Prédica do Culto de Abertura da 14ª Assembleia Sinodal
P. em. Dr. Gottfried Brakemeier – Texto: Marcos 10.42-45
Prezada comunidade!
“Mas entre vocês não pode ser assim…” É o que Jesus diz a seus discípulos. Sua comunidade deve marcar uma diferença neste mundo, destoar do usual, chamar atenção por algo novo. Como cristãos e cristãs não devemos ser exatamente iguais aos outros. Eis aí o desfio que nos deve ser motivo de reflexão, para o que a abertura de mais uma Assembléia Sinodal oferece particular oportunidade. Reúne-se um dos órgãos diretivos da IECLB. Como vamos e como devemos desempenhar liderança na igreja? Juntamente com a minha reflexão trago aqui a minha saudação à Pastora Sinodal, à Presidente Sinodal, ao Conselho, aos membros desta Assembléia, bem como a visitantes, hóspedes e representantes das comunidades. Agradeço pelo convite para pregar neste culto. Sei que originalmente se havia cogitado no Pastor 1º Vice Presidente Homero Pinto para trazer aqui a sua mensagem. Infelizmente ele está impossibilitado de fazê-lo. Queira Deus restabelecer-lhe a saúde e fazer com que em breve possa voltar a exercer suas funções. Dadas as circunstâncias, porém, assumi sem hesitação o convite para entrar na brecha. Desejo desde já as mais ricas bênçãos a esta Assembléia, fazendo votos que seu trabalho ajude a promover a causa do evangelho neste Sínodo e neste País.
“Entre vocês não pode ser assim…” Esta é uma das muitas provocações que Jesus de Nazaré deixou como herança. Jesus insiste junto a seus discípulos a não acomodar-se a este mundo. Não devem imitar o mau exemplo nem simplesmente acompanhar o que se faz. O que Jesus quer certamente não é a comunidade ideal. Seria um mal entendido. Também cristãos carregam seus defeitos. Por isso todas as tentativas de criar a igreja perfeita vão acabar em desastre e amarga frustração. Vão criar a ditadura moral e fazer crescer a hipocrisia dos pretensos justos. Também obreiros são seres humanos, portanto falíveis e capazes de errar. Não se deve exigir deles e delas o que a gente mesma não está disposta a cumprir. Isto não justifica o erro, mas previne contra ilusões. Como cristãos, nós todos e nós todas, necessitamos da confissão e do perdão de nossos pecados. Ninguém está imune contra este mal.
Consequentemente também a igreja é humana. Não é o clube dos perfeitos, e sim, a comunhão das pessoas que vivem da misericórdia de seu Senhor. Se ela é santa, é porque ela pertence a Deus, não por ser moralmente perfeita. A confissão luterana é muito clara a esse respeito. Nós não queremos uma igreja de elite, de gente supostamente justa, pertencente à classe religiosa alta. Os maiores inimigos de Jesus sempre têm sido as pessoas impenitentes. Ele disse que com elas nada tem a ver. Assim como a clientela do médico são os doentes e não os sãos, assim Jesus se sabe enviado aos pecadores, humildes, a gente culpada. Ele quis uma igreja humana que luta contra o pecado, sim, mas que também sabe ter necessidade da graça de Deus a cada dia de novo.
Mas então o que não pode ser assim na comunidade de Jesus? Qual é seu distintivo na sociedade? Em busca de uma reposta examinei o contexto dessa palavra. E vi que ela é reação a uma disputa de Tiago e João. Estes dois que pertenciam ao círculo mais achegado de Jesus acham que seu mestre vai em breve assumir o governo em Israel. Ele, o messias, com a ajuda de Deus seria entronizado pelo povo e implantar um “estado novo” de paz e de justiça. Por isso querem assegurar a tempo cargos de confiança junto ao novo chefe de governo. Tiago e João querem ocupar as funções de ministros no reino da glória de Jesus. Querem que Jesus lhes prometa o lugar à sua direita e à sua esquerda. É claro que eles, com essa investida, provocam a indignação dos demais discípulos que se vêem preteridos em suas ambições. Disputa de cargos políticos costuma suscitar polêmica e, não raro, desavença. E é a isto que Jesus reage.
Ele inicia chamando atenção ao que é praxe entre os povos. Ele diz: Vejam os que são reconhecidos como governantes. Eles costumam exercer domínio sobre o cidadão comum e até mesmo abusar do poder. A palavra correspondente no texto original é forte. Chega perto de oprimir. Os grandes não só exercem autoridade, eles subjugam, tiranizam. Esta é a lei do mundo. Quem está lá em cima, se aproveita do poder para dominar sobre quem está em baixo. Isto naturalmente em benefício próprio. Pois o poder deve ser rentável. Oferece oportunidades para o enriquecimento rápido, assim como o observamos nos procuradores romanos no tempo de Jesus. Quando entregavam o cargo depois de expirado o mandato, seu patrimônio pessoal havia se multiplicado. Também o sumo sacerdote em Jerusalém era pessoa rica para não falar de César na longínqua Roma, dos senadores e magistrados da época. Quem tem o poder tem o dinheiro, assim como por sua vez o dinheiro ajuda a conquistar o poder.
É verdade que Jesus ainda não conhecia uma sociedade democrática. As estruturas políticas de seu tempo eram autoritárias. Em comparação com elas a chegada da democracia representa um progresso. Ela permite o controle dos governantes. Estes precisam do voto do povo, assim como agora mesmo em nosso País. Em outubro haverá eleições. Ademais, autoridades podem ser cassadas em caso de maciça corrupção, de violação do decoro parlamentar, de infidelidade partidária e outros “pecados”. Não faltam os casos recentes. Democracia pretende inibir o arbítrio dos poderosos e colocar o poder a serviço da justiça. Autoridades estão aí não para tiranizar e explorar o povo, e, sim, para cuidar do bem comum. Por isto mesmo a palavra de Jesus não justifica atitude “anti-autoritária”. Nem todos os governantes são maus. E lembremo-nos que sem governo a sociedade se inviabiliza. Vai entrar em colapso. Nós precisamos de lideranças políticas, sim, entre elas, seja permitido destacá-lo, de gente de confissão luterana.
Então, significa isto que a palavra de Jesus esteja ultrapassada e que possamos desconsiderá-la? Creio ser óbvio que tal conclusão seria um trágico engano. Basta abrir os jornais ou ligar a televisão para sermos testemunhas da às vezes vergonhosa barganha com favores políticos, cargos, privilégios. E nem sempre se faz aí um jogo limpo. Eu não preciso entrar nos detalhes que todo mundo conhece. A disputa política costuma ser feroz e a ética passa a ser secundária. Ansiamos por uma campanha eleitoral pautada pelos princípios da veracidade, do respeito mútuo, do compromisso com a integridade das nossas instituições. Política já não deve servir aos interesses particulares e, sim, aos da coletividade.
“Entre vocês não deve ser assim”. Esta palavra também hoje é relevante. Dirige-se aos políticos, aos cidadãos, aos eleitores. Ela quer a abolição do que está errado, do que fere a vontade de Deus, do que é motivo de vergonha. Ela quer entre outras coisas o fim da impunidade dos poderosos que é uma das piores chagas em nosso corpo social. Também no mais há coisas a corrigir. E, no entanto, esta palavra vale também para nós, comunidade evangélica de confissão luterana no Brasil. Sim, ela é dirigida em primeiro lugar a nós. Não vamos copiar os vícios da vida política em nosso país. Jesus espera um outro tipo de exercício de autoridade em sua comunidade. Qual? Como manejar o poder na igreja?
Talvez não seja supérfluo enfatizar que também a igreja precisa de governo. Todas as instituições necessitam de liderança, entre elas a comunidade de Jesus Cristo. Agradecemos às pessoas que se dispõe a integrar, mesmo por tempo limitado, o presbitério, a diretoria paroquial, os conselhos e as assembléias da IECLB. Sabemos que isto significa sacrifício em tempo e mesmo em dinheiro. Esperamos que em troca a participação em cargos de responsabilidade signifique uma experiência enriquecedora na vida de cada qual. Em todos os casos, a igreja necessita de instâncias diretivas. Ela precisa de ordens e documentos normativos que regulam sua vida e o exercício do poder. Então, quem manda na igreja e como deve ser exercido este “mandato”?
Em termos teóricos é muito fácil responder esta pergunta. Existem três modelos. O primeiro é o “episcopal”. Neste caso o poder é exercido pelos “bispos”, e somente por eles. É o modelo católico-romano. Também os concílios são compostos apenas por pessoas do clero, sendo o pontífice romano, o papa, a autoridade máxima. Os leigos não participam da liderança eclesiástica. Temos aqui o exemplo de uma igreja hierárquica. O outro modelo é o “congregacional”. Ele é em tudo o oposto ao anterior. Quem neste caso exerce o poder na igreja é a comunidade local, ou seja, a “congregação”. São os leigos que decidem sobre o rumo da igreja. É este o exemplo de uma igreja “democrática”, construída de baixo para cima, na qual os obreiros nada mais são do que empregados. A direção da igreja está na mão do membro leigo que se articula através da assembléia da comunidade, dos presbitérios e outros órgãos representativos. Creio não errar quando afirmo que na IECLB existem tendências para ambos os lados. Houve vozes que se queixaram do “pastorcentrismo”, ou seja, de uma prática por demais “episcopal”. Por outro lado conhecemos também o fenômeno das comunidades livres, nas quais se dizia: “O pastor é nosso escravo!” (“Der Pfarrer ist unser Knecht”.) Eis uma demonstração clássica do congregacionalismo. Ainda hoje ambas as tendências me parecem marcar presença mais ou menos forte em nossa igreja. Elas de modo algum estão superadas.
Ora, a concepção luterana da estrutura da igreja é outra. Ela não é nem hierárquica nem congregacional. Ela é “sinodal”. Nós estamos aqui no Sínodo Vale do Itajaí, um dos 18 Sínodos que compõe a IECLB. O sinodalismo coloca a responsabilidade para o bem da igreja sobre dois ombros, o dos leigos e o dos obreiros. Aliás, seja me permitido dizer uma palavra sobre o termo “leigo”. Nós luteranos o empregamos em sentido funcional, como sinônimo de “não especialista”, ou “não obreiro”, assim como se diz que a gente é leiga neste ou naquele assunto. Jamais leigos são cristãos de segunda categoria. Em igreja luterana todo o mundo é leigo, também pastores o são. Costumamos falar de leigos somente para distingui-los de quem ocupa um ministério. Portanto, em igreja luterana a responsabilidade diretiva repousa sobre o ministério e a comunidade, respectivamente sobre os seus delegados. Por isto uma assembléia sinodal sempre se compõe de leigos e de obreiros em proporção estabelecida em estatuo. O mesmo vale para o conselho da igreja, o concílio geral e as demais instâncias decisórias.
Igreja luterana procura evitar os inconvenientes do episcopalismo de um lado e do congregacionalismo de outro. Igreja episcopal marginaliza a comunidade, enquanto igreja congregacional favorece a arbitrariedade da mesma e seu independentismo. Igreja luterana quer a cooperação entre ministério e comunidade, entre leigos e obreiros sem absolutismos e sem dominação de uns sobre os outros. A autoridade máxima é sempre Jesus Cristo perante quem devemos responsabilizar-nos. Há que se admitir ser este um modelo exigente. Ele não é fácil de administrar. Pois a pretendida cooperação pode não funcionar e acabar em conflito. O lado a lado de obreiros e leigos se transforma então em disputa de poder, em desavenças e até mesmo brigas. Se isto acontece Jesus vai dizer: “Entre vocês não pode ser assim…” Seremos criticados por nosso Mestre e Senhor! O modelo sinodal requer um alto grau de maturidade. Pelo que nos parece, porém, é o mais justo, o mais bíblico, o mais evangélico.
Por ser assim cabe-nos refletir sobre como assegurar a boa cooperação entre leigos e obreiros na igreja. Uma primeira pista nos oferece o próprio Jesus. Ele diz: Em vez de dominar, aprendam a servir. Novamente ele é categórico: “Quem quiser ser importante, que sirva aos outros e quem quiser ser o primeiro, que seja o escravo de todos.” São palavras duras. Mas talvez percebamos a profunda verdade que nelas está contida. Nosso objetivo não deve ser a auto-promoção, e, sim, o bem dos outros. Jesus coloca a si mesmo como exemplo. Disse que veio não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em favor de outros. Creio que muita coisa em nosso mundo seria diferente se algo mais desse espírito estivesse presente. De qualquer maneira, a comunidade de Jesus Cristo está comprometida com ele. Deve pautar suas atividades pelo amor aos outros, o amor ao evangelho, o amor a Deus. Certamente não devemos esquecer o amor a nós mesmos. Pois o amor ao próximo pressupõe o amor a si mesmo. E, no entanto, quem está disposto a servir, sempre olha para além de si e se empenha em favor da boa causa.
Isto vale de um modo especial para a comunidade cristã. Ela não visa o lucro próprio, e, sim, o “lucro” de Deus. Claro, também ela deve cuidar de si, de sua sustentabilidade, de seu crescimento. Seria irresponsabilidade se não o fizesse. E, no entanto, a igreja de Jesus Cristo jamais é um fim em si. Ela não deve a sua existência a uma decisão humana. Pelo contrário, nasce do chamado de Deus. É criatura do evangelho, como dizia Lutero. E o que ela quer é fazer crescer a fé, o amor e a esperança neste mundo. São “produtos” difíceis de serem captados em estatísticas. Nós não temos como medir a fé, o amor e a esperança das pessoas, embora sejam da mais alta relevância. Eu não me posso imaginar vida condigna sem “esses três”. Mas é somente Deus quem conhece os corações dos fiéis. Por isto mesmo comunidade evangélica se distingue de uma empresa humana. Sua “produtividade” não se mede por metas e normas tão somente empresariais. Também nós temos responsabilidade, evidentemente. Os obreiros devem fazer questão de competência teológica, do bom exercício de seu ministério. Por analogia espera-se dos leigos que contribuam com os seus dons específicos. E, no entanto, convém não esquecer que “se o Senhor não edificar a casa, trabalham em vão os que a edificam” (Sl 127.1) É Deus quem constrói sua igreja. O sucesso como tal não é critério evangélico, muito embora o insucesso deva ser motivo de séria preocupação.
Resumindo constato que em comunidade evangélica de confissão luterana obreiros e leigos são convidados a coordenar suas responsabilidades. Devem cooperar. Para tanto importa que procurem envolver a outra parte nos os processos decisórios, evitem resoluções solitárias e busquem o entendimento mútuo. Dialogar é melhor do que decretar. Claro que pode haver divergências de opinião. Em casos graves recomenda-se o recurso à mediação de instâncias superiores. Mas creio ser desnecessário descrever o que fazer em casos de litígio. Importante é o espírito de negociação, melhor de fraternidade, e, sobretudo de confiança. É ele que deve reinar na comunidade de Jesus Cristo. Controle é necessário, mas quando atrofia a confiança, o espírito de Jesus Cristo sofre danos. Inversamente este mesmo espírito permite também a crítica em caso de negligência ou mesmo de abusos. Temos a liberdade de sermos honestos uns com os outros, sempre a serviço da causa de Deus. Estou convicto de que comunidade luterana será atrativa justamente quando colocar em prática este espírito. Dele necessitamos também no estado, no município, na escola e outras instituições, mostrando ser possível a co-operação harmoniosa e eficiente em causas comuns. Quanto mais na comunidade cristã! Ela ganhará credibilidade na medida em que será capaz da convivência e do auto-gerenciamento fraternal.
“Entre vocês não deve ser assim…” Quem o diz não sou eu, o pregador. É Jesus Cristo quem assim fala a seus discípulos. Sua palavra é um convite, um estímulo, uma promessa. Ele nos diz: Tenham a coragem de ensaiar novidade evangélica no relacionamento mútuo, de uns com os outros, de leigos e obreiros, e eu acrescento de homens e mulheres, de jovens e idosos e de ainda outros. E vocês vão ver quanta bênção Deus vai derramar sobre tal ensaio. Jesus Cristo quer a responsabilidade compartilhada. Sei que na IECLB ela já está sendo praticada. Mas é bom sermos lembrados dessa promessa sempre de novo para aprimorar cada vez mais nossa paixão que é a missão de Deus. Que esta Assembléia ajude a alcançar o objetivo para o bem das pessoas e a maior glória de Deus.
Pastor Gottfried Brakemeier