Prédica: Eclesiastes 4.1-4
Autor: Sigolf Greuel
Proclamar Libertação – Volume XI
Série: Quer seja oportuno, quer não
Tema: Como pode peixe vivo viver fora d'água fria? Colono na cidade.
Explicação do tema: A situação do colono é insustentável: sem terra para plantar, frustração de safra, exploração dos atravessadores, falta de preços para os produtos, custos muito altos para tocar a lavoura. Estes e outros fatores aliados à ilusão, de que na cidade a vida é melhor, expulsam o colono de seu ambiente natural. Na cidade ele se sente como um peixe vivo fora da água fria. Pois lá ele per-de na qualidade de vida, não tem mais a convivência com parentes e vizinhos, a convivência familiar se deteriora, seu preparo profissional caduca, ele se sente desvalorizado como pessoa, descobre que faz parte de um exército de mão-de-obra para a produção de riquezas para uma minoria, que é também responsável por sua saída do campo. Em sua pouca bagagem, traz junto sonhos, disposição e vontade de vencer. Ele faz tentativas:se inscreve na comunidade, no SINE, alista-se nas empresas e até é capaz de ir a um programa de TV para pedir trabalho. A frustração e o insucesso o afastam no centro da cidade, da comunidade. Ele fica nas periferias da cidade, sem apoio, sem orientação, sem comunhão verdadeira, sem condições dignas de vida.
l — Um caso que ilustra a situação do colono na cidade.
Demorou a chegar, mas finalmente o ônibus encostou na rodoviária da capital. A viagem do interior para a cidade foi longa e cansativa. João não conhece a capital e sente-se perdido no meio de todos aqueles prédios altos. Três ou quatro malas, contendo tudo o que lhe restou de 10 anos de lida na roça, duas crianças, Carlinho e Pedrinho, trazidas a tiracolo e Maria, sua companheira, é tudo o que João traz para a sua nova vida na cidade. Tem medo de enfrentar a nova realidade. Mas não pode dar mostras deste seu medo a Maria. Afinal, em um mês vai nascer o terceiro filho do casal e João precisa fazer Maria acreditar que tudo vai sair bem. A criança precisa nascer numa boa, pensa João.
É claro, para que tudo isso dê certo, João precisa encontrar seu irmão José, o primeiro da família a tentar a sorte na cidade. Não sabe onde encontrá-lo, sabe apenas que mora na periferia da cidade, numa tal de Vila da Ilusão. Espera encontrar o irmão e espera também que este o acolha por alguns dias e o ajude a encontrar um emprego. João não é exigente, não se importa em trabalhar de início como servente de pedreiro. Pelo que sairá este o emprego do irmão. João está certo de que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um serviço melhor, vai poupar, comprar um terreninho e construir uma bela casa. Sonhos, muitos sonhos são o que João traz consigo.
Verdade é que bom mesmo era o tempo em que tinha os seus 11 hectares de terra. Tudo foi pra trás, quando o pessoal começou a falar em insumos, subsídios, inseticidas, financiamentos, exportação, palavras que João nunca compreendeu direito. Em todo caso, agradava-lhe ouvir dizer na TV: Plante que o João garante. Afinal, era o seu nome; mas era só o nome. Por fim, João caiu no conto da poupança, vendeu suas terras para seu Alfredo e foi trabalhar com ele. O ganho não era o que esperava, mas com o juro da poupança deu para se virar.
Mas, o dinheiro da poupança se foi e o emprego também. As máquinas do patrão tomaram o seu lugar. E, agora, ali em frente à rodoviária da capital, sem dinheiro para uma bananinha que mataria a fome dos guris, sem dinheiro para um táxi, sem um guia turístico que lhe mostrasse onde mora o irmão; apesar de toda a carência e insegu¬rança, João não perdeu a esperança. Esperança de que nesta grande cidade haja um lugar para ele e para os seus, um lugar para seu filho que vai nascer.
II – Realidade
O que João, no entanto, não sabe ao nutrir tantas esperanças em relação ao seu futuro na cidade, é que ele é apenas mais um entre os quase 30 milhões de brasileiros que entre 1970 e 1980 tiveram que abandonar seus lugares de vida, à procura de condições mínimas de sobrevivência. São diversos os fatos que têm contribuído nos últimos anos na expulsão das populações do.campo, transformando quase a metade dos brasileiros em migrantes:
— A política agrícola do governo voltada à empresa rural, geradora de divisas ao país pela exportação de produtos agrícolas; política esta responsável pelo endividamento e estrangulamento da pequena propriedade rural.
— A inexistência de crédito fundiário, responsável principalmente pela evasão da população jovem do campo.
— A não fixação de preços mínimos para os produtos agrícolas.
— A mecanização das lavouras.
— A precária assistência médica a que as populações do campo estão sujeitas, levando-as a um progressivo adoecimento.
— A educação alienante de que os jovens e crianças do campo são vítimas, educação esta que na alfabetização das crianças usa figuras e símbolos típicos da realidade de cidade e que aos poucos leva estas mesmas crianças a crer que o trabalho na terra é indigno e inferior.
— A ilusão do 13° salário, das 8 horas de trabalho, do fundo de garantia, a promessa de um futuro seguro por meio da aposentadoria do INAMPS.
O que João não sabia ao sonhar com uma vida melhor, é que também ele era apenas mais um dentre os milhares de agricultores que anualmente são atraídos para a cidade, para servirem como mão-de-obra barata para os donos do capital. João apenas sonhou com um terreninho, uma casa, porque não sabia que, se conseguisse encontrar um emprego, ganharia apenas o suficiente para que pudesse continuar produzindo.
E os sonhos de João começaram a ir águas abaixo, depois de 2 semanas, já instalado em seu barraco de 4×4, num terreno da prefeitura, na periferia da cidade. Começou a perceber que por mais que ele trabalhasse, jamais faria sua vida na cidade. Tinha motivos de so¬bra:
— Ao invés da estabilidade financeira com que contava, nunca antes estivera numa situação tão instável, provocada pelo salário-miséria que recebia.
— A falta de garantia de/e no emprego.
— O desprezo com que o pessoal da periferia era encarado no centro da cidade, produzindo nas populações marginais um sentimento de inferioridade.
— Impossibilidade de estabelecer-se por conta própria, por não ter nenhum tipo de especialização e formação.
— Deterioração da convivência familiar. (Todos tem que trabalhar para que a família possa sobreviver e assim não mais se encon¬tram, nem para as refeições nem para o intercâmbio familiar.)
— A falta das relações de amizade e convivência que tinha na roça.
— A perda da comunhão e dos laços de amizade que eram representativos na comunidade reunida no interior ao redor da Igreja.
— O trabalho desumanizante.
— A diminuição substancial da qualidade de vida.
Com a desarticulação da família, a célula menor da organiza¬ção do povo, não sobram as condições mínimas para uma mudança da situação. Expulso de seu habitat natural, da terra na qual nasceu e cresceu e na qual pretendia morrer, por grupos econômicos organizados, apoiados pelo sistema, João é jogado na mão de outros ou até dos mesmos grupos, num ambiente diferente, tornando-se assim joguete e produtor de riqueza alheia.
Como pode o peixe vivo viver fora d'água fria? Como pode o agricultor sobreviver fora de seu ambiente natural de vida, se já em seu ambiente natural lhe foram tiradas as condições?
Ill —Texto bíblico — Eclesiastes 4.1-4
1. Contexto histórico e autor — O livro não traz indicações precisas acerca da época em que surgiram as reflexões do Eclesiastes, nem sobre a procedência do autor. Ec 12.9 parece apontar para um intelectual que refletiu as relações humanas, as relações sociais, as relações de convivência; alguém que, como diz a tradução de Almeida, atentou e esquadrinhou os temas quentes de seu tempo, trocou-os em miúdos, esclareceu-os, mastigou-os, tornou-os presentes e acessíveis à compreensão do povo de seu tempo. Creio não ser demais dizer que QOHELET (Eclesiastes) é alguém que quer o povo participando de maneira direta e, por isso, consciente dos acontecimentos de seu tempo. Entre estes temas estão: O reinado (4.13,16; 8.2ss; 10.4ss, 20), a morte (3.2; 3.16ss), a juventude (12.1ss), o trabalho (2.18-26; 5.16-17). Qohelet parece ter experiências bem negativas em relação ao trabalho.
A maioria dos comentaristas coloca o Eclesiastes e sua atividade na 2a metade do 3º século. A recomendação de 8.2, para muitos teria seu lugar no tempo dos conflitos entre os Ptolomeus e os Selêucidas pela Palestina. Por falta de bibliografia especializada não tive¬mos condições de nos aprofundarmos na situação histórica vivida pelo autor do Eclesiastes e seus contemporâneos. Se alguém dos que aproveitam este auxílio para a pregação tiver oportunidade para fazê-lo, julgamos positivo.
Em todos os casos, parece clara uma situação marcada pela deterioração das relações sociais e humanas, da convivência como tal. As pessoas nutrem ceticismo e falta de credibilidade em relação à função do trabalho, da riqueza, ceticismo este que chega ao ponto de comparar a sorte das pessoas à sorte dos animais. A sabedoria tradicional, i.é, a educação perdeu sua função e parece que Qohelet a encara como alienante (7.1ss). Tudo isto parece ganhar peso na medida em que o autor fala em opressão de pobres como uma realidade presente na vida dos homens (5.8), fala em roubo e má distribuição da terra (pressuposta em 5.9). E parece que o reinado, ou a realidade que advém do reinado faz parte do caos que se instalou.
As relações entre as pessoas, as relações de trabalho, a mentalidade sobre a função do trabalho, as regras de convivência, o reina¬do, tudo transformou-se num imenso caos. Parece ser esta a sabedoria que Qohelet quer dar ao povo; parece ser esta a sabedoria que importa que o povo conheça.
2. O específico de Ec 4.1-4 em relação à nossa realidade — Ec 4.1-3 conhece a situação de um povo submetido à opressão, à violência, aos interesses de grupos econômicos protegidos pelo sistema vigente. Qohelet entende que o povo é quem paga o alto preço do caos que se instalou por causa dos conflitos gerados pelos interesses econômicos. Ele usa dois termos para caracterizar a situação do seu povo: lágrimas e infelicidade. O povo está extremamente infeliz, tanto é que mais felizes são os que ainda não nasceram ou já morreram E é nesta medida que Qohelet conhece nossa realidade. Em termos de governo João Figueiredo: a política econômica, a política de habitação, a política agrícola, a política social fracassaram e lançaram o país num grande caos. Deterioraram-se as relações sociais, as relações de convivência, o trabalho perdeu sua função social. O país está submetido aos interesses do grande capital estrangeiro. Termos como opressão, êxodo rural, favela, marginalização, desemprego, fome, concentração da renda, dívida externa são o prato de cada dia do brasileiro. E quem paga o preço por esta situação caótica é o povo. Um povo submetido ao pavor do desemprego, transformado em um povo covarde que aceita passivamente a errada política salarial que lhe impõe índices de reajuste vergonhosos. Na mesa diminuem a quantidade e a qualidade dos alimentos. Sem casa para morar, sem onde se empregar, só resta ao agricultor expulso de sua terra chorar e lamentar (4.1). Não há perspectiva de solução para a sua situação. Fora de seu ambiente natural ele se tornou incapaz de reagir. Com a família desintegrada, sem o suporte de uma convivência em harmonia com a natureza e com seus semelhantes, também agricultores, habituados a enfrentar as mesmas dificuldades e os mesmos problemas, vêem fechadas todas as portas que pudessem levar a uma solução. Abandonados à sua própria sorte, sem família, sem amigos, sem comunidade, sem terra, sem casa e, agora, sem emprego, o agricultor, de fato tornou-se como um peixe vivo fora d'água fria, sem as mínimas chances de sobreviver.
IV — Perspectivas para a pregação
1. Em primeiro lugar deveria ser colocado um caso concreto, que de uma ou outra forma coloca à comunidade a situação do agricultor que, expulso de sua terra, é obrigado a tornar-se mão-de-obra barata na cidade.
2. Análise mais detalhada da realidade, com denúncia clara e objetiva dos mecanismos que obrigam o agricultor a abandonar sua terra, com menção dos interesses que estão por trás destes mecanismos geradores de miséria. E num segundo passo denúncia das forças que fazem o agricultor crer que vai melhorar na cidade e colocação da situação que o espera na cidade.
3. Apontar para Ec 4.1-3 e mostrar como ele mesmo enxerga sua tarefa no fato de conscientizar o povo de sua situação de dependência.
Creio que, colocando claramente esta situação, a prédica já terá alcançado sua função. Não podemos esperar demais da pregação. Creio que ela não é exatamente o local indicado para promover mudanças, mas, por outro lado, temos que reconhecer que ela tem seu papel no processo de libertação. Creio que nosso texto e nossa pregação podem dar uma contribuição na organização das classes agrícolas oprimidas e exploradas.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Perdão Senhor, pela nossa passividade diante dos problemas das classes agrícolas. Abandonadas pelas autoridades que protegem e escondem os interesses dos grupos que as colocam em uma situação de dependência, colocando em risco a sua sobrevivência, atentando contra a sua vida que é teu presente. Senhor, elas tem sido largadas à sua própria sorte, sem que a tua igreja levantasse sua voz na defesa delas. Perdão, Senhor, se pela nossa passividade temos sido coniventes e por isso co-responsáveis no processo de estrangulamento e empobrecimento das classes agrícolas. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Recolhe Senhor, os nossos pensamentos em torno de tua palavra e faze com que ela leve nossos pensamentos e atitudes de volta para a vida, para a realidade que vivemos a cada dia, a realidade caótica na qual somos atirados e que ameaça nos tirar a vida plena, a vida com qualidade que tu nos deste. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Pelas classes agrícolas oprimidas exploradas; por uma política econômica, social e agrícola voltada verdadeiramente para os interesses dos pequenos; por um país livre dos interesses do grande capital estrangeiro; pelos governantes que dirigem o país; por uma IECLB mais engajada na luta dos pequenos; por uma comunidade-profeta que levanta sua voz na defe¬sa dos oprimidos.
VI — Bibliografia
– BOLETINS INFORMATIVOS da Comissão Pastoral da Terra. Goiânia.
– MEINCKE, S. Dádiva Terra. Maravilha, 1982.
– ZIMMERLI, W. Das Buch des Predigers Salomo. In: Das Alte Testament Deutsch, v. 16. ed. Göttingen, 1967.