Tema – Movimento Negro: Alma não é branca, negro não é luto, preto não é cor!
Explicação do tema:
Este país foi construído pela mão-de-obra negra, escrava durante quase quatro séculos, explorada sob outras formas até séculos, explorada sob outras formas até hoje. A transformação do modo de produção no século XIX levou à assim chamada abolição da escravatura, jogando o povo negro para dentro da marginalidade. Os novos espaços de vida e produção, inclusive terras disponíveis, foram tomados pelos imigrantes brancos.
Persistem ainda hoje múltiplas formas de espoliação econômica, cultura e religiosa do povo negro. A sociedade dominante sugere ao negro a saída individual, caracterizada pela política do embranquecimento e adaptação aos sistemas e valores imperantes. A resistência coletiva, no passado como no presente, se manifesta nos quilombos — novembro, celebração de Zumbi —, na formação da religiosidade afro-brasileira e no movimento negro atual.
Texto para a prédica: Amós 9.7-10
Autor: Gerd U. Kliewer
l — O nosso racismo de cada dia
Em vez de uma análise teórica, quero relatar três casos que, a meu ver, evidenciam o problema do racismo entre nós:
1. Em janeiro e fevereiro de 1981 o estudante hóspede da Faculdade de Teologia da IECLB, Daniel Seyenkulo, da Libéria, África, estava fazendo um estágio no centro comunitário de Alvorada. Já no fim desse período, ao querer pegar um ônibus na parada em frente ao centro comunitário, foi abordado por alguns homens que chegaram num carro sem placa e exigiram revistar sua bolsa tira-colo. Os homens brancos, Daniel preto. Se Daniel fosse um negro brasileiro, morador daquele bairro e conhecedor do fato de que no Brasil o negro conhece o seu lugar, então ele saberia que agora chegara a hora de encolher a cabeça e comportar-se submissamente, pois os homens — que não se identificaram – eram da Polícia Civil. Mas Daniel, cidadão de um país governado por negros livres, não soube reagir à altura da situação. Perguntou com que direito queriam revistá-lo. Achou que possivelmente os homens eram assaltantes. Essa pergunta, aos olhos dos representantes da lei, era no mínimo uma sem-vergonhice (acusaram-no, depois, de desacato à autoridade). Caíram em cima dele, surraram-no e empurraram-no para dentro do carro. Daniel, não acostumado a tais tratos e achando que estava sendo sequestrado, reagiu. Tentou identificar-se, pois já descobrira que o pessoal era da polícia, mas não conseguiu melhorar a sua sorte. Recebeu socos e bofetadas e foi levado à delegacia, onde acabou trancafiado. Foi libertado após a intervenção da direção da Faculdade e da Igreja. O caso foi publicado nos jornais e na televisão; um informe foi levado ao Secretário da Segurança. Contra os policiais foi aberto um processo que acabou em nada. Daniel, pouco depois do incidente, voltou para a sua pátria, com a experiência de que no Brasil, apesar de todos serem iguais, não convêm ser preto.
2. Na aula de Ensino Confirmatório chegamos à lição que trata de Martin Luther King (A estrada da vida, aula no44). Abrimos o livro, e a primeira coisa que caiu na vista foi a foto de Martin Luther King. Negrão feio! comenta um dos alunos. Uma reação espontânea, e como tal honesta, vinda do subconsciente, do depósito dos nossos preconceitos. Uma reação normal entre o nosso povo gaúcho, descendente de imigrantes europeus. Normal, também, entre os evangélicos. Para eles, negro e feio, preto e sujo, negro e vagabundo combinam muito bem. A cor da pele preta provoca quase só associações negativas. Anjos, porém, são brancos; branco significa inocência. Se alguém diz: E um preto! ele faz um julgamento conclusivo e logo entendido por todos, um julgamento geralmente feito antes de conhecer a pessoa (como no caso mencionado). Não há mais nada a acrescentar.
A nível racional todos estão dispostos a concordar que Negro também é gente e Também existem negros bons (ah, esse também que ofensa!), mas no nível espontâneo, nos palavrões, aí o nosso racismo manifesta-se com mais clareza.
3. O Roteiro de Trabalho da OASE 1984 propõe, entre outros temas, que se discuta o Racismo (p. 117ss). Num grupo de senhoras, num dos projetos de colonização do Mato Grosso, levantei esse tema. Fiz uma pequena introdução sobre racismo, lemos o caso relatado no Roteiro, e, dando exemplos, descrevi as formas como nós costumamos discriminar os que têm outra cor da pele. A discussão, após essa introdução, ficou bem animada. Mas as senhoras, todas brancas e, com uma exceção, de origem alemã, não falaram do racismo que elas praticavam. Falavam no racismo do qual se consideravam vítimas. É que naquele local os colonos do sul formam a segunda onda de migrantes. A primeira leva era de goianos e baianos, todos morenos; e estes são a maioria. Não vêem a penetração gaúcha, respectivamente, sulista com bons olhos. Reagem contra os sulistas que, com a sua formação melhor e brancura maior procuram assumir todos os postos-chave no projeto de colonização. Falam mal dos sulistas, não querem aceitá-los. Resultado: as senhoras sentiam-se objeto de discriminação racial. Não conseguiam entender, por que eram rejeitadas e julgadas. Só podia ser porque os goianos tinham preconceito contra elas.
O último exemplo mostra que discriminação racial é também uma questão de força. Discrimina quem pode. Quem não pode, mas mesmo assim se considera de qualidade melhor que os outros, retrai-se sobre si mesmo numa atitude que poderíamos chamar de arrogância racial, que diz: A minha raça, etnia ou grupo sem dúvida é muito superior que todos os outros. Mas infelizmente somos uma minoria, e assim o nosso valor real não aparece. Ê a atitude que olha as pessoas de outras raças e etnias de cima para baixo, com desprezo. Onde os portadores dessa arrogância racial predominam, ela facilmente transforma-se em discriminação.
Poderia dar mais exemplos que mostram que a discriminação racial e a arrogância racial são uma realidade, tanto nas relações sociais, quanto na ideologia e na mentalidade do nosso povo. A experiência brasileira também mostra que o problema do racismo não se resolve por lei. Desde 1951 existe no Brasil a lei Afonso Arinos, que pune a discriminação racial. Mas Hélio Santos (Veja no. 719 de 16 de junho de 1982, p. 162) aponta para o fato de que em mais de 30 anos de existência dessa lei nunca se conseguiu condenar um racista. Essa lei pode ter contribuído para chamar a atenção para o problema e po¬de ter influenciado as consciências, mas proteção contra a discriminação racial ela não dá.
Onde nós, que procuramos viver o Evangelho de Jesus Cristo, devemos atacar o problema do racismo? A resposta certamente será: Lá onde ele se manifesta, pois o racismo é uma negação da afirmação de que não pode haver judeu nem grego, nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3.28). Mas o primeiro passo na nossa luta contra a discriminação racial deverá ser o combate ao nosso racismo de cada dia, à arrogância racial, â discriminação que praticamos em obediência a nossas convicções, nossos preconceitos, nosso subsconsciente. Pois as igrejas cristãs, através da sua pregação, têm produzido ou fomentado ideologias e mentalidades racistas. A primeira coisa a exigir delas é que agora desativem esse seu produto.
II – O texto
Parece-me necessário examinar, o que o texto Amós 9.7-10 tem a ver com o problema da discriminação racial. O que motivou a escolha dessa perícope? Até que ponto ela tem a ver com racismo? A sua composição é justificada? Se os exegetas têm razão, então os vv. 8 a 10 são secundários ou acréscimos posteriores, e não estão necessariamente relacionados com o v. 7. Este é considerado como sendo um dito original de Amos. Pode-se ver os vv. 8ss como o anúncio do castigo referente à transgressão mencionada no v. 7? Na realidade, o v. 7 não fala de uma transgressão. Fala da ação soberana de Deus, que não se restringe a seu povo escolhido, mas abrange todos os povos. Ou podemos entender o v. 7 assim: Deus está comunicando ao povo escolhido que ele tem outras opções, pode escolher outro povo? Neste caso, a segunda parte do v. 8, que restringe a condenação, está sobrando. E o v. 9: Refere-se ele à profecia do terremoto de 9.1, ou até aponta para a deportação de israelitas mencionada em 2 Reis 15.29? Esta deportação aconteceu bem depois do tempo de Amós.
Acho que devemos considerar o v. 7 como uma unidade separada, com o seu tema próprio, sem vinculá-lo aos versículos seguintes. E entendo que este dito de Amos realmente quer chamar a atenção para a arrogância racial de fundo religioso que grassa entre o povo de Israel. As minhas considerações seguintes baseiam-se, portanto, quase que exclusivamente no v. 7.
Qual é a situação que Amós está apontando? No seu tempo, o do rei Jeroboão II, o reino de Israel passa por um período de progresso do tipo brasileiro: crescimento econômico baseado na exploração do mais fraco; surgimento de uma classe dominante, ociosa e exploradora; pactos políticos para todos os lados para garantir a paz externa e interna. Na sociedade, as classes distanciam-se uma da outra. A propriedade da terra concentra-se na mão de poucos. Os que vivem do seu trabalho empobrecem, as classes dominantes, a corte, o exército, os funcionários do rei enriquecem. Nesta situação social torna-se necessário desenvolver um discurso ideológico para abafar as contradições existentes na sociedade. Como tal, oferece-se a doutrina da eleição: Não somos o povo escolhido por Deus? Portanto, nada pode acontecer-nos, porque Deus é a nosso favor. O que fazemos, tem que dar certo, pois Deus ligou os seus planos à nossa existência. Assim falam os governantes e sacerdotes.
Amós combate essa ideologia da eleição. Não questiona que o povo de Israel seja o escolhido por Deus. Mas ele alerta esse povo, que essa eleição não significa um direito, como eles acham, mas uma tarefa. A eleição é real, mas ela não tolhe a liberdade de Deus. A qualquer momento Deus pode escolher outro povo para realizar a sua tarefa no mundo. E Deus não age só através de seu povo, mas também através de outros povos. Não é somente o Senhor dá história de Israel, mas Senhor de toda a história. A eleição, portanto, não é uma almofada, sobre a qual o povo pode dormir tranquilo, mas é um compromisso, o compromisso de estar em constante contato com Deus para descobrir a sua vontade e realizá-la. Ela não coloca o povo de Israel sobre os outros povos, mas a serviço de todos. Não garante benevolência e complacência ao povo escolhido, mas antes maior rigor no julgamento. De todas as famílias da terra somente a vós escolhi, portanto eu vos punirei por todas as vossas iniqüidades (Amós 3.2). Os que dizem: O mal não nos alcançará, nem os encontrará (Am 9.10) não escaparão do castigo. As palavras de Amós são uma ofensa para os israelitas convictos da sua eleição: O Senhor diz: Para mim vocês não valem mais que os pretos lá da Etiópia. E não precisam pensar que fiz uma coisa especial, quando tirei vocês do Egito. Pois assim como fiz subir Israel do Egito, também deixei vir os filisteus de Caftor e os siros de Quir (Amós 9.7).
Os filisteus e os siros são os inimigos tradicionais dos israelitas. E estes não seriam de mais valor para Deus que aqueles? Realmente, a arrogância racial não tem vez diante de Deus.
Ill — Atualização
É conhecido que os brancos da África do Sul baseiam o seu racismo em doutrinas religiosas. Identificam-se como povo escolhido, convocado por Deus para ocupar a terra e dominar sobre os outros povos, com os quais convivem na mesma área. A ideologia racial religiosa foi transformada em lei no sistema de Apartheid (segregação racial). Nos tempos da escravidão, uma das justificativas teológicas da escravidão deduzia-se da maldição pronunciada por Noé (ver Gn 9.20-27) contra o seu filho Cão e neto Canaã: Maldito seja Canaã; seja servo dos servos a seus irmãos! Consideravam-se os pretos descendentes de Cão e, como tais, destinados por Deus à escravidão.
O que ainda persiste de doutrinas religiosas racistas no nosso meio? Fato é que os nossos evangélicos de descendência alemã são portadores de uma arrogância racial acentuada. Inquestionavelmente consideram a sua raça (para eles, alemão é uma raça) superior às outras. A ideologia nazista deixou os seus vestígios entre a nossa gente. A convivência fez com que hoje aceitem os gringos (italianos) e descendentes de outras etnias brancas como equivalentes, mas os pretos são claramente considerados de raça inferior. O qualificativo preto é facilmente distribuído a pessoas que não se gosta (em alemão Blauer = azul). Às vezes o assim chamado preto é bastante claro de pele, mas não pertence aos descendentes da imigração europeia do século passado. A rejeição não se refere somente à cor da pele, mas também à cultura, à maneira de ser, aos valores diferentes que o preto representa. Essa arrogância racial não é própria só dos evangélicos, encontra-se da mesma forma entre os colonos católicos. Ela é benevolente e mansa, onde o elemento branco domina, mas torna-se agressiva, onde a nossa gente tem que competir no mercado de trabalho ou na posse da terra com os pretos ou índios.
Naturalmente todos sabem que não se deve ser racista. Conceitos racistas não são manifestados abertamente. Mas é comum a opinião de que não se devem misturar as raças, que isso seria contra a vontade de Deus. Nas Novas Áreas de Colonização encontra-se também a convicção de que o gaúcho (o alemão e o gringo) tem a tarefa de desbravar as terras do Brasil e levar o progresso a todos os lugares. Essa tarefa é dada a ele por Deus. Na realização dessa tarefa, o posseiro que pertence à categoria de preto, e o índio são empurrados mais para frente, para dentro do mato. Mas isso é considerado normal, pois preto e índio não sabem aproveitar a terra. A cultura superior tem que vencer a inferior.
IV — O que pregar?
Partindo de Amós 9.7, acho que o tema da pregação deve ser a arrogância racial que certamente estará presente entre os ouvintes. Não vejo sentido, porém, em agredi-los com a acusação de racistas.
Melhor será tentar conscientizar os ouvintes das barreiras que a sua cultura, os seus conceitos, o seu subconsciente levantam contra pes¬soas de outra raça e cor. Certamente são ainda poucas comunidades que declaradamente se negam a receber negros em seu meio. Consultadas, as diretorias da maioria das comunidades dirão: — Claro que negros podem entrar na nossa comunidade. Também são gente e muitas vezes bons cristãos —. Mas por que então eles não vêm? Não se sentem bem no nosso meio. Talvez as nossas palavras não combinam com as nossas atitudes. Nós falamos para a pessoa negra não só com a boca, mas com a cara, o corpo, o comportamento. Talvez o nosso corpo diga: Vá embora, negro sujo!, enquanto a nossa boca fala: Seja benvindo!
Deve-se deixar claro que vivemos em pecado, como o povo de Israel, se nos consideramos gente melhor que as pessoas de outra raça, se achamos que temos mais méritos e mais direitos perante Deus. Podemos ser orgulhosos da nossa cultura, da nossa igreja, do nosso trabalho, mas devemos saber que esses valores nos foram dados como tarefa, não para tornar-nos arrogantes.
É verdade, Deus nos usou como seu instrumento, ele faz a sua vontade também através do povo evangélico de origem alemã. Mas ele da mesma maneira usou o negro para cumprir os seus desígnios. Ele é o Senhor da história, não nós com a nossa arrogância. No destino dessa história ele faz colaborar brancos, negros e índios.
V —Subsídios litúrgicos:
1. Introito: SI 9.12
2. Confissão de pecados: Misericordioso Deus: Chegamos a ti e confessamos a nossa soberba que nos faz sentir-nos melhores e mais valiosos que outras pessoas. Muitas vezes olhamos com arrogância para o nosso próximo de outra raça ou de outra cor da pele. Rejeitamos os que têm outra cultura, outra maneira de pensar e de trabalhar. E mais ainda, contribuímos para que em nossa sociedade os negros, os morenos e índios não tenham as mesmas chances que os brancos. Deixamo-nos influenciar pela cor externa da pessoa, e não vemos o valor interno dela. Permitimos que os nossos preconceitos ganhem poder sobre nós. Ajuda-nos a superar essas atitudes erradas, e tem piedade de nós, Senhor!
3. Anúncio da graça: SI 7.9 e 10.
4. Oração de coleta: Bondoso Deus e Pai: Tu queres que todos os homens sejam irmãos e que todos os povos e raças colaborem para a tua glória. Ajuda-nos a entender e praticar isso, pela tua Palavra. Abre os nossos ouvidos, abala os nossos pensamentos pela força do teu Espírito, para que possamos superar os nossos preconceitos e tornar-nos um testemunho da fraternidade que nos une com os irmãos na fé de todos os povos e raças. Amém.
5. Leitura bíblica: Mt 15.21-28.
V — Bibliografia
– BERGMANN, M. Nasce um povo, Petrópolis, 1977,
– FER¬NANDES. F. O negro no mundo dos brancos. Rio, 1972.
– NASCIMENTO, A. Genocídio do negro no Brasil, Rio, 1978.
– NASCIMENTO, A. O quilombismo. Documentos de uma militância pan-americana, Petrópolis, 1880.