Prédica: João 10.11-18,27-30
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: Domingo Misericordias Domini
Data da Pregação: 21/04/1985
Proclamar Libertação – Volume X
l — Primeiras impressões
Quem não conhece a figura do bom pastor? Desde criança somos confrontados com estas histórias que apresentam Jesus como o bom pastor. Talvez seja esta uma das mais conhecidas imagens que as pessoas têm de Jesus, não por último por serem sempre relembradas desta imagem na pessoa do seu pastor de sua comunidade.
Mas que impressão poderá ter ficado?
Os quadros e gravuras geralmente apresentam um Jesus sentimental e inofensivo, uma figura meiga. Um contraste para alguém que tem a coragem de enfrentar o lobo ? não fugir como o empregado.
Em quem pensa a comunidade ao ouvir esta expressão? Em Jesus – o bom pastor – ou em seu pastor? De maneira que a imagem que se tem de Jesus é moldada a partir da experiência e visão do seu pastor.
A comunidade – o rebanho; a pessoa – uma ovelha. Animal indefeso, uma massa indolente? Por isso manipulada, dependente, incapaz de agir por si. Em consequência, um pastor autoritário, manipulador?
_ Jesus – o bom pastor. Uma figura tão conhecida, uma imagem tão distorcida. O que Jesus quis comunicar à sua comunidade com esta expressão?
II — O texto no seu contexto
1. Como perícope de pregação para o Domingo Misericórdias Domini são sugeridos os vv. 11-16, possivelmente acrescidos dos vv. 27-30. Esta delimitação (11-16) se explica provavelmente por causa da afirmação conclusiva no v. 16 então haverá um rebanho e um pastor. No entanto, este v. 16 é claramente um acréscimo que quebra a sequência lógica da frase: o v. 15b é retomado no v. 17 e desenvolvido no v. 18. Além disso o v. 17 retoma a expressão do v. 11 (dar a vida pelas ovelhas), se bem que sob outro significado (veja mais abaixo). Outrossim, os vv. 27-30 retomam a ideia do v. 14 (veja mais abaixo) e desenvolvem novamente este pensamento. Assim, só se justifica interromper a perícope no v. 16, caso se tenha em mente dar ênfase maior à ideia expressa neste versículo o que, considerando a estrutura atual do evangelho, seria perfeitamente válido. No entanto, considerando o todo do texto, se justifica delimitar a perícope da seguinte forma: 11-18 + 27-30.
2. A perícope inicia com uma das palavras típicas de João: Eu sou. Ao contrário de outras vezes onde tais palavras representam a presença de dádivas concernentes à salvação (por exemplo 6. 35; 8.12; 11.25), através do complemento bom se acentua aqui o verdadeiro libertador em contraposição a falsos salvadores. Não se trata, pois, aqui do cumprimento de promessas escatológicas, mas do destaque ao único salvador (Schulz, p. 150). As figuras do pastor e das ovelhas são muito comuns na Bíblia. Servem seguidamente para descrever a relação de Deus com seu povo (cf. Nm 27.17; SI 23; 77. 20; 78.52; Is 40.11; Ez 34; 37.24; Mt 9.36; Lc 15.4ss). Assim, classificando Jesus como o bom pastor, João se reporta a uma longa tradição bíblica e aponta simultaneamente para o cumprimento daquilo que se espera de Deus: o libertador do seu povo. Se Jesus agora se apresenta como o 'bom pastor', ele se revela e se oferece como o 'procurado e esperado'(Boesemann, p. 54).
3. Os vv. 11b-13 são uma parábola, na qual são contrapostas duas figuras: o pastor e o empregado (sugere-se esta expressão ao invés de mercenário, que sem dúvida deixa transparecer claramente a ideia de aluguel do seu serviço mediante recompensa, sem identificação com a causa; porém, este termo é pouco conhecido). Não se trata de uma alegoria de maneira que tivéssemos que procurar identificar este empregado com uma figura histórica do passado ou do presente, por exemplo as autoridades judias. Da mesma forma o lobo não re-presenta uma grandeza histórica, por exemplo os romanos, diante dos quais as autoridades judias capitulam deixando o povo ao léu. A contraposição do pastor e do empregado visa tão somente destacar aquilo que caracteriza Jesus como o bom pastor: aquele que se doa em favor dos seus (v. 11). Aqui, no v. 15 e no v. 17 aparece a mesma expressão, mas com significados diversos: enquanto no v. 17 tem-se em vista a entrega da vida na morte, aqui no v. 11 se pensa mais no risco de vida que o pastor de ovelhas corre na defesa dos animais. Intermediando entre os dois está a v. 15, que repete a expressão do v. 11, só em outra pessoa, mas já no sentido do v. 17, ou seja, de entrega. Se João, no entanto, usa nos três momentos a mesma expressão, ele destaca que este Jesus, caracterizado como o bom pastor que ar-risca a sua vida, é ao mesmo tempo aquele que entrega a sua vida. O que diferencia o bom pastor do empregado é justamente esta disposição para a entrega em favor dos seus, porque, uma vez, as ovelhas lhe pertencem (v. 12) e, por outro lado, porque elas têm um significado especial para ele (v. 13). Assim, entre pastor e ovelhas se estabelece um relacionamento único que não existe para com o empregado.
4. Por que este relacionamento todo especial? Porque entre pastor e ovelhas há um conhecimento mútuo, assim como há tal conhecimento entre o Pai e o Filho (v. 14b, 15a)! Mais ainda, porque eles o conhecem, eles ouvem a sua voz e o seguem (v. 27; cf. v. 3). Tal conhecimento não é de ordem racional e teórica no sentido de assimilação de uma verdade sobre Deus e sua revelação. O verbo conhecer designa aquela conscientização onde aquele que reconhece é determinado por aquilo que é reconhecido em toda a sua existência(Bultmann, p. 290). Em última análise cria-se entre o enviado e os seus uma relação existencial: assim como os seus são determinados pelo enviado que traz a revelação, assim também este enviado é determinado por aqueles, ou seja, a razão de ser do enviado não consiste em outra coisa do que estar aí para os seus: eu entrego a minha vida em favor das ovelhas (v. 15b, 17). Sua morte não é um destino trágico que o atinge contra a sua vontade. Pelo contrário, ela é a sua livre opção por causa de sua obediência (v. 18). Assim, no sacrifício de sua vida, se revela justamente o amor do Pai a ele (v. 17); por sua vez, o sacrifício do Filho é a revelação do amor do Pai para com os seus. Com isso também fica evidente porque tal relação existencial entre o enviado e os seus é possível. Ela se fundamenta numa relação existencial semelhante entre o enviado e o Pai: o enviado está totalmente à disposição do Pai (ele conhece o Pai — v. 15; ele recebeu este mandamento do Pai — v. 18), assim como o Pai está totalmente aí para o enviado e, por extensão, para os homens (o Pai me conhece — v. 15; o Pai me ama — v. 17).
5. Este aspecto da relação existencial entre o enviado e os seus é aprofundado nos vv. 27-30 no sentido de que esta relação dá segurança ao que crê. Nos vv. 27-28 a afirmação do v. 14 é retomada, na sequência inversa, e cada uma delas desenvolvida de forma dupla (cf. Bultmann, p.294):
v. 14c: os meus me conhecem” v. 27a: as minhas ovelhas ouvem a minha voz
v. 27c: e elas me seguem
v. 14b: e eu conheço os meus” v. 27b: e eu as conheço
v. 28: e eu dou a elas a vida…
Em que se baseia esta segurança? É uma segurança que se expressa na atitude confiante das ovelhas: elas conhecem e ouvem a voz do pastor. É a atitude de fé que não busca por motivos que justifiquem esta confiança, mas que nasce do ouvir confiante a voz do bom pastor. Simultaneamente a base para tal segurança está no objeto da fé, isto é, ela se baseia em algo fora dela mesma: no fato de que o enviado as conhece (v. 27b) e lhes dá a vida eterna (v. 28).
Por que tal relação de segurança? Assim como a relação existencial entre o enviado e os seus está fundada numa relação semelhante entre o enviado e o Pai, assim também aqui: a segurança da fé é possível, porque o Pai e o enviado formam uma unidade (v. 30). Por Isso ninguém pode tirá-los da mão do bom pastor (v. 28), porque ninguém pode tirá-los da mão de Deus (v. 29). Em última análise, a segurança da fé reside no próprio Pai: o relacionamento com o enviado é a relação existencial e segura deles com o próprio Deus.
III — O texto e o nosso contexto
Todas as épocas se caracterizam por momentos de frustração e grandes dificuldades. Após as duas grandes guerras, a Europa estava arrasada e os padrões de vida tinham caído por terra. Situação semelhante pode-se observar com os veteranos de guerra do Vietname. Em nosso contexto estamos vivendo talvez o momento de maior descrédito para com a direção e o futuro do país. Após a mentira fabricada do milagre, caímos — ou fomos jogados — na realidade dura e terrível: dívida externa astronómica, inflação acima de 200%, recessão econômica, desemprego, impasse político. Ao lado disso, evidentemente em conexão íntima, desesperança e desilusão com a própria vida. Para que viver? Para que lutar? Nestas situações as ofertas de líderes com suas propostas nunca faltaram. Também não estão faltando em nosso momento contextuai. Os políticos com suas soluções. Os carismáticos religiosos com suas ofertas. As religiões orientais com sua libertação do eu. Os traficantes de tóxico com a fuga para o mundo da ilusão. Quanta oferta! Quanta expectativa! Quantas esperanças! E tantas decepções, tantas frustrações, tantas desilusões!
As pessoas vivem da esperança — isto o tema da IECLB em 84 nos mostrou claramente. Nós precisamos de algo ou de alguém em que firmar nossa esperança. Onde está o fundamento seguro para a nossa esperança?
Jesus Cristo se oferece aqui como o libertador ansiado e prometido. Ele não é um messias, um líder qualquer, um carismático. Fie é o bom pastor, o messias, o líder carismático. A diferença básica entre Jesus e todos os outros libertadores é que aqueles oferecem seus serviços pensando em última análise nos seus interesses. São mercenários. Jesus é de fato o libertador, porque não tem medo de se doar a si mesmo. Na hora decisiva ele não busca o exterior, não se esconde em seu refúgio, não fecha as portas. Ele entrega a própria vida, porque não se prende aos seus próprios interesses, mas porque está interessado nas ovelhas, nas pessoas que ele ama. Por ser assim, Jesus é bem diferente do que as pessoas imaginam de um libertador. Ele não compra votos, ele não oferece-regai ias, ele não tira as pessoas desta realidade para um mundo ilusório. Mas ele oferece confiança. Num mundo cheio de incertezas, de desilusões e de desconfiança a oferta de Jesus pode ser ouvida como real libertação. Por isso ele é o bom pastor.
Jesus está interessado nas ovelhas. Cai em vista a multiplicidade de termos que se referem ao relacionamento pastor-ovelhas: arrisca/entrega a sua vida (vv. 11,15,17); conheço as minhas ovelhas (vv. 14,27); elas me conhecem (v. 14); tenho outras ovelhas… a mim convém conduzi-las (v. 16); elas ouvirão a minha voz (vv.16, 27); haverá um rebanho e um pastor (v. 16); elas me seguem (v. 27); eu lhes dou a vida eterna, jamais perecerão, eternamente, e ninguém as arrebatará da minha mão (v. 28). Todas essas expressões mostram o interesse especial que Jesus tem para com os seus. E à base deste interesse se estabelece um relacionamento todo especial entre ambos: não um relacionamento de posse, de imposição, de manipulação, mas um relacionamento de reciprocidade: um pertence ao outro. Aqui está alguém em quem eu posso confiar, que não me decepcionará.
Mas não só eu. O texto não fala no singular referindo-se às ovelhas. Não é, portanto, o meu relacionamento pessoal e individual com meu Senhor (ênfase do SI 23), mas é o senhorio de Jesus sobre o seu rebanho. Ele cria comunidade, comunhão. Comunhão no meu pequeno grupo e simultaneamente no grande grupo do povo de Deus (v. 16). Jesus é o bom pastor da minha comunidade e da grande comunidade de todos os cristãos.
O pastor de nossas comunidades certamente tem sua origem no pastorado de Jesus. Assim sendo, ele não é autônomo. O bom pastor sempre será Jesus. E nós seremos pastores bons e eficientes na medida em que nos deixamos guiar por ele, o bom pastor. Caso contrário, seremos mercenários. Por isso nunca poderemos prender a comunidade a nós (neste caso seremos manipuladores e opressores). Mas importa que sejamos facilitadores para que as ovelhas encontrem no bom pastor aquele em quem podem confiar. Para nós pregadores o texto coloca o desafio: Como o nosso ser pastor se realizará de tal forma que não ofusque o olhar para o bom pastor nem impeça o ouvir da voz do bom pastor?
IV — Encaminhando a pregação
Um mundo conturbado, nas mãos de mercenários, anseia por segurança, por libertação. As múltiplas ofertas — sejam elas políticas, de direita ou de esquerda, sejam elas religiosas, orientais ou nacionais — não podem proporcionar o que o mundo necessita nem o que oferecem. Sob este pano de fundo a antiga oferta de Jesus traz algo novo, realmente libertador.
Assim, a pregação poderia seguir os seguintes passos:
1. Os anseios de nosso tempo e as falsas ofertas.
2. A oferta real: Jesus é o bom pastor.
3. Porque se doa em favor dos seus (11-13).
4. Porque cria relação de reciprocidade (14-18).
5. Porque dá segurança (27-30).
V — Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Jesus Cristo diz: Eu sou o bom pastor. As minhas ovelhas ouvem a minha voz e eu as conheço e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna (Jo 10.11a,27,28a).
Ou: Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu mesmo procurarei as minhas ovelhas e as buscarei. Como o pastor busca o seu rebanho no dia em que houver ovelhas dispersas, assim buscarei as minhas ovelhas. Livrá-las-ei de todos os lugares para onde foram espalhadas no dia de nuvens e de escuridão (Ez 34.11-12).
2. Confissão de pecados: Senhor Jesus Cristo, há duas semanas atrás festejamos a tua Páscoa. Recordamos a tua vitória sobre a morte e nossa libertação de todos os poderes que nos dominam. Mas nessas duas semanas que se passaram houve momentos em que nos esquecemos dessa tua dádiva. Quando as dificuldades ficaram maiores, quando a morte com seus horrores se tornava presente, nós nos esquecemos de teu senhorio e confiamos mais em nós mesmos ou em outros senhores. Perdoa-nos a nossa falta de fé,
3. Oração de coleta: Senhor, Deus e Pai. Tua misericórdia não tem fim. Apesar de nos desviarmos de ti, tu sempre de novo nos congregas qual pastor, que reúne seu rebanho. Envia-nos o teu Santo Espírito para que ele nos ilumine ai nossas mentes e nos mantenha unidos. Deus todo-poderoso, tu és Senhor de eternidade em eternidade.
4. Assuntos para a oração final: Agradecimento pelo senhorio de Jesus Cristo sobre o seu rebanho (retomar a ideia central da pregação). Intercessão: pela igreja – o rebanho de Deus; pelas demais igrejas – juntas formam o rebanho de Deus; pelos líderes da igreja – para serem bons pastores; pelas pessoas margi-nalizadas – que não se sentem integradas no rebanho.
VI – Bibliografia
– BOESEMANN, W. Meditação sobre Jo 10.11-16. In: Proclamar Libertação, v. 4, São Leopoldo, 1978.
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 18. ed. Göttingen, 1964.
– DROOGERS, A. Religiosidade popular luterana. São Leopoldo, 1984.
– SCHULZ, S. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. v. 4. Göttingen, 1972
– VOIGT, G. Meditação sobre Jo 10.11-16 (27-30). In: Der Schmalle Weg. Göttingen, 1978.
– WENDLANG, G. STÖHR, M.Meditação sobre Jo 10.11-16. In: Predigt-Studien. v 1 1979.