Nesse sentido os primeiros três mandamentos se referem diretamente ao convívio com Deus, «nquanto que os outros sete se referem mais ao convívio entre eles. No entanto, importa sublinhar que o Primeiro Mandamento norteia, engloba e resume todos os demais.
Para a compreensão do Quinto Mandamento, no contexto do ünoálogo devemos destacar, sob o aspecto hermenêutico, a própria apresentação de Deus no Primeiro Mandamento, como o Deus misericordioso e bondoso que salvou o povo da escravidão no Egito. Por causa dessa ação libertadora e salvadora e Deus, os mandamentos não podem ser interpretados de maneira moralista e apelativa, mas sim positivamente como dádiva e Evangelho que possibilita comunhão autêntica em todos os sentidos.
III — Considerações exegéticas
Lembrando mais uma vez o que já foi dito sob o item II, a intenção do Quinto Mandamento é proteger a vida. Deus quer possibilitar a vida em comunhão consigo a entre os homens. Nisso se revela o Evangelho como manifestação do amor de Deus para com os homens.
Poderíamos traduzir essa intenção da seguinte maneira: Tu não precisas, não podes, não deves matar, ou melhor, cometer crime ou assassinato.
No Antigo Testamento este mandamento visa a proteção da vida do próximo dentro do povo de Deus (Israel). Este mandamento, porém, não tinha sentido absoluto, visto que na lei de Moisés admitia-se a pena capital, aplicada por ocasião de crimes, adultérios, blasfêmias e desrespeito aos pais. Ao mesmo tempo há passagens em que o próprio Deus cuida, protege e envia o seu povo à guerra. Isso significa que matar o inimigo na guerra, matar os que intentavam destruir o povo eleito não era considerado violação do Quinto Mandamento.
No Novo Testamento, porém, este mandamento é interpretado de maneira muito mais profunda e radical. Jesus dá a interpretação mais profunda e abrangente, na medida em que o mandamento não só abarca o ato criminal, mas também o pensamento e a intenção que podem levar ao crime (confira-se a primeira antítese em Mt 5.21-23: eu, porém, vos digo…). Dessa maneira Jesus quer dizer que a ira, o ódio, o aborrecimento e o desprezo dão origem ao crime, são a raiz que conduz à morte. Por conseguinte, a intenção de eliminar o próximo já leva em si a semente da violação do Quinto Mandamento (cf. Sabanes, p. 84 s).
Na quinta antítese, Mt 5.43-48, Jesus radicaliza mais ainda este mandamento ao insistir no amor para com o inimigo. Tal amor ilimitado, Cristo o pregava, vivenciava e ensinava. Perdoou aos que o crucificaram e não deixou aplicar a pena de morte à mulher adúltera. Jesus cumpriu o mandamento na sua intencionalidade. Como Filho de Deus espelhava, de maneira clara, o ser homem criado à imagem de Deus. Valorizava e defendia a vida até ao ponto de se deixar sacrificar na cruz, para que nós pudéssemos viver em paz, amor e comunhão com Deus e os homens. Sempre quando o homem, na intenção de ser como Deus (Gn. 3.5), se afasta do seu Criador e Salvador, arroga-se o direito de decidir sobre a sua própria vida e a dos outros.
Conseqüentemente a vida perde o seu valor (Gn 4). Sempre quando se pensa eliminar Deus, seja na família, na profissão ou na escola, na ciência ou na economia, aurge, de maneira inevitável, a eliminação do homem. Logo, um novo relacionamento com Deus determina um novo relacionamento entre os homens. Somente quando se sabe da santidade de Deus compreendera a última razão da inviolabilidade da vida humana. O homem vale al-yo na medida em que Deus vale tudo (cf. Hennig, p. 174 ss).
À luz dessa intencionalidade do Quinto Mandamento cabe-nos «valiar criticamente a nossa realidade.
IV — Meditação
1. Mortandade hoje
a) Mortandade individual e institucionalizada
O sistema sócio-político e económico vigente no Brasil e no mundo inteiro é um dos principais causadores de todas as manifestações de mortandade em geral. Esse sistema é fruto da ganância, avareza e da mania de grandeza do homem. Em consequência direta os filhos são educados para o sistema de produção, consumo e competição que invariavelmente favorece o forte e poderoso em detrimento do pequeno e fraco. Estes últimos, por questão de sobrevivência, muitas vezes são levados ao suicídio, crime e assassinato.
Por causa desse mesmo sistema, o homem mata no trânsito, legitima o aborto, justifica a eutanásia e, quando não rnais vê sentido na vida, até se arroga o direito ao suicídio. Por causa do mesmo sistema o homem opta pela energia nuclear que, cedo ou tarde, certamente se manifestará como arma mortal para a humanidade.
Motivado por esse sistema o homem investe em armamentos e espaçonaves; sustenta ou gera guerras, enriquece explorando o outro; destrói a natureza na medida em que polui os ares e as águas sem se preocupar com o futuro da humanidade.
Não mais haverá futuro para a humanidade se a poluição atmosférica continuar aumentando nesta intensidade. A propria radiação solar acabará com todo o tipo de vida na terra devido à falta de filtração atmosférica.
b) Mortandade em nome da religião
Em nome de Alá se matava e se continua matando. Pensamos nos conflitos no Irã e nas guerras santas. Lamentavelmente no cristianismo não era muito diferente. Basta pensarmos nas Cruzadas ou na bênção de armas para a guerra. Parece que esses tempos ainda não passaram. Os conflitos na Irlanda, de uma ou outra forma, são motivados pela religião cristã.
Em nossa própria IECLB existem conflitos teológicos que se manifestam, na prática, em absolutizações, marginalizações, agressões e em disputas pelo poder nos mais diferentes níveis. Além disso, pensamos na falta de fraternidade entre as Paróquias. Geralmente a Paróquia mais forte se instala muito bem sem se preocupar com a Paróquia fraca no sentido de repartir com ela. Conforme Lutero, é necessário ajudar ao próximo e favorecê-lo em todas as necessidades corporais (Catecismo Menor). Será que estamos ensaiando esse amor fraterno na prática de nossa vida eclesiástica? Atualmente estamos avaliando o anteprojeto da nova regulamentação da subsistência de pastores. Em termos gerais se visa uma elevação da subsistência base – o que parece ser bastante justo. Fica, porém, a pergunta: Como as Paróquias fracas vão poder pagar isso? Será que as mais fortes não deveriam repartir com as fracas?
Nesse contexto também podemos lembrar a nossa habitual resistência diante da dimensão sócio-política do Evangelho. Em nossa igreja há muitos irmãos que combatem qualquer tentativa de lutar com meios pacíficos por mais justiça social. É difícil apoiar um movimento de greve ou o acampamento dos colonos sem-terra em Ronda Alta. Não conseguimos apoiar e reforçar teologicamente um político evangélico. Sentimo-nos mais seguros e tranquilos ao lado dos fortes e poderosos do que ao lado dos pequenos e fracos.
Em tudo isso percebemos a nossa falha, transgressão e omissão diante da intencionalidade do Quinto Mandamento. Conseqüentemente só nos resta capitular.
2. A nossa total capitulação diante do Quinto Mandamento
Lutero diz: Todo mundo é como cão raivoso que mostra seus dentes sangrentos. Conforme o conceito de Jesus, todas as coisas que arrolamos sob os itens a) e b) anteriores e muito mais ainda são pecado contra o Quinto Mandamento. Frente à radicalidade e atualidade deste mandamento só podemos desesperar. Mas esse desespero nos – quer levar para Deus. O Deus que ordena Não matarás também envia o Salvador ao mundo. Deus quer que vivamos! Em Cristo ele assume vida humana. Ele é o sim de Deus para a vida (cf. Lüthi, pp. 121 s). É necessário colocarmo-nos humildemente sob a cruz de Cristo e confessar a nossa culpa e a culpa de toda a humanidade. Cristo age nos fracos e pequenos e através deles.
3. Cristo é a única esperança para a nossa vida e para toda a criação
a) Cristo é a nossa esperança individual e eclesial
Ele aceita a nossa confissão de fracasso e nos aceita como fracos e pequenos. Dessa maneira transforma-nos em irmãos dos pequenos e fracos e nos sensibiliza para com o seu sofrimento. Capacita-nos a carregar os fardos uns dos outros (Gl 6.2). Elimina preconceitos, arro-gâncias, discriminações e barreiras existentes em nós e entre nós e estabelece uma nova comunhão, na qual se promove a vida contra a morte. Abre-nos os olhos para esse sentido de vida!
Cristo, já agora, possibilita o ensaio da fraternidade dentro da Comunidade e entre as Paróquias. Além disso, ele nos liberta da mania de grandeza, da imposição e da manipulação para uma nova mentalidade de serviço mútuo, cada um conforme o dom que recebeu. Que implicações advêm dai para o conceito de pastorado e Comunidade? Cristo nos liberta para repartir o que nos foi confiado. Isso implica em auxilio mútuo entre Paróquias, de maneira tal que as pequenas e fracas sejam socorridas pelas mais fortes.
b) Cristo é a nossa esperança estrutural
Ele nos dá valores de vida que desmascaram a institucionalização da matança e nos faz questionar o próprio sistema sócio-politico (cf. Item IV, 1. a). Em contrapartida Cristo mesmo nos motiva para a luta em favor de estruturas que preservem e promovam a vida contra a morte. Por causa do Evangelho o cristão só pode acompanhar, orientar e reforçar movimentos de greve ou protesto que visam uma melhor distribuição da renda, a defesa dos legítimos direitos dos pequenos e fracos, a preservação da natureza e o desarmamento em favor da paz.
c) Cristo é a nossa esperança de eliminação definitiva da morte
Esperamos que Cristo volte em poder e majestade para eliminar definitivamente a morte com todas as suas manifestações (cf. 1 Co 15 26; Ap. 21. 3-5), criando novo s céus e nova terra, nos quais habite justiça.
Por causa dessa esperança não nos podemos deixar conformar com o estado das coisas nem cruzar os braços. Somos impelidos para a luta em favor da vida contra a morte. Dessa maneira permitimos, já agora, que Cristo possibilite em, entre e através de nós sinais visíveis e concretos de nova vida na medida em que os pequenos e fracos têm voz e vez (cf. Mt 25. 35-40).
Podemos temer e amar a Deus e, portanto, não causar dano ou mal algum ao nosso próximo em seu corpo; mas podemos ajudá-lo e favorecê-lo em todas as suas necessidades corporais (cf. Catecismo Menor).
V — Sugestões para a prédica
Para o pregador é importante conhecer a compreensão da Comunidade em relação ao Quinto Mandamento. Além disso, alertamos para o perigo de se pregar lei e moral. Importa perceber a intenção evangélica do mandamento em termos de possibilitação de vida em comunhão, amor, justiça e paz. A prédica poderia seguir os passos da meditação, conforme os itens l e IV.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Textos para intróito: a) Jo 10.1 Ob; b) Lc 1.68-79 (a ser lido pela comunidade em 2 grupos como responsório). Portanto louvemos ao trino Deus: Gloria seja ao Pai…
2. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai, tu és o Criador da vida e nos confiaste a missão de preservar e promover a vida contra a morte. Por essa razão nos deste os teus mandamentos. Na tua presença e à luz da tua Palavra reconhecemos o nosso fracasso. Vês e sabes o quanto nós nos conformamos com tanto desamor, injustiça, miséria, crime e mortalidade. Sabes que, sempre de novo nos resignamos diante de tantos desafios. Temos falhado na missão de preservar e promover a vida.
Por causa de teu Filho Jesus Cristo, nosso Salvador, nós te rogamos humildemente* Perdoa-nos a falta de fé autêntica e praticante. Liberta e transforma-nos para que sejamos instrumentos teus que preservem e promovam a vida contra a morte. Tem piedade de nós, Senhor!
3. Absolvição: Assim diz Cristo para os que se voltam a ele: (leia-se Jo 8.12b).
4. Oração de coleta: Querido Deus e Pai, agradecemos-te por nos teres perdoado e aceito como teus filhos por causa de Cristo. Concede-nos agora o teu Espirito Santo, a fim de que experimentemos verdadeira comunhão uns com os outros. Faze com que à luz da tua Palavra, reconheçamos a tua vontade para a nossa vida neste mundo tão conflituoso. Ajuda-nos a louvar-te com todo o nosso ser por causa de Jesus Cristo, que reina contigo e o Espirito Santo de eternidade em eternidade! Amém.
5. Leitura Bíblica: Mt 5.21,22, 43-48.
6. Assuntos de intercessão na oração final
Pelos que perderam o sentido de vida e são ameaçados pelo perigo de suicídio;
Pelos que levam outras pessoas ao desespero ou suicídio por sua conduta e maneira de ser;
Pelos que por ignorância, irresponsabilidade ou necessidade sócio-econômica cometem aborto;
Pelos que por ingenuidade ou irresponsabilidade no trânsito põem em perigo a sua própria vida e a de outros;
Pelos que põem em perigo a vida dos operários, devido à falta de segurança no trabalho;
Pelos que derrubam inescrupulosamente as poucas florestas ainda existentes, destruindo o equilíbrio na natureza;
Pelos que produzem a qualquer preço, poluindo os ares e as águas, tanto na indústria como na lavoura;
Pelos que incentivam a indústria armamentista e produzem guerras;
Pela nossa IECLB, seus lideres em nível comunitário, paroquial, distrital, regional e nacional, para que saibam facilitar o nosso ser Igreja no sentido de sinais concretos e visíveis da luta pela vida contra a morte.
VII — Bibliografia
HELBICH, H.—M. Katechismus 74. 2.ed., München, 1974.
HENNING, K. Das Grundgesetz Gottes. Stuttgart, 1962.
LUTERO, M. Catecismo Maior. São Paulo, 1965.
LUTERO, M. Catecismo Menor. 8.ed., São Leopoldo, 1976.
LÜTHI, W. Die Zehn Gebote Gottes. Basel, 1950.
SABANES, J.R. Libres para obedecer. Buenos Aires, 1979
Proclamar Libertação – Suplemento 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia