Por que Lutero é importante para a América Latina
Uma Perspectiva Sistemática e Contextual
Vítor Westhelle
Meu Tema
Em uma reunião com a Igreja da Baviera e a IECLB em julho de 2011 foi me pedido para que apresentasse uma proposta ou visão para a instituição na Faculdades EST da Cátedra de Pesquisa em Lutero. A tarefa a mim consignada consistia em apenas duas perguntas. A primeira: Por que Lutero é importante para a América Latina, especificamente para o Brasil? E a segunda: Por que estaria eu interessado nesta cátedra uma vez que sou um sistemático e não um historiador?
Acho que posso responder estas duas perguntas com uma simples afirmação quanto à minha vocação: Sou latino-americano, pastor brasileiro e teólogo sistemático que passou boa parte de sua vida acadêmica pesquisando, escrevendo e publicando sobre Lutero e o luteranismo. Isto, me parece, seria o suficiente, mas vou tentar desdobrar esta resposta.
1. A teologia sistemática, ou como quer que se chame esta disciplina assim reconhecida há mais de três séculos, produziu algumas das mais relevantes interpretações de Lutero para tempos e lugares específicos, o que é a tarefa da teologia sistemática.
A segunda pergunta me pareceu a mais curiosa. Não vou abordá-la pessoalmente, pois não estou aqui para fazer uma apologia pro vita mea (meu currículo é de domínio público, onde está toda minha publicação: veja meu site em www.lstc.edu ou www.vitorw.com). Então a questão não é sobre mim, mas sobre a aparente impressão que a pergunta deixa que estudos de Lutero não são próprios da área sistemática (não vou entrar na questão se o adjetivo “sistemática” é o mais próprio pra descrever a disciplina ou se deveria usar outros como “dogmática”, “construtiva”, etc.). O que me parece que se pergunta é se a teologia sistemática é área própria para pesquisa em Lutero. Nos anos noventa eu era membro do comitê organizador do Congresso Internacional para Pesquisa em Lutero. O Congresso tinha como princípio ter mais ou menos o mesmo número de apresentadores da área de história como de sistemática. Na época, pelo menos, era mais fácil encontrar e recrutar sistemáticos que historiadores
que pesquisavam sobre a teologia de Lutero. Recorro à memória espontaneamente e me surgem nomes que pertencem à área de teologia sistemática e que têm sido de importância decisiva nos estudos de Lutero, digamos, nos últimos cinquenta anos, desde os anos sessenta, e que qualquer um que algo sabe de estudos de Lutero reconheceria imediatamente. Começo pelo norte. Tuomo Mannermaa da Finlândia, Gustaf Wingren da Suécia, Regin Prenter da Dinamarca, Gerhard Ebeling da Suíça e Alemanha, Oswald Bayer da Alemanha, Gerhard Forde dos EUA. E menciono apenas alguns e aqueles que agora me ocorrem e já estão aposentados ou faleceram. Todos teólogos sistemáticos! Certamente poderia nomear muitos historiadores, mas acho que meu caso já está devidamente apresentado.
Como latino-americano estou e tenho estado interessado em Lutero de maneira similar a que Mannermaa leu Lutero para seu contexto Finlandês de forma original e controversa, ou como Forde o leu para o contexto norte-americano. Estes são dois exemplos de ler Lutero fora de seu berço teológico nativo (ainda que no eixo norte-atlântico) com resultados instigantes e descobertas desconcertantes que as lentes teológicas da modernidade centro-europeia não haviam decifrado. E aqui então já passo a abordar a primeira questão que é de fato complexa e exige certamente mais do que os cinco anos de subsídio para uma Cátedra de Pesquisa em Lutero para resolvê-la, se isso fosse até mesmo possível. Mas faço minha tentativa para, pelo menos, mostrar que o apoio da Igreja da Baviera a esta Cátedra é uma decisão sábia e merece o reconhecimento de quem se importa pelo futuro dos estudos de Lutero e também do luteranismo em uma escala planetária ou global. Apresentarei as razões porque creio que isto é o caso.
Por que é Lutero Importante?
2. O projeto colonial europeu recrutou a teologia para seus fins e alguns de seus melhores teólogos a isso se serviram, enquanto o caráter de marginalidade da teologia saxônica do século XVI foi ofuscado.
Então, por que estudos de Lutero feitos na América Latina? Há quase dois séculos Schleiermacher escrevia em sua Glaubenslehre: “… nada de herético pode surgir agora que a igreja se completa a si mesma e a influência de outras formas de crença, mesmo nos seus limites ou no campo de missão da igreja, deve ser considerada em zero no que se refere à formação da doutrina, ainda que na piedade dos novos convertidos é possível que por bom tempo resíduos advindos de suas crenças anteriores persistam; se estas viessem a clara consciência e fossem formuladas como doutrinas isso, então, seria herético.”
Esta passagem me parece muito interessante e reflete uma postura que, ainda que não confessionalmente luterana, era também compartilhada por luteranos nesta época de colonialismo triunfante. A igreja vive de seus próprios recursos dogmáticos e nada mais tem a aprender, ainda que resíduos de superstições permaneçam por longo tempo. Este é um primoroso resumo do “Manifesto do Colonialismo Missionário”. O terceiro mundo, o campo de missão, não contava, exceto como objeto de missão e território de expansão colonial. Um século depois a situação não havia mudado muito, embora date do início do século vinte a emergência do pentecostalismo no norte do Brasil, que eventualmente iria transformar a demografia eclesiástica tradicional da América Latina e expandir-se pelo mundo. Mas então ninguém levou isso muito a sério. O cristianismo mantinha sua cidadela intacta no eixo norte- atlântico, e cristãos abaixo do equador eram numericamente uma minoria, e insignificantes quanto ao acesso ao poder eclesial e teológico. Meio século depois, quando a Federação Luterana Mundial foi fundada em Lund (1947) os participantes do terceiro mundo eram praticamente não existes, com exceção de alguns gatos pingados da Ásia. Estima-se que então o número de Luteranos no terceiro mundo não chegasse a 10%. Hoje pelos dados da FLM aí já se encontram mais de 40%; e o número continua a crescer. Os luteranos estão um pouco atrás de outras famílias confessionais como episcopais, católicos, batistas, presbiterianos e metodistas que já migraram em massa. Hoje 60% ou mais dos membros das igrejas cristãs têm seus rebanhos em pastos abaixo do equador. Mas os luteranos estão seguindo, com um pouco mais lentidão, a mesma migração. Não me surpreenderia se no aniversário da Reforma em seis anos teríamos já a maioria de luteranos fora do eixo norte-atlântico. Desde há dois anos a segunda maior igreja luterana do mundo, depois da sueca, está na Etiópia e não mais nos EUA (e possivelmente a terceira logo será a da Tanzânia ou de Madagascar).
Por que introduzi o assunto com a citação de Schleiermacher? Porque importam as perguntas que surgem de contextos e conjunturas específicas e não apenas as respostas, os dogmas, os sistemas. Para a Reforma, a igreja não é apenas a ecclesia docens, a igreja docente, mas é sempre também a ecclesia discens, a igreja discente, sempre a aprender de novos contextos, novos lugares.
Lutero, no início do século XVI estava ciente que pregava e escrevia teologia das margens de um império político e eclesial. Esta consciência de marginalidade selou sua teologia e nutriu sua rebeldia. Desde seus primeiros escritos públicos o que o marcou foi levantar questões que lhe pareciam óbvias: Por que indulgências? Por que não comungar com ambos os elementos? Por que centralização eclesial? Por que o magistério quando temos as escrituras? Por que o povo não pode escolher seus líderes? Por que
usura? Por que não um Deus misericordioso? E assim por diante. Perguntas tais são hoje aceitas como óbvias, mas a seu tempo poucos viam que o rei estava nu. Há uma história que talvez vocês conheçam. Por volta de 1990 quando se reestrutura a geopolítica mundial, que na Alemanha se chama die Wende, havia um grafite nos muros da Universidade de Bogotá, Colômbia. Dizia: “Quando teniamos casi todas las respuestas, se nos cambiaran las preguntas.” De fato é a emergência de novas e inusitadas perguntas que desestabilizam as respostas dadas a velhas perguntas que já não estão mais em pauta.
3. À medida que o luteranismo segue outras famílias confessionais na migração ao sul, Lutero, o teólogo sistemático contextual por excelência, oferece trajetórias a seguir.
Novos contextos trazem novas perguntas e uma disposição de procurar novas e imaginativas respostas. Não estou seguro, mas suspeito que o grafite que mencionei referia-se às respostas dos textos “canônicos” da tradição marxista. Não importa, realmente. Todos os regimes de verdade têm seus “cânones”. Assim também os têm os luteranos, como os textos de Lutero, dos escritos confessionais, ou interpretações celebradas como autorizativas. Mas até que novas perguntas forem reconhecidas como legítimas pelos curadores do “cânone”, as novas respostas serão consideradas heréticas, isso porque novas perguntas tendem a ser excluídas pelos regimes de verdade tacitamente aceitos. Esta, então, é a tarefa: inquirir estes textos “canônicos” da perspectiva de outros contextos não hegemônicos. E talvez as perguntas mais instigantes não surjam somente do fato que a maioria numérica de luteranos venha a estar em contextos que a academia europeia ou norte-americana amiúde não sabe ler; e a religiosidade impregnada por elementos contextuais é considerada apenas resíduo de uma piedade passada. Talvez o fato ainda mais importante seja que esta maioria em outros contextos encontra-se lá como minoria.
Tome-se a Índia, por exemplo. Cristãos representam por volta de 3% da população (No entanto, ainda assim há mais cristãos na Índia que em todos os países escandinavos somados!), e os luteranos são apenas uma fração disso num contexto de pluralismo religioso incomparável. Por exemplo, por que não se discute sincretismo no contexto deste debate, típico luterano desde o século XVI, sobre adiaphora como algo bom (bene esse) ainda que não essencial (esse)? Perguntas assim que destes contextos nos vem são sérias e não raro inusitadas. No entanto, podem ser elaboradas e examinadas dentro de uma diferente leitura dos mesmos textos canônicos que se endureceram no forno do tempo. Em todas estas conjunturas—na Ásia, na África, na América Central, no Caribe e na América do sul—grupos se reúnem e buscam assessoria para formular a relevância da teologia luterana para seus lugares e seus desafios. De minha experiência com esses grupos não se trata de se a teologia luterana tem ou não relevância; de certa maneira sabem desta relevância. Mas estão em busca de linguagem para expressá-la nas suas
realidades. E toda teologia é contextual. Como disse o poeta brasileiro (Vinicius de Moraes), “ninguém é universal fora de seu quintal”.
Tarefas Programáticas
4. A teologia sistemática tem a tarefa de detectar no presente coisas que guardamos das representações do passado e sua relevância para o momento e onde este se situa. Esta é uma lição de contextualização de que Lutero era um mestre.
Por que estudar Lutero nestas partes do mundo? Aqui entra, em particular, a responsabilidade dos teólogos sistemáticos cuja tarefa é exatamente a de ver como a Bíblia e a tradição se confrontam com uma dada conjuntura. Certamente não é a tarefa prioritária fazê-lo por motivos antiquários ou arquivais, ou seja, descobrir origens e classificá-las. Isso se pode fazer de qualquer parte onde se tenha acesso às fontes e à mediada que se as têm. Muitas vezes é o que ainda fazemos no terceiro mundo, e é importante que se continue a fazê-lo. Mas restringir-se a isso é o que se tem chamado de “mal de arquivo” (mal d’archive: Derrida), quer dizer, usar o passado para autenticar o presente. E isso implica um desprezo do presente e dos lugares que ocupa (e o presente sempre ocupa lugar, ou não é presente/dádiva). Isso é o que fazemos quando usamos categorias que outros contextos elegeram como centrais e por mímica os repetimos em completa abstração do presente situado em um lugar, nosso presente. Isso sucede com a linguagem sobre justificação, sobre os dois reinos, sobre lei e evangelho, etc.. E o que uma vez foi libertador agora emudece, cala a linguagem local, suprime o vernáculo. A razão para estudar Lutero me parece ser outra; e esta é a primeira tarefa. É conhecer táticas e estratégias do passado para iluminar lutas do presente. Explico-me. É preciso, por exemplo, fazer com que aquele que ousou traduzir a mensagem da Palavra ao vernáculo seja ele mesmo rendido aos vernáculos. Um texto de 1525 sobre “Como Cristãos deveriam considerar Moisés” que é escrito em meio a sua luta com alguns anabatistas, que como alguns fundamentalistas hoje, citavam as escrituras dizendo: “Esta é a Palavra de Deus”, revela um Lutero contextual como pouco se ouve. Lutero diz: “certamente esta é a palavra de Deus mas vocês não são o povo a quem ela está proferida.” Há que escutar a palavra de Deus dirigida a um povo específico. Nisto Lutero, de fato, já está começando a falar outras línguas: espanhol, mandarim, finlandês, suaíli, inglês, malayalam, e assim por diante, mas ainda necessita mais fluência.
Como bem colocou o bispo Pedro Casaldáliga, ”A Palavra universal só fala dialeto.” Esta então é uma das tarefas: aplicar nos contextos, nas distintas conjunturas sociais e eclesiais a própria prática que definiu culturalmente a reforma luterana, e fazê-lo de maneira compreensível. Minha opinião é que é isso que intencionava dizer Anders Nygren quando em sua palestra na abertura da primeira assembleia da FLM disse: “Não de volta ao passado, mas avante a Lutero.”
5. Não é a repristinação confessionalista, mas a transfiguração de Lutero que importa à pesquisa de Lutero quando fora de seu berço natal.
Outra tarefa é curar-se do “mal de arquivo” que diz que só temos legitimidade se o fizermos como os alemães, ou suecos, ou norte-americanos o fazem e têm feito. Lutero precisa ser transfigurado. Isso é o que acontece na história da transfiguração (Mt 17). Jesus nunca foi Elias nem Moisés e até discordou com eles, mas foram eles que se transfiguraram em Jesus sem que esse rendesse sua identidade. É preciso ver o Lutero transfigurado nos “Luteros” de hoje sem que isso os tire de seus próprios desígnios e seus próprios lugares, sem que sejam contaminados pelo mal de arquivo. A passagem de Mateus sobre a transfiguração é precedida pela confissão de Pedro: “Tu és o Messias.” A próxima cena é Jesus contanto de seu destino e Pedro intervém ao que Jesus responde: “Arreda! Satanás.” Pedro havia lido Jesus com o catequismo ou o cânone que tinha (Moisés, Elias e os profetas): Jesus deveria ser como Moisés ou como Elias. Pedro fez a correta confissão, mas não soube ler o contexto. Isso é a definição teológica do demonico: correta dogmática e inepta contextualização. A transfiguração é a história de como o passado deve se metamorfosear (metamorphethe, esta é a palavra traduzida como “transfiguração”) para dentro dos contextos presentes e não o contrário. Lutero também metamorfoseou Paulo e Agostinho, mas não se fundiu a eles; vestiu o manto deles, mas na sua própria pele.
6. O verdadeiro discipulado não está na letra, mas no espírito. A letra sustém, mas o evangelho renova. As obras de Lutero têm de serem todas lidas e examinadas com cuidado para que então os livros possam ser fechados e o evangelho aberto.
Então há uma terceira tarefa programática. É preciso ter coragem de inovar ainda sem destruir o velho. A parábola de Jesus é pertinente à nossa tarefa: “Por isso todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira de seu depósito cousas novas e cousas velhas.” (Mt 13:52) Os arquivos serão mantidos e sempre haverá entre nós um escriba versado no reino que deles sacará relíquias preciosas. O Congresso Internacional para Pesquisa em Lutero que se reunirá em Agosto de 2012 em Helsinki talvez seja a prova mais contundente desta arte que mantemos. Mas há também que ousar, como se isso precisasse ser dito para quem conhece um pouco de Lutero. Com todos os defeitos
que o reformador tinha e admitia, falta de ousadia não era um deles. Ainda não somos luteranos até ousarmos perguntas e respostas que nos remetem além dos cânones dominantes.
7. Estas são as tarefas programáticas: contextualização, transfiguração e inovação.
Objetivos
8. O Cone Sul da América Latina de momento se apresenta como o mais hábil interprete entre o luteranismo presente e do futuro.
Para a realização destas tarefas há alguns objetivos a serem alcançados. E nisto me abstenho de fazer considerações gerais sobre Lutero e o Luteranismo, mas busco tratar especificamente ao que se propõe com a criação da Cátedra para Pesquisa em Lutero nas Faculdades EST em São Leopoldo. No cone sul da América Latina encontramos uma situação peculiar entre todas outras igrejas luteranas do terceiro mundo, com exceção de enclaves étnicos na África do Sul. No cone sul as igrejas são originariamente de migração alemã e ainda mantém muitas das tradições, da língua e dialetos que vieram com os imigrantes, ainda que isso já tenha mudado drasticamente desde os anos sessenta por um processo progressivo de inculturação na realidade sul-americana, respectivamente, brasileira. Isso tem possibilitado vínculos culturais orgânicos entre estas igrejas e a Alemanha (bem como também atrasou a indigenização da igreja). Provavelmente, em longo prazo, o futuro do luteranismo mundial vá estar mais na África e na Ásia, mas neste momento a América do Sul tem um papel gestor nesta paulatina transferência. Também a formação teológica da região é a que, no terceiro mundo, mais se assemelha à alemã. Esta região de momento exerce a função de interprete entre os valores teológicos europeus e dos EUA, e os do terceiro mundo em geral. Interprete é quem se situa entre dois valores (inter-pres) para negociar uma troca originalmente nos mercados da antiguidade onde diferenças de línguas e dialetos fazia uma negociação direta impossível. Mas no momento em que as partes envolvidas na negociação chegam a um acordo, mediados pelo interprete, este sai de cena. Talvez seja esta a tarefa teológica que de momento nos cabe realizar. E há muito em jogo, pois há que ser honesto e manter a confiança das partes envolvidas. Nisto São Leopoldo está imbuída de um valor simbólico significativo. É o berço da migração alemã. Lá chegou a primeira leva de imigrantes alemães em1824. (A EST foi a primeira a trazer a teologia luterana em conversação coma teologia da libertação. Já no início dos anos 70 é publicada a primeira tradução da Teologia da Libertação de Gustavo Gutierrez. Isto foi para o holandês feito pelo então professor da EST Klaus van der Grijp.)
Isto me traz ao primeiro objetivo para esta cátedra, abrir um espaço interpretativo entre o sul e o norte onde ainda se encontra a hegemonia teológica no contexto luterano, o que certamente necessitará antes de tudo uma continua articulação entre centros teológicos do sul onde pesquisas sobre Lutero já avançam (como no Seminário Luterano de Hong Kong, Faculdade de Teologia Gurukul na Índia, Seminário Luterano Makumira na Tanzania, Universidade de Natal em Pietermaritzburg na África do Sul, Isedet na Argentina e assim por diante). Em segundo lugar continuar o diálogo norte-sul a começar com aquelas instituições acadêmicas com as quais contatos já foram desenvolvidos. Já há interações históricas com várias universidades e faculdades alemãs, assim como com a Dinamarca, Noruega, bem como com os EUA. Esta é uma tarefa de coordenação, articulação e estabelecimento de redes de contato. É um trabalho que já foi esboçado e posto em prática com bons resultados pelo Departamento de Estudos da FLM desde 1995, quando por falta de recursos deixou de ser por si um centro de pesquisa e passou a se definir como centro de articulação. Creio que contatos com o Departamento de Estudos da FLM virá a facilitar esta tarefa ou até mesmo venha a liderá-la.
9. A pesquisa em Lutero está para a contextualização, transfiguração e inovação assim como a agricultura está para a colheita ou o casulo para a borboleta. O desafio está quando a colheita fracassa ou a borboleta morre.
O segundo objetivo é precisamente de desenvolver linhas de pesquisa que ofereçam abordagens prioritárias a temas da teologia luterana, particularmente de Lutero, de relevância para a América Latina e ao Brasil em particular. Esta me parece seja a tarefa principal para o ocupante da cátedra. De momento presumo, em base ao que conheço da teologia de Lutero e da realidade Latino Americana, que há três eixos temáticos a serem inicialmente desenvolvidos.
Eixos Temáticos
10. Justificação e escatologia estão intimamente relacionadas nas obras de Lutero, mas pouco há se feito em decodificar as dimensões espaciais e sociais destas doutrinas.
Justificação, escatologia e espaço O primeiro eixo temático parece ser bastante óbvio à primeira vista. Trata-se do tema central da Reforma, a justificação por graça mediante a fé. Mas esta deve ser tratada não como outro tema (locus) dogmático, mas vista radicalmente sob uma perspectiva escatológica (isso já se fez, p. ex. Paul Althaus, mas em uma perspectiva historicista e individualista). A justificação neste sentido não é uma “doutrina”, mas descreve uma experiência limítrofe que é ao mesmo tempo “morte” e dádiva. Lutero costumava usar esta linguagem paradoxal e extrema ao se referir à justificação. E o fazia em termos muito realistas. Ela mata para dar vida e dá vida quando mata. Mas como entender isso sem espiritualizar? Lutero mesmo vivia e respirava um clima apocalíptico que é sempre uma situação existencialmente limítrofe. Sociedades opulentas hoje tem dificuldade de se relacionar com isso. A justificação é espiritualizada e desencarnada e a escatologia deferida/postergada para uma data incerta no calendário ou para um místico nunc eternum. A palavra eschaton no Novo Testamento leva três significados distintos que nos textos originais são mesclados. Pode referir-se a um limite espacial como a fronteira de um território ou a mítica concepção do fim do mundo depois dos mares; pode também referir-se ao tempo e seus limites; assim como pode ser usado para designar o último em uma escala de classificação. Mas o sentido temporal é o único que tem sido usado na modernidade ocidental.
Mas para a América Latina (assim como outras partes do terceiro mundo onde massas vivem este apocalipse) este tema assume um significado especial e muito real. Questões de vida e morte, dádiva e passagem estão inscritas em cada passo da existência cotidiana de agricultores sem-terra, de crianças de rua, de favelados, de povos indígenas em que o eschaton está na cerca da fazenda ao lado, na próxima esquina, ou na arma assassina; aí a morte é real e a celebração da vida contagiante. Refletir a justificação sob esta perspectiva significa tomar conhecimento da importância de experiências escatológicas hodiernas. A saber: questões que vão desde enfermidades por contágio (como um vírus e bactérias que transgressam os limites [ta eschata] epidérmicos do corpo, bem assim como também o fazem medicamentos que trazem saúde, soteria, salvação) até questões pertinentes à migração em espaços geopolíticos, fronteira são transgredidas e aí há morte e há vida. É preciso explicar justificação na vida cotidiana. Estas são experiências escatológicas em que justificação e condenação, libertação e submissão são os polos da experiência. Pensar justificação como dádiva e morte assume, portanto, relevância peculiar aos contextos de vida subalterna características da realidade latino-americana e, particularmente, brasileira.
11. A doutrina dos dois reinos ou regimentos é uma das doutrinas características do jovem Lutero que foi assimilada e difundida por outros reformadores (p. ex. Bucer, Melanchthon, Calvino), mas ela não chega a enfocar a distinção que Lutero mais tarde faz entre economia (oeconomia) e política (politia). Aí reside a sua contribuição especialmente a sociedades, como do terceiro mundo, onde estas esferas da vida real são claramente discerníveis, ao contrário da modernidade ocidental onde estas se imbricam a ponto de se confundirem.
Justiça, política e economia O segundo eixo temático trata do outro assunto fundamental da Reforma que desde há um século tem sido chamado de “doutrina dos dois reinos” [Reiche/ Regimente] (o que prefiro traduzir como “regimes”). Mas o tratamento que este tema tem recebido na Europa e nos EUA vai desde enquadrar o problema como uma relação de lei e evangelho, até fé e política, ou mesmo igreja e estado. Mas o que é importante nestas reflexões que Lutero produziu é a sutil e a precisa distinção que ele nos anos 30 do século XVI faz entre política e economia, avançando um tema que só será retomado séculos depois com Hegel, Marx e no século XX por Arendt e Spivak. A importância disso para América Latina já foi enunciada pela distinção que Paulo Freire faz entre conscientização e produção, e mais recentemente na tipologia que o antropólogo Roberto DaMatta elaborou com as metáforas da “casa” e da “rua”. O nascedouro desta questão pode ser remetido à Aristóteles com sua distinção de duas das três faculdades humanas: praxis e poiesis (a terceira sendo theoria) que está na raiz dos conceitos de política e economia desenvolvidos por Lutero. Na patrística grega (p.ex. em Basílio de Cesaréia) esta distinção ainda é mantida, mas desaparece no período medieval para ser então retomada por Lutero ao distinguir com precisão entre oeconomia e politia. Esta é uma distinção de extrema importância para o pleito teológico latino-americano. Os outros reformadores seguiram Lutero na distinção de regimes, o espiritual e o secular, mas nenhum outro chegou como Lutero a descrever a igreja como este evento que sucede entre a política e a economia (nos sentidos clássicos dos termos), na adjacência de ambos e emprestando de ambos, mas não se rendendo a nenhum. A igreja se demoniza quando se rende à política e se idolatriza quando se adapta à economia.
12. “Somente a cruz é nossa teologia” é o mais sucinto e claro manifesto da reforma luterana (desde 1517-18) e continua sendo para quem a cruz é o símbolo da vida cotidiana. Mas a interpretação deste manifesto é devidamente escorada pelo maior consenso ecumênico jamais alcançado—o Concílio Ecumênico de Calcedônia (451).
Cristologia, Cruz e Hibridez O terceiro eixo a ser desenvolvido e que permite relacionar os dois primeiros é a cristologia de Lutero, sua interpretação do Concílio Ecumênico de Calcedônia (451) e sua intrínseca vinculação com a teologia da cruz. Este tema, para América Latina, não carece de mais justificação senão a já produzida por vários teólogos/as das mais diversas origens confessionais que se voltam a Lutero quando este é o assunto. Mas implicações desta cristologia vão muito além e são muito mais relevantes do que até agora tem se tido e são muito mais radicais. O que tem Cristo a ver com o sofrimento? Exemplo de persistência? Lição sobre o sentido vicário da dor? Perdão dos pecados? Solidariedade com o povo sofrido? Na verdade Lutero é muito mais radical. Já em 1528 quando escreve sua “Confissão” o Reformador desenvolve o que ele chamou do terceiro modo de presença de Cristo (além do Jesus histórico e da presença real no sacramento). Tenho encontrado poucos luteranos que sabem disso
embora este texto tenha sido citado na Solida Declaratio (VII) da Formula de Concordia por mais de uma página. Em resumo o que ele diz é que a união hipostática da Fórmula de Calcedônia exige a afirmação de que Cristo esta, segundo a carne (senão a nossa fé é falsa, o afirmou), transcendendo tudo, mas estando mais perto de cada coisa que cada coisa está de si mesma, quer dizer, mesmo na morte, ou acima de tudo na morte. Então à minha pergunta acima sobre a relação de Cristo com o sofrimento tem uma simples resposta: essencial identificação. É o próprio Cristo que sofre na carne do sofredor. É o próprio Cristo que está enterrado na tumba de quem morreu. E para Lutero, isso não era uma metáfora. Era literal. A segunda consequência é que se Deus está em Cristo segundo a carne em todas as coisas, toda natureza também se faz corpo de Cristo. Isto tem implicações para a questão ambiental que não são apenas morais e éticas, mas profundamente vinculadas à questão da revelação, e, sobretudo, da revelatio sub contrariis, a revelação no seu oposto. E a terceira implicação disso é que para Lutero, como ele desenvolve em “Dos Concílios e da Igreja” (1539), a realidade de Deus em Cristo é híbrida. Não há uma essência ou uma identidade que possa ser isolada, muito menos manipulada. O híbrido é o que transita entre identidades. Não é uma nem outra e ao mesmo tempo as duas, ou mais de duas. A literatura pós-colonial define a hibridez como caraterística mais relevante dos povos subalternos. Então esse é o Cristo: Deus, um criminoso condenado e executado em uma cruz. … E transita entre céu e inferno enquanto faz sua moradia entre os mortais.
Quanto a detalhes específicos de planejamento, isto há de ser feito in loco.
Conclusão
Não me iludo. Quando cruzarmos o quinto centenário da Reforma, talvez a maioria dos Luteranos já se encontre no sul do planeta. Mas a hegemonia teológica tem uma inércia que levará muito mais tempo para que o sul tenha sua leitura de Lutero respeitada e validada. Esta leitura não será nem em conteúdo, nem em método o que hoje se faz no mundo norte-atlântico. Será algo híbrido transitando entre o rico resultado da pesquisa em Lutero que se faz na Europa e nos EUA e sua transfiguração a novos contextos sem medo de ousar vestir o manto de Lutero, mas na nossa própria pele. Um filósofo alemão do início do século XIX que se declarava Luterano de boa cepa, com o nome de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em um de seus axiomas disse: “Quando o absoluto cai na água, vira peixe.” (Wenn das Absolute ausgleitet und aus dem Bodem, wo es herumspaziert, ins Wasser fällt, so wird es ein Fish, ein Organisches, Lebendiges. HW 2: 543) Parafraseando: quando Lutero cai no Brasil, vira brasileiro. E assim se dirá para toda América Latina, África e Ásia.