Ainda no espírito do Dia Internacional da Mulher, vale a pena ler as colocações sensíveis da pastora Margarete Emma Engelbrecht, da Paróquia Esperança, Niterói (RJ). Marga, como é carinhosamente conhecida, é divorciada e tem um filho e uma filha: João Elias de oito e Luiza de 13 anos. Natural de Canela (RS), está em Niterói há quatro anos.
SRZD-Fé: Quando você descobriu que tinha vocação para o sacerdócio? Foi incentivada pela família?
Margarete: Fui criada “dentro” da igreja. Desde pequena participei de grupos e eventos na comunidade evangélica luterana. Sempre me senti chamada a trabalhar, a ocupar meu lugar, a ocupar o espaço que se abria a cada nova etapa em minha vida infantil, em minha vida adolescente. Na vida em Comunidade fui percebendo claramente que havia mais a fazer, mais a trabalhar tanto ali, na comunidade que eu participei, como nas comunidades religiosas ao redor (o ecumenismo foi sendo vivenciado mesmo sem saber da teoria), e em comunidades mais distantes. Essa é minha vivência até hoje: aprendo, reconheço o chamado, e vou descobrindo que há sempre algo a mais a fazer, a partilhar, proclamando o Evangelho, da Vida, do Reino de Deus. Isso nem sempre é doce…O Evangelho faz a gente não conseguir mais conviver com injustiças, com desigualdades…E isso também fez parte da minha vida desde a infância. A família, assim como gente da minha infância e adolescência, sempre me incentivou a viver minha vocação quando era algo “bonito”. Quando essas pessoas queridas souberam que minha vocação faria eu percorrer caminhos difíceis, de denúncia e de solidariedade a quem sofria, isso não era incentivado e sim, ou rechaçado diretamente ou motivo de gozação.
SRZD-Fé: Como é a formação de pastores e pastoras na Igreja Luterana?
Margarete: Fazemos um vestibular depois da formação completa em escola e entramos na Faculdade. Ali percorri 6 anos de formação em horário integral. Além de aprender línguas originais da Bíblia (grego e hebraico), a história da igreja cristã desde os primórdios era algo bem diferente do que eu havia aprendido até ali. Aprofundar exegese (estudo de textos bíblicos) de forma científica (pesquisando sobre termos que traduzíamos e descobrindo em que época havia sido escrito, em qual “mundo” se pensava quando alguns textos foram escritos) me trouxe a certeza de que a Bíblia devia ser tratada com seriedade. Aprender de áreas como sociologia, psicologia e filosofia, me mostrou que teologia não é uma matéria para se percorrer sozinha: é interagindo com outros conhecimentos que podemos servir, em busca de Vida, em busca de servir a Deus aqui, neste mundo, com as dificuldades e com as quase certezas que o mundo apresenta.No meio do curso, fiz um estágio por seis meses, aprendendo tanto do trabalho paroquial, como da experiência pastoral em movimentos populares. O estágio era parte integrante do curso de teologia, mas eu podia indicar áreas que tivesse interesse. Indiquei o trabalho em área rural, já que eu não tinha qualquer experiência nesta área. A convivência com colegas já formados trouxe a certeza de que eu optaria por trabalho em comunidade, quando formada.Depois do período de formação na Faculdade, há um período de formação prática. Algo parecido com a “residência” na área médica. Na época da minha formação, este período era de dois a três anos. E só depois desse tempo é que me submeti a um “segundo exame”, que me capacitou a receber a ordenação ao sacerdócio. Ao todo, foram 10 anos de formação. Hoje há um tempo menor de formação, cinco a seis anos ao todo. Depois de formada, pude exercer a função de monitora (de estágio) ou de mentora (do período pós-formação na faculdade). Ali, convivendo com quem está em tempo de formação teórica, nossa prática é questionada e, de certa forma, atualizada por estudantes. E isso auxilia o trabalho que tenho na Comunidade. No primeiro campo de trabalho em Comunidade nós nos submetemos a um “envio”. É uma maneira de nos deixarmos guiar não por nossos interesses, mas colocarmo-nos a serviço “para o que der e vier”. Já os outros trabalhos vão surgindo a partir de contatos de Paróquias que já conhecem o trabalho que foi feito, assim como nossas expectativas de trabalho. Há uma “eleição”, geralmente entre vários candidatos e candidatas, por parte dos campos de trabalho.
SRZD-Fé: Conte um pouco da sua trajetória nas paróquias e dos trabalhos que coordenou até chegar na paróquia de Niterói.
Margarete: Minha primeira paróquia foi um conjunto de Comunidades rurais. A vida lá era diferente de tudo que eu já tinha visto e por isso mesmo foi um aprendizado constante e lindo. A tradição brotava naturalmente porque era vivenciada no cotidiano. A proclamação do Evangelho exigia alguns rompimentos – tínhamos contato com uma equipe multidisciplinar que orientava as pessoas que trabalhavam na roça para um trabalho saudável e não tão escravizante. A segunda paróquia já foi um misto entre Comunidades rurais e periferia urbana. A tradição era questionada justamente porque nem sempre trazia valores que eram vivenciados no dia a dia. Da igreja, muitas vezes, se espera uma lista de tradições, mas isso não é pregação do Evangelho. A vida precisa ser anunciada não como um passado lindo e perdido, mas como certeza de um amanhã que já começou. Assim como na Paróquia anterior, trabalhei por sete anos ali. Fui, então, trabalhar na coordenação de um abrigo para crianças e adolescentes por dois anos. Não foi um trabalho “eclesiástico”, mas eu senti o chamado ao sacerdócio naquela realidade tão massacrada. Com certeza, trabalhei como pastora ali, o tempo inteiro, mesmo não sendo uma comunidade da igreja. Estou em Niterói há quatro anos. Atendo comunidades distantes (além de Niterói, há trabalho na região Norte-Fluminense e em Teresópolis), e a comunidade aqui é bem pequena. Mas há um universo de perspectivas de trabalho, uma rotina nunca repetitiva. Não há uma “receita pronta” de atendimento pastoral, mas há muito ingrediente para se pensar em receitas diferentes a toda hora. E isso, com certeza, me traz a certeza de que Deus me chama para participar desse trabalho, dessa “Esperança” (é o nome da nossa Paróquia aqui).
SRZD-Fé: Pastoras de outras denominações cristãs dizem que ainda há preconceitos e que existem comunidades que não aceitam pastoras. Como mulher e pastora, você sofre ou percebe de algum tipo de discriminação dentro da Igreja?
Margarete: Eu não fui aceita em alguns campos de trabalho para o qual eu me candidatei antes de vir para cá. E tenho consciência de que foram escolhas a partir de gênero. Se mulheres cometem algum erro, diz-se que “fecharam” o campo para trabalho feminino. Se homens erram, não se evoca o gênero masculino como sendo “fator de risco”. Entendo que as comunidades refletem a cultura que vivem. E temos exemplo, em outras tantas profissões ou mesmo na divisão de tarefas em casa, da discriminação da mulher. A igreja, como instituição, tenta romper com essas realidades. Mas é difícil romper com tradições e com valores mantidos por gerações. Como são as comunidades que escolhem os pastores e pastoras, a última palavra é de pessoas das comunidades, que muitas vezes vivenciam o preconceito em suas próprias vidas. E às vezes, é melhor manter o preconceito do que se expor à mudança de comportamento.
Mesmo assim, em 20 anos de pastorado há muita diferença. Há muito mais pastoras do que quando iniciei. E, muitas comunidades que nem mais cogitam perguntar pela diferença. Importante é que o trabalho seja feito e, se o for de formas diferentes, tão mais rico será. Com certeza, houve mudança de paradigmas. Ainda assim, na igreja não estamos livres de sofrer as influências dos padrões ainda vigentes. Lembro do dito do Evangelho de Mateus, no capítulo 10, versículo 16: “Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas” (Mateus 10.16). É preciso estar sempre atenta para não negar o chamado de Deus para as mulheres e homens, o abraço de Deus que nos alcança e a sustentação da missão que nos é dada. Como disse, senti-me vocacionada em minha comunidade de origem, desde pequenina. Hoje, sinto que algumas atitudes de pessoas me são mais preconceituosas do que naquela época eu percebia. E penso que isso existe justamente em nosso mundo que já teve algumas transformações, mas que ainda espera, em especial das mulheres, que ocupem o mercado de trabalho sem que isso atrapalhe o trabalho doméstico.
SRZD-Fé: O que você acha da Teologia Feminista? Você é feminista?
Margarete: Penso que a Teologia Feminista abriu perspectivas tanto na área teórica quanto prática. Com certeza, eu seria vítima de muitas dificuldades se não fosse feminista. Logo, sou feminista porque entendo que há necessidade de equidade de gênero. Jesus mostrou isso muitas vezes ao percorrer caminhos que eram feitos todos os dias. Não perceber o que acontece em nosso caminho e não buscar viver em respeito, compreensão e propostas de vida representa não se deixar envolver pelo Evangelho. Então, a teologia feminista ajuda a desenvolver, pelo lado teológico, leituras que desconfiam de idéias e valores pré-determinantes antes de se ler o texto bíblico. Essa desconfiança traz outro entendimento de um mesmo texto lido há pouco tempo. E é isso que faz com que a Bíblia seja sempre atual: ler o mesmo texto lido a gerações, e perceber que o Espírito Santo o torna novidade para essa geração, diferente de tudo o que foi dito até aqui. Não creio que relações humanas, e mesmo com a natureza, obedeçam a uma hierarquia. Quando professo a fé cristã, digo que Deus se fez gente como nós, habitou neste mundo, conviveu e ensinou que o poder sobre outras pessoas e sobre a natureza resulta em morte. E eu acredito na ressurreição. É certeza de que vida é pra ser vivida de forma plena, já agora, sem poderes que destroem, desrespeitam e desconstroem a Vida.
SRZD-Fé: Segundo pesquisas, é elevado o nível de violência doméstica contra mulheres e crianças. Em uma cartilha publicada pela Igreja Luterana é declarado: “violência contra a mulher é pecado”. Na sua opinião, qual o papel que as Igrejas devem assumir frente a essa questão?
Margarete: O papel que Jesus ensinou: denúncia, aproximação, cura, salvação. As igrejas podem extrapolar a vocação individual para exercer essa vocação de uma forma mais abrangente. Em vez de se denunciar atitudes desta ou daquela pessoa, a denúncia se torna a uma cultura, ou a valores dessa ou daquela cultura. Também há necessidade de se vivenciar a transformação de vidas. Por isso, há orientações da igreja para que mulheres assumam cargos eletivos e diretivos nas comunidades, nas instituições. Mas isso deve ser feito não porque somente é orientação da igreja. É Evangelho vivenciado: Marta e Maria exemplificam isso; as mulheres que colaboravam com o trabalho de Jesus exemplificam isso; a ressurreição atesta a vocação.
SRZD-Fé: Muitas pastoras e teólogas indicam que os textos paulinos que tratam da submissão da mulher (1 Coríntios 11:6; Efésios 5:22; Colossenses 3:18; 1Coríntios 14:34 ) não são normativos, são circunstanciais, relacionados à cultura da época. Em 1Cor 14:34, por exemplo, Paulo fala que as mulheres devem ficar caladas nas Igrejas. E hoje as mulheres pregam. O fundamentalismo é ‘inimigo’ das mulheres? Como você vê a relação mulher e Bíblia? Por séculos a Sagrada Escritura foi usada para alimentar o preconceito contra a mulher. A Bíblia tem uma mensagem libertadora para as mulheres?
Margarete: A Bíblia por si só tem relatos de horror e violência. A Bíblia pode trazer mais violência se não for lida sob a inspiração do Espírito Santo. É o Espírito Santo que transforma corações e nos motiva a perscrutar a mensagem de Deus no meio de tanto relato de violências. E, com certeza, é o Espírito Santo que nos ajuda a encontrar o Caminho no meio de tanta violência existente em nossa sociedade. A Bíblia tem relato de Vida quando lida “para todos”, na perspectiva de quem está sofrendo ou que tem sua dignidade negada, sua voz não percebida. Algumas sementes foram sufocadas por alguns séculos de tradição temerosa da participação feminina. O chão se tornou seco e cheio de pedras, já que algumas tradições forçavam uma única forma de se semear. Precisamos algumas ferramentas que, a primeira vista, podem até parecer perigosas. Mas o perigo maior está na morte da opinião, da voz, da presença de mulheres no chamado divino. O apóstolo Paulo tinha sua visão de sociedade. E é bom sabermos que alguém tão importante para a missão cristã (o começo da missão paulina foi justamente na casa de uma mulher, Lídia), foi ao mesmo tempo cheio de leis e regras que foram usadas contra a missão nos séculos seguintes. Isso nos mostra que nosso anúncio também pode ter acertos ou ser usado para negar o que dizemos. Para mim, a vivência de Jesus é determinante. E o texto bíblico deve ser lido sob a luz do Evangelho de Jesus, que é vivenciado em experiência de paz e de justiça.
SRZD-Fé: Qual o seu sonho?
Margarete: Muito tenho vivenciado na comunidade em Niterói: Pessoas diferentes, participantes em mundos diferentes, de culturas diferentes, recebem sustento e fortalecimento para o cotidiano a partir da comunhão. São chamadas a exercerem seu chamado em seus locais de trabalho, em suas organizações civis. Em comunhão vão falando de suas alegrias e tristezas e me fazendo reler a teologia aqui, de um jeito totalmente novo para mim. Não há uma homogeneidade nos pensamentos, nem uma proposta alternativa que seja assumida por um grupo e mesmo assim há comunhão e compromisso de vivência cristã no cotidiano. Meu sonho é contar adiante que uma comunidade – cheia de gente “simultaneamente justa e pecadora”(Martim Lutero) – consegue ser livre diante de tantas propostas de escravidão a leis e regras e valores. Meu sonho é dizer que é possível a ida de pessoas cristãs “ao mundo”, sem medo de encontrar um mundo adverso – e gostoso também. Por isso agradeço pela oportunidade da partilha deste trabalho, deste jeito de ser igreja cristã. A partilha da alegria do compromisso com a vida é um grande presente. Tenho outros sonhos que acontecem no dia a dia. Sonho que meninas e meninos possam sair às ruas sem medo de serem massacrados por idéias e atitudes discriminatórias. Sonho que pessoas possam se relacionar com a natureza de forma respeitosa e não criminosa. Sonho que nosso maior compromisso seja com o amor e com tudo o que dele se origina, e não com valores que não sustentam nossa vida. São muitos os sonhos. A vivência das mulheres me ensina que nem sempre é possível dar nome aos sonhos, dar nome aos sentimentos. Mas a gente vai aprendendo a nominar, a sonhar em conjunto, sem cair na tentação de “fazer tudo sozinha”, e sem usar a violência que foi tanto usada em nosso meio. Como disse a teóloga Dorothee Sölle: “Como a senhora explicaria a um menino o que é felicidade? Não explicaria. Daria uma bola para que ele jogasse.” Deus nos deu a vida, nos deu os sonhos…cabe a nós vivermos.
(Mônica Baptista, 08/03/2009, http://www.sidneyrezende.com/editoria/fe)