Prédica: Filipenses 3.17-21
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: Dia de Finados
Proclamar Libertação – Volume: I
Tema: Dia de Finados
I – Questões preliminares
Os versículos prescritos para a meditação do dia dos Finados – Fp 3.20-21 – são os versículos finais de um conjunto maior. Segundo K. Barth em seu comentário, p.85, esse conjunto maior inicia em 3.1b e inclui também o versículo seguinte, 4,1, com o título justiça da parte de Deus. A maioria dos comentários delimita a perícope da seguinte maneira: 3.17-21. Nessa delimitação também está previsto como texto de prédica para o 23º. domingo após a Trindade. Pode-se reduzir essa perícope aos dois versículos finais, desvinculados da admoestação inicial em 17-19? Início e fim dessa perícope não podem ser separados simplesmente. Pois se os vers. 20-21 são vistos para si, desvinculados da admoestação contida nos vers. 7-19 Poderão dar uma imagem falsa da comunidade cristã: Ela poderia esquecer-se de que ela está a caminho. E durante esse estar a caminho vale a admoestação dos versículos anteriores, não só do contexto menor, mas também do contexto maior, a partir de 3.1b. A exegese deverá comprovar isso.
II – Análise exegética
Vers. 17: Paulo conclama os membros da comunidade de Filipos a serem seus imitadores (veja 1 Co 4.16; 11.1; 1 Ts 1.6; 2.14; 2 Ts 3.7; Gl 4.12; Fp 4.9). Não se expressa nisso uma certa arrogância do apóstolo? Olhando isoladamente esse versículo, tal poderia ser a impressão. Mas é preciso ver essa afirmação em conexão com 3.2-14, em especial com o vers. 9. Portanto, não o apóstolo – e junto com ele todos os que andam segundo o modelo que tendes
em nós – está no centro das atenções, como se ele fosse critério e ponto de referência que determinam a conduta dos filipenses. Ele não os conclama para o imitarem no sentido de fazerem exatamente o que ele faz, mas para, junto com ele, que também esta a caminho (vers. 12), seguirem para o alvo diante deles (vers. 13s. 20s).
Paulo não se coloca a si mesmo como um ideal a ser seguido, mas aponta para Cristo, que é a determinante da vivência cristã (Gl 2.20). Poder-se-ia, pois, acrescentar aqui, semelhante a 1 Co 11.1, como também eu sou de Cristo. Porém, aqui essa cristocentricidade já está garantida pelo que fora dito em 3.7-11. Considerando em especial 1 Ts 1.6; 2.14, bem como a situação que se reflete em certas partes da carta aos Filipenses, onde é acentuada a persistência nas tribulações e perseguições, pode-se pensar também aqui nesse sentido: Paulo conclama os filipenses a seguirem junto com ele e com todos que assim andam mesmo em tribulações e perseguições.
Vers. 18-19: Há muitos que andam exatamente em contraposição a maneira para a qual Paulo conclama os filipenses. A palavra central do vers. 18 é a que está traduzida por andam e que já aparece no vers. 17. Com isso Paulo consegue contrapor os dois grupos usando para ambos a mesma palavra. Enquanto principalmente nos evangelhos essa palavra tem o sentido original de perambular, caminhar, em Paulo ela expressa um modo de vida (veja Rm 6.4; 8.4; 1 Co 3.3; 2 Co 4.2; 10.2; Gl 5.16; 1 Ts 4.1.12). E o seu modo de vida os caracteriza como sendo inimigos da cruz de Cristo. Por quê? Porque na vida concreta – no andar – não tiraram as consequências práticas da mensagem da cruz. Neles ha uma dicotomia entre o ser e o viver: dizem que são algo – libertos pela cruz de Cristo -, mas não vivem segundo a cruz de Cristo. O seu andar está radicalmente oposto ao andar de Paulo descrito em 3.4-14. Para ele a cruz de Cristo significa uma mudança de 180 graus. O que antes era a sua glória, Paulo considera perda, refugo (vers. 7-8) . Enquanto isso, os inimigos da cruz de Cristo fazem de sua infâmia a sua glória. Aparentemente eles já se encontram no alvo; mas quando eles realmente estarão lá, notarão que o seu alvo será a perdição. O alvo, o fim e idêntico ao juízo (veja Rm 6.21; 2 Co 11.15). Por já estarem no alvo, no novo mundo, o corpo é considerado como sendo algo sem valor, que não pode macular o ser da pessoa. Por isso pode entregar-se livremente a seus desejos e paixões. O termo ventre representa aqui o corpo. E com esse procedimento, que quer expressar uma maneira de ser do liberto, na realidade procedem como pessoas presas às coisas terrenas. Isso é, em outras palavras, o mesmo que Paulo expressara no vers. 3 com confiamos na carne (veja também o vers. 4; 2 Co 1.9). Em resumo: Mesmo considerando-se espirituais, já libertos, já no alvo, na realidade estão presos à carne, à terra; a existência deles, em verdade, está determinada não pelo Cristo, mas pela confiança em si mesmos. O fim, o alvo para onde se dirige a existência cristã e onde eles já presumem estar, mostrará a real caracterização deles: perdição, infâmia.
Vers. 20-21: Aqui Paulo volta novamente à caracterização mais detalhada dos verdadeiros cristãos do vers.17. (Em 17-21 há, pois, uma estrutura clara: 17 – andar dos cristãos; 20-21 – alvo para o qual eles se dirigem; 18 – andar dos libertos; 19 – alvo para o qual eles se dirigem. Isso é acentuado também, 1inguisticamente, pela inclusão da conjunção pois toda vez que são contrapostos os dois grupos: no vers. 18 para contrapor o andar dos espirituais ao dos verdadeiros cristãos; no vers. 20, para evidenciar o contraste entre os alvos de ambos os grupos. Nesse versículo o contraste é acentuado também pela anteposição, no grego, do pronome pessoal – veja vers. 3. Com isso fica comprovada a vinculação íntima dos vers. 20-21 com os versículos anteriores).
Do ponto de vista do conteúdo o acento está colocado na expressão nos céus em contraposição as cousas terrenas (vers. 19). Barth, em seu comentário, diz a respeito: … não em suas mãos, não presente, não em seu poder. Permanecer na verdade … significa viver nesse contraste: no ‘agora’ que ainda não é ‘outrora’, no ‘aqui’ que ainda não é ‘lá’ procurar o que está em cima; saber que sua vida está nas mãos de Deus, junto com Cristo (p. 112, versão própria). Isso é, em outras palavras, o mesmo tema dos vers. 8-9.
Paulo denomina de pátria aquilo, ao qual os cristãos devem apegar-se (o termo só ocorre aqui no NT). O sentido não é que os cristãos formam um corpo estranho, como se fossem uma colônia de estrangeiros fora da terra natal. Nesse caso os cristãos formariam uma ‘pátria celeste’ no meio do mundo. E nesse momento seria grande – e perigosa – a proximidade com os espirituais, que defendem uma escatologia realizada (presente). O sentido da palavra é figurado: ela expressa a distância interna (innere Fremdheit) dos cristãos não em relação ao estado terreno, mas com relação ao ambiente terreno em geral e (expressa também) a sua ligação para com o reino celestial de Cristo, ao qual eles, por assim dizer, pertencem como cidadãos (Strathmann, ThW VI, p. 5)5 – versão própria). Por estarem determinados pela pátria celestial, a qual eles ainda não têm plenamente, eles esperam dos céus o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Isso Paulo acentua em contra posição aos espirituais que não tem mais nada a esperar e que, portanto, não acreditam na parusia do Senhor que trará a libertação plena e total. O termo esperar sempre é usado por Paulo para expressar a esperança com vistas à libertação total (veja Rm 8.19.25; 1 Co 1.7; Gl 5.5)
Em que consiste essa libertação total? Na transformação do nosso corpo (veja 1 Co 15.51ss). Corpo não se refere à parte corpórea em contraposição à parte espiritual (filosofia grega), mas designa toda a pessoa. E essa pessoa é denominada corpo de humilhação, isto é, a existência passageira, destinada à morte. Essa existência será transformada (= mudança radical =) numa existência igual ao corpo de sua glória, isto é, uma existência plena, não mais destinada à morte e que engloba todo o ser da pessoa. Essa transformação se dará graças ao poder de Cristo, ao qual tudo está subordinado (veja 2.9ss; 1 Co 15.27s; Ef 1.22).
É interessante observar que essa perícope desemboca num certo hino de louvor de três versos (alguns exegetas acham que Paulo cita um hino prefixado): no primeiro verso (20) predomina o nós; no segundo (21a), o nós já perde de peso (só aparece como adjunto) e se destaca a ação libertadora de Cristo; no terceiro (21b), só mais o Cristo com seu poder universal está no centro das atenções. Nós, por assim dizer, somos engolidos e englobados pelo Cristo libertador, sendo ele tudo, e nós, consequentemente, também tudo, mas somente nele e por ele.
III – Meditação
1. Esse texto está previsto para a pregação no dia de Finados. Qual o significado desse dia para a comunidade cristã?
Sem dúvida, o significado original desse dia é a recordação daquelas pessoas que não vivem mais; é a lembrança de entes queridos que deixaram de compartilhar conosco a trilha da vida. E com isso nós corremos o risco de, na pregação, nos perder em perguntas e reflexões ao redor dos mortos: onde estão? que será deles? Baseados nessas perguntas poderemos ser induzidos numa divagação acerca da existência espiritual dos mortos; da pátria celestial onde se encontram os mortos. Para tal os vers. 20-21, tomados isoladamente, poderão seduzir facilmente. Diante disso é necessário considerarmos duas coisas. Em primeiro lugar, tais divagações são teologicamente incorretas. A mensagem cristã não conhece uma existência espiritual, uma alma desvinculada do corpo. Nós não podemos fazer especulações acerca de onde os mortos estão nem do que lhes irá suceder. A única coisa que podemos dizer é que também para eles nós esperamos a libertação plena e total da parte de Deus. Por isso a pregação nesse dia não pode ser uma pregação de lástima, de choro, de desespero, mas uma pregação de esperança e de confiança. Portanto, o dia de Finados, na perspectiva cristã, não pode prender os nossos olhos nos mortos, impedindo-nos de olhar além. Em segundo lugar, tal também não é a perspectiva do texto. Fp 3.20-21 não fala da morte, mas da vida. Tomados isoladamente, os vers. 20-21 poderiam levar a uma compreensão errônea dos mesmos, como se falassem da vida depois da morte. A exegese nos mostrou que esses versículos estão intimamente ligados aos versículos anteriores. E esses versículos falam da vida, da vida concreta no dia-a-dia (andar). E a partir dessa reflexão Paulo chega a falar do alvo para onde a vida do cristão se dirige. Por isso os vers. 20-21 não devem ser isolados de seu contexto, mas a pregação deve estar baseada em 3.17-21.
2. A pregação no dia de Finados é pregação para os vivos. Isso parece algo supérfluo de se dizer. Mas isso deve ser dito e entendido nesse exagero como continuação do que foi dito acima: no dia de Finados falamos para os vivos a respeito da vida ameaçada pela morte. Fp 3,17-21 fala da vida tendo em vista o seu alvo.
A pergunta central que norteia toda a perícope é: o que determina a nossa existência? A vida ou a morte? Paulo contrapõe duas maneiras de se autocompreender. Os termos-chaves estão colocados com as palavras cousas terrenas e pátria nos céus. Enquanto os primeiros se baseiam em si mesmos – não obstante se considerarem libertos por Cristo -, os outros sabem-se determinados pelo Cristo: a sua vida, a sua justiça eles não têm de si mesmos, mas as receberam do Cristo.
Essa determinação da existência se evidencia na vida concreta. Na vida diária se mostra se nós somos determinados realmente pelo Cristo ou não. Porque os inimigos da cruz de Cristo exatamente se dizem determinados pelo Cristo; mas no andar do dia-a-dia se mostra que não é a cruz de Cristo que os norteia, mas são eles mesmos, a sua glória, os seus desejos. E com isso, na realidade, eles já estão na morte (veja abaixo no ponto 4). Enquanto isso, os que são determinados pelo Cristo carregam a cruz de Cristo diariamente. Sua vida é uma vida na paixão: ainda não estão no alvo, mas, mesmo aparentemente vencidos, são os vencedores, porque aquilo que os mantém é a justiça que o Cristo concede. A sua justiça está nas mãos de Deus e não nas suas próprias.
Exatamente por isso os cristãos necessitam da admoestação. A base da vida deve determinar o andar diário. Por que, se falta essa admoestação, o constante ser lembrado de que nós ainda não estamos no alvo, pode dar a falsa imagem na qual caíram os inimigos da cruz de Cristo, de que nós já temos tudo, já estamos lá. E com isso jogamos novamente tudo fora, prendendo-nos a nossa própria justiça. Por isso a constante necessidade de se colocar sob a palavra: o cristão precisa do confronto com a palavra, do questionamento pela palavra para permanecer sob a palavra. Mas a admoestação não pode estar desvinculada da esperança. Se faltar essa, a admoestação redunda em moralina e novamente em inimizade da cruz de Cristo. A vida que se sabe liberta por Cristo espera, tem certeza de que para ela também virá a consumação, o dia da ressurreição da cruz.
3. Quem são os inimigos da cruz de Cristo hoje? São os que não tiram as consequências. São os que afirmam que a sua pátria está nos céus, mas permanecem com a vida diária em suas próprias mãos. São, por exemplo, os ‘cristãos de domingo’ ou os ‘cristãos das festas’ que só se lembram do Cristo na hora do culto, no domingo ou nos cultos especiais (Natal, batismo, confirmação), mas que não dão lugar para o Cristo no seu agir diário. São os pastores que encaram o seu pastorado como mera profissão, que lhes dá uma vida assegurada economicamente. São os ‘revolucionários’ que acham estar em suas mãos a edificação do Reino de Deus aqui na terra. É a Igreja como estrutura se toda a sua atividade se resume em aprimorar e manter a estrutura ao invés de a mesma estar a serviço do mundo, à serviço da cruz de Cristo no mundo. Inimigo da cruz de Cristo é o mundo ocidental que se chama de cristão, mas onde o Cristo é negado a cada esquina de quadra. Os inimigos da cruz de Cristo são os que não têm mais esperança, ou melhor, que não esperam nada do futuro, de Deus, dos céus, mas que só esperam em si mesmos. São aqueles que, por conseguinte, não necessitam de admoestação, porque já têm tudo; ou melhor, não têm nada.
4. Finados nos lembra que caminhamos para a morte. Ela é uma ameaça constante para a nossa vida num duplo sentido: a morte é o fim da vida terrena e ela nos lança a pergunta pela esperança cristã. Será a morte o fim de tudo, ou nós cremos numa vida plena e total, na transformação do nosso corpo de humilhação para ser igual ao corpode sua glória? Por outro lado, a morte já nos pode atingir muito antes de expirarmos. É a morte ‘espiritual’, a situação daquela pessoa que, por si só, procura a resposta pelo sentido da vida. É a situação dos inimigos da cruz de Cristo, pois vida – e vida só existe lá onde a morte perdeu a chance – só se obtém na cruz de Cristo. Talvez seja este o melhor ponto de entrada no texto nesse dia de Finados.
IV – Bibliografia
– BARTH, Karl. Erklärung des Philipperbriefes, 1928.
– FRIEDRICH, Gerhard. Der Brief an die Philipper. In: Das Neue Testament Deutsch. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1968.
– GNILKA, Joachim. Der Philipperbrief. In: Herders Theologischer Kommentar zum Neuen Testament. Freiburg-Basel-Wien, 1968.
– IWAND, Hans Joachim, Philipper 3.17-21. In: Predigt-Meditationen, p. 272-276.
-LOHMEYER, Ernst. Der Brief an die Philipper. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament . 1964.
– QUERVAIN, Alfred de. Philipper 3.17-21. In: EICHHOLZ, Georg, ed. Herr, tue meine Lippen auf. Wuppertal-Barmen, Emil Müller Verlag, 2a ed., 1959, vol. 2.
Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia