Prédica: Romanos 8.1-11
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Proclamar Libertação – Volume: I
Tema: Pentecostes
I – Tradução
1) Agora, pois, já não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus.
2) Pois a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo te libertou da lei do pecado e da morte.
3) Porque o que era impossível à lei, no que estava enfraquecida pela carne, Deus fez, enviando seu próprio Filho, em nome da carne pecaminosa, e condenou o pecado na carne,
4) para que as ordens da lei se cumprissem totalmente em nós, que não andamos segundo a carne, mas sim segundo o Espírito.
5) Porque aqueles que vivem segundo a carne, pensam de acordo com a carne, mas os que vivem de acordo com o Espírito, pensam de acordo com o Espírito.
6) Porque a propensão para a carne produz morte, a propensão para o Espírito produz vida e paz.
7) Por isso o pendor para a carne é inimizade contra Deus, porque Deus não esta sujeito à lei, nem mesmo pode estar.
8) Aqueles que estão na carne não podem agradar a Deus.
9) Vós, porém, não podeis estar na carne, mas sim no Espírito, porque o Espírito de Deus habita em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse não é dele.
10) Contudo se Cristo está em vós, o corpo está morto, por causa do pecado; o Espírito, porém, é vida, por causa da justiça.
11) Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, dará vida também aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita no meio de vós.
l – Divisão do texto
V 1: O estar em Cristo tem como consequência: ser arrebatado da condenação eterna.
Vss 2-4: Caracterizam a nova vida daquele que coloca sua vida sob o senhorio de Cristo.
Vss 5-8: Revelam o que significa vida verdadeira ou morte. Quem tiver sua vida estampada pelo Espírito de Deus, tem a vida verdadeira, tem paz e comunhão com Deus. Quem, por outro lado, tiver sua vida marcada pela carne, pelo Eu, que procura justificar-se por si próprio perante Deus, tem metas humanas, que conduzem à morte e não tem futuro.
Vss 9-11: Somos de Cristo, se o seu Espírito se assenhoreou de nós. Este Espírito em nós (= este Cristo em nós) tem poder de transformação e de renovação.
Obs. O 8º. capítulo da carta aos Romanos está inserido no grupo de perícopes que inicia com o 5º. capítulo e trata da vida no novo Éon. A nossa perícope fala, em especial, da libertação do homem da morte e da condenação eterna.
II – Exegese
V 1: O capítulo 8 inicia com as palavras agora, pois, indicando tratar-se da confirmação de algo já expresso anteriormente, mais precisamente nos versículos l a 6 do capitulo anterior. Para os que estão em Cristo, isto é, para aqueles que vivem sob o senhorio de Cristo (e não em união mística com Cristo!) o pecado, despertado no homem pela lei (Rm 7.7ss), está condenado. Paulo lembra-se, em especial, do evento de Gólgota. Para o apóstolo, estar em Cristo é idêntico ao estar no Espírito (V 9) ou permitir que o Espírito de Deus habite em nós (V 9). Uma tríplice realidade, mas que em seu conteúdo expressa uma única verdade. O versículo em apreço já revela o ar de libertação, que emana da perícope toda. Libertação para uma nova existência, caracterizada pelos termos paz e vida verdadeira”(V 6) .
Vss 2-4: Libertação da lei do pecado e da morte é o que experimentam aqueles que estão em Cristo”. A lei do Espírito não separa só da morte e do pecado, mas também da lei mosaica. A liberdade cristã está orientada não para uma nova lei, mas sim para o próprio Senhor. Segundo a concepção paulina, o homem sem Cristo é aquele que só pode exclamar: Desventurado homem que sou! (Rm 7.24). O Eu, a autojustificação, não é mais o ponto de partida para quem está em Cristo; esse, porém, pode iniciar a sua nova existência sob o senhorio do próprio Cristo. A vinda de Cristo em carne pecaminosa (V 3) é o início de uma nova realidade. Onde Deus começa a agir, ali a grandeza terrena chega ao seu fim (Jo 3.16ss; Gl 4.4).
A carne pecaminosa não é somente superada, mas sim condenada na cruz de Gólgota. Este Cristo que trouxe a libertação da lei do pecado e da morte nasceu em carne pecaminosa, isto é, ele tinha natureza carnal. Não era somente semelhante ao homem de carne pecaminosa, mas o era efetivamente. Cristo teve de nascer como homem, ser um de nós, porque a lei não trouxera a libertação do homem. Deus teve que escolher um outro caminho, e o caminho escolhido foi o envio do próprio Filho. Este não sucumbiu perante o pecado, mas venceu-o. Como sucedeu isto? Morrendo na cruz! Através da sua morte Cristo tem o poder de renovar a todos que não mais se deixam guiar pela carne. O homem em sua natureza pecaminosa trouxe a bancarrota da lei; ao passo que o Espírito de Deus, a libertação da carne. A ação de Deus não visa à destruição do homem, e sim a aniquilar o pecado no homem.
A comunidade de Cristo torna-se o lugar da ação salvífica. O Espírito de Deus nos revela isto e atualiza constantemente a nossa aceitação da parte de Deus (E. Kaesemann: An die Roemer, pág. 209). Agora existe para nós um lugar onde vivemos livres da condenação. Paulo caracteriza este lugar de estar em Cristo. Deste novo fundamento testemunha a comunidade cristã.
Vss 5-8: É algo natural que o ser humano deseja viver uma vida verdadeira. Mas como ser estampado pela carne -e carne como lugar vivencial do pecado – ele só produz a morte. Assim, quem tiver a sua existência marcada pela carne, tem em mente metas humanas; e quem vive segundo o Espírito de Deus, tem vida verdadeira, paz e comunhão com Deus. O apóstolo vê um antagonismo entre carne e Espírito. Ou vivemos sob o poder da carne, e somos inimigos de Deus (V 7), ou vivemos sob o poder do Espírito, recebendo gratuitamente paz e vida (V 6). Levar uma vida marcada pela carne afasta de Deus, ao passo que vida vivida segundo o Espírito dele aproxima.
A comunidade cristã é para o apóstolo Paulo um corpus permixtum, onde há falsas testemunhas e membros indignos, mas é ao mesmo tempo o campo onde atua o poder do Espírito.
Vss 9-11: Discípulo é aquele que tem o Espírito; quem não o tiver não é dele (V 9) . O Espírito que se assenhoreia do discípulo não é uma grandeza que atua isoladamente no ser humano. Muito pelo contrário, o Espírito sempre deverá estar colocado sob a ação do próprio Cristo. Cristo está presente, neste mundo, através do Espírito. Estar no Espírito nada mais é do que um sinônimo para estar em Cristo. Não poderemos ser discípulos se o Espírito, ou melhor, se Cristo não estiver com nós. Já no Batismo fomos presenteados com o Espírito (Rm 6,lss). Quem for vivificado pelo Espírito de Deus, agirá segundo a vontade de Deus, isto é, agirá em justiça.
Paulo crê numa transformação total do homem (Fl 3.21). O apóstolo baseia esta sua esperança no lato de Deus, através do seu Espírito, ter ressuscitado a Jesus Cristo dentre os mortos. Do nada, do caos, Deus criou o mundo (Gn 1); do silêncio da morte, da sepultura, Deus criou nova vida, vida verdadeira, que não está limitada pulo poder da morte.
Para o apóstolo Paulo o ato de salvação não consiste no fato de ter sido o homem liberto do seu corpo, mas sim do pecado e da morte. Este ato não é concedido, paulatinamente, através de um processo interior no homem, mas nos é dado, de graça, através do renascimento no Espírito – no Batismo.
l – Escopo
O que a lei de Moisés não conseguiu fazer – impelindo o homem a construir por conta própria um mundo novo (e um homem novo) – Cristo o fez. O homem que não vive a partir da imposição do seu Eu, mas que confessa o senhorio de Cristo, está livre para viver em paz consigo mesmo e será um embaixador da paz e da justiça neste mundo.
Numa real idade de vida e de mundo, onde existem sérias dúvidas quanto à possibilidade de sua transformação, o Espírito de Deus tem poder de renovar e de transformar. O Espírito de Deus é criativo e o presente da criatividade também foi concedido ao homem (e a igreja), através do evento de Pentecostes.
III – Meditação
O texto, até agora exposto, deverá servir de base para a prédica no Dia de Pentecostes. Deus envia seu Espírito sobre os discípulos, que sentiam-se atônitos e sem ação frente à morte, mais precisamente frente ao fato de Cristo, seu mestre e guia, não mais estar presente, de carne e osso, em seu meio.
Se observarmos, por outro lado, a atuação dos discípulos após a descida do Espírito Santo, em Pentecostes, notamos uma sensação de liberdade. De repente, os discípulos sentem-se tão livres e tão à vontade, para anunciar a verdade do Evangelho a toda multidão que para lá afluiu (At 2.6.14ss).
A nossa perícope evidencia claramente um testemunho do apóstolo Paulo, testemunho este que fala da libertação do homem em Cristo. A ação do Espírito é concebida como agente da libertação do homem. Libertação de que? Libertação da lei que leva ao pecado e tem a morte como futuro. A meta de Deus sempre foi – o Antigo Testamento já é testemunha disto – felicidade plena (não aparente) e vida verdadeira. Segundo a concepção bíblica, foi dada ao homem a chance de viver em paz e em harmonia com o seu Criador. Deus quis o homem um homem feliz. O ser humano, no entanto, sucumbiu frente à tentação. O êxodo do povo de Israel do Egito teve novamente como meta: a felicidade, a paz e o bem-estar do povo eleito.
Importa saber que Deus não visa a chegar aos seus objetivos como um déspota, um ditador, usando de autoritarismo, passando simplesmente por cima daqueles que lhe seriam um obstáculo. A ação de Deus neste mundo é totalmente contrária a de um ditador autoritário. Ele quer usar o homem como um instrumento a seu serviço.
O ser humano, desde a sua gênese, fora convidado a colocar-se ao lado de Deus, vivendo a sua vontade. Por esta razão, o Criador estabeleceu ordens e mandamentos como sinal da aliança com o seu povo. Foi exatamente em relação a este pedido de cooperação, colocando-se ao lado de Deus, que o homem fracassou. Ele entendeu os mandamentos como um trabalho a ser concluído; concluída esta tarefa, pensou que tivesse feito o suficiente e que agora pudesse realizar o que bem entendia e viver a seu bel-prazer. O apóstolo Paulo chama este tipo de vida de viver segundo a carne. O homem perverteu a lei. Destarte a lei de Deus, que originalmente era boa, resultou em lei do pecado e da morte. Ao invés de aproximar, a lei afastou de Deus. Nesta situação Deus poderia ter aniquilado o homem desobediente. A ação de Deus, porém, não tem como objetivo destruir o homem em si, mas sim destruir o pecado, aquela barreira colocada entre Deus e o homem. E o combate contra o pecado deu-se através do envio do seu próprio Filho, Jesus Cristo. A luta contra o poder do pecado realiza-se na vida humana, onde o pecado age.
Agora existe para nós um lugar onde experimentamos a libertação da condenação eterna. Para o apóstolo este lugar é idêntico ao estar em Cristo. Quem vive sob o senhorio de Cristo, não mais procura ver-se livre de Deus, após ter executado, talvez com esmero, o seu trabalho, dando cumprimento as leis de Deus. Ao mesmo tempo em que Cristo torna-se Senhor das nossas vidas, dá-nos o seu Espírito. O homem que foi colocado sobre um novo fundamento, e cujo Senhor agora é Cristo, não mais será impelido a construir, com as próprias mãos, a estrada que conduz a Deus. Essa tentativa não terá a liberdade como fruto, mas sim resultará num beco sem futuro e sem esperança.
A igreja institucionalizada também se vê, com frequencia, tentada a viver por conta própria, procurando impor-se, procurando isolar os chatos, aqueles que incomodam em seu seio (vide M. Lutero) . A função e a missão da igreja não é a de isolar, mas de prestar serviço. Uma igreja que procura impor-se, somente para conseguir maior prestígio, maior brilho exterior e maiores favores, na concepção paulina vive segundo a carne, e viver segundo a carne tem como futuro a morte(v. 6). A vida da igreja realiza-se não na procura de imposição do seu prestígio e poder, e sim no serviço que presta, com liberdade e com coragem, sem medo do poder político. Como igreja não poderemos colocar os holofotes sobre nossas fachadas, de modo que brilhemos intensivamente, mas para nós mesmos. Seríamos, então, nada além do que uma igreja de fachadas brilhantes, porém sem muito conteúdo. Nossa missão não é brilhar para nós mesmos, e sim para aqueles que necessitam da nossa luz. É possível servir de luz ao outro, por que Deus promete estar presente em nosso meio, através do seu Espírito. Deus o promete, e envia seu Espírito a igreja, porque tem interesse em usá-la como seu instrumento. O Espírito de Deus é criativo e tem poder de transformar e de renovar (v. 11). Ele faz com que a igreja, como lugar de atuação do Espírito, seja também criativa. A igreja de Cristo não vive de tradições (que podem ser úteis) e de um passado glorioso (antigamente tudo era melhor, havia mais fé, etc.), mas vive também de experiências novas, que podem ser consideradas até mesmo revolucionárias (não necessariamente no sentido político!). Uma igreja que não vive sob o impacto de injeções novas torna-se monótona e sem força.
Vida e paz (v. 6) são a expectativa de uma igreja controlada pelo Espírito, são dois componentes deste futuro, pelo qual somos responsáveis, Paz e vida não acontecem somente dentro de nós, não são algo particular que guardamos para nós. Deus não só quer uma vida de paz interior (paz de espírito). Ele almeja um mundo marcado pela paz e pela vida, um mundo não estampado por guerra (seja fria ou quente), miséria, fome, subnutrição, analfabetismo, exploração e morte. O Espírito de Deus destrói barreiras (também as confessionais), as quais não têm como meta vida verdadeira e paz. A igreja tem esta grande responsabilidade e tarefa de ser o primeiro lugar onde transparece esta atmosfera de paz e de vida, possível sob o senhorio de Jesus Cristo, que une e reúne. Paz e vida não são ideais extravagantes e visionários, mas sim já podem ser realidade vivida aqui e agora.
IV – Plano de Prédica (como sugestão)
Pentecostes: O Festival da Libertação
a) do medo, da insegurança e da incerteza (At 2)
b) da condenação eterna – fruto da perversão da lei (Rm 8.1s)
c) da necessidade de imposição do ¨Eu¨ (8.3,10)
d) para o testemunho do senhorio de Cristo sobre a vida humana (8,3)
e) para o serviço ao homem (paz, vida, justiça) (8.6)
f) para a criatividade daquele que está em Cristo (8.11)
V – Bibliografia
– ALTHAUS, Paul, Der Brief an die Römer. In: Das Neue Testament Deutsch,
-10a. ed., Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
– BARTH, Karl. Kurze Erklärung des Roemerbriefes.München/Hamburg, Siebenstern Taschenbuch-Verlag, 1967.
– BULT MANN, Rudolf. Theologie des Neuen Testamentes. 49 ed. , Tübingen, 1961.
– KAESEMANN, Ernst. An die Römer. In: Handbuch zum Neuen Testament. Tübingen, 1973.
– TIBBE, Johann. Geist und Leben (Eine Auslegung von Römer 8). I n: Biblische Studien. Neukirchen, 1965.
Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia