Prédica: João 11.1(2)3,17-27(41-45)
Autor: Cláudio Molz
Data Litúrgica: 16º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 22/09/1985
Proclamar Libertação – Volume: X
l — Tradução
V. 1: Havia certo doente. Lázaro de Betânia, do povoado de Maria e de Marta, irmã dela.
(V. 2: Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com óleo e enxugara os pés dele com os seus cabelos. E o irmão dela, Lázaro é que estava doente).
V. 3: As irmãs mandaram dizer-lhe: Senhor, olha que está doente aquele a quem amas!
V. 17: Quando Jesus chegou, encontrou-o já dentro do túmulo há quatro dias.
V. 18: Betânia ficava a uns três quilômetros de Jerusalém.
V. 19: E muitos entre os judeus tinham vindo para consolar Marta e Maria por causa do irmão.
V. 20: Ao ouvir que Jesus estava chegando, Marta lhe foi ao encontro, enquanto Maria ficava em casa.
V. 21: Disse Marta a Jesus: Senhor, se estivesses aqui, decerto o meu irmão não teria morrido.
V. 22: Mas eu sei que tudo o que pedires a Deus, Deus te dará.
V. 23: Diz-lhe Jesus: O teu irmão ressuscitará.
V. 24: Diz-lhe Marta: Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição no último dia.
V. 25: Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; aquele que crê em mim, mesmo que morra, viverá;
V. 26: e todo aquele que vive e crê em mim, certamente não morrerá para a eternidade. Crês isso?
V. 27: Ela lhe diz: Sim, Senhor! Eu cheguei à fé de que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que vem ao mundo.
(V. 41: Tiraram, pois, a pedra. Então Jesus levantou os olhos para o alto e disse: Pai, eu te agradeço que me ouviste.
(V. 42: Eu sabia que em tudo me atendes, mas falei devido à multidão aqui ao redor, a fim de crerem que tu me enviaste.
(V. 43: Dito isso, ele gritou bem alto: Lázaro, vem para fora!
(V. 44: O falecido saiu com os pés e as mãos amarrados por ataduras e o rosto envolto com um sudário.
Diz-lhes Jesus: soltai-o e deixai-o ir!
(V. 45: Entretanto,.muitos entre os judeus que tinham vindo até Maria, creram nele, ao verem o que ele fizera.)
II — Comentário inicial e pistas para a prédica
1. Fé no milagre — Um milagre de Jesus não se presta para análises racionais. Um milagre de Jesus precisa ser crido ou rejeitado. A ação e a presença de Jesus não deixam outra alternativa. Uma parte dos judeus crê. Outra parte decide pela necessidade de eliminar a vida de Jesus, a fim de não perderem o controle da situação, o poder sobre o povo, sobre a economia e a política.
2. A confissão de fé — Jesus não cabe em conceitos de religiosidade da época nem nos conceitos de hoje. Não se controla a situação frente a Jesus, enquadrando-o em um esquema teórico, como é p.ex. o conceito ressurreição no último dia (v. 24). Uma resposta só é adequada: a confissão de fé, isto é, a identificação total com a vida, a ação e a causa de Jesus. É preciso amar como Jesus amou (13. 15), com empenho total: pela oração ao Pai e pela ação que transforme o mundo.
3. O amor fraterno — Crer em Jesus não exige a aceitação de conteúdos dogmáticos irracionais pela razão. A não ser que se considere irracional chorar pela perda de um amigo, ter dor e lamentar; a não ser que se considere irracional ter esperança e lutar pela vida da gente, mesmo quando o desespero quer tomar conta e parece que só há morte nos rodando; a não ser que se considere irracional perseverar, não desistir, confiar em alguma chance, mesmo que à primeira vista não se veja muito de concreto. Crer em Jesus exige ter comunhão pelo amor fraterno, exige serviço à comunidade social (13.35).
4. Dogma e encontro — A fé de conteúdo apenas dogmático procura a racionalidade. A racionalidade se isola. A fé dogmática acaba aceitando na sua racionalidade o que é absolutamente incompreensível: a morte. Não só se torna executora, planejadora, causadora da morte, mas também concorda com a sua realidade, se conforma com ela, procura enquadrá-la no seu sistema. Não é isso o que mais se vê nas cerimônias religiosas de enterro?
A fé na pessoa de Jesus procura o encontro com ele. O encontro permite comunhão, sentimento, choro, emoção, sonho (… se estivesses aqui….), consolo verdadeiro e consistente, combate da ilusão, evidência da verdade, do amor, da vida. Enquanto a fé dogmática combate e aniquila pessoas, o encontro com Jesus abre campo para o convívio fraternal através do serviço em honra a Deus e no perdão mútuo (Lc 7.36-50).
5. Temas da perícope — A doença de um amigo; a morte sem recursos; a ausência de Deus na hora derradeira; o auxílio tão perto e quase palpável, mas que chega atrasado; o abandono de duas mulheres pela morte do irmão em uma sociedade machista; a religião oficial alienante que remete para o fim dos tempos em vez de oferecer perspectivas de salvação presente e concreta; o anseio por poder expressar o verdadeiro sentido de vida e comunhão; — esses temas todos existem nessa perícope e também na realidade atual nossa aqui no Brasil.
Ill – Contexto
1. No Evangelho de João — No 49 evangelho o relato da ressurreição de Lázaro toma o lugar de último sinal milagroso público de Jesus, precedido no cap. 9 pela cura do cego de nascença e em 10 pelo discurso do bom pastor. Os cap. 2-12 relatam a atividade pública de Jesus: ele revela a sua glória perante o mundo (Brakemeier, p. 8). O capítulo 11 termina anunciando uma campanha de delação que visava a prisão de Jesus. Mas a prisão não vem logo. O cap. 12 parece prepará-la: vv. 1-8 — Jesus é ungido em um ato de desperdício incompreensível; 9-11 — também Lázaro deverá ser morto; 12-19 — Jesus viaja pela quarta e última vez a Jerusalém; 20-36 — gregos interessados ouvem um discurso de Jesus sobre a sua morte iminente; 37-50 — uma retrospectiva da atividade de Jesus. Os cap. 13-17 poderiam receber o título Jesus e os Seus (Janicke, p. 137ss). Só em 18.12, após relatar que Jesus fora a um jardim no outro lado do Cedrom, se diz: Assim a escolta, o comandante e os guardas dos judeus prenderam a Jesus.
2. Relação com Lucas — Os pesquisadores concordam em que há contato, sem dependência literária, entre Lucas e João no que se refere aos relatos sobre Maria, Marta e Lázaro. Nos evangelhos só João e Lucas apresentam um personagem com nome de Lázaro; e ambos também acentuam a dedicação de mulheres a Jesus.
Em Lc 10.3842 se mostra como uma mulher sai da tarefa de afazeres domésticos e entra na escola de Jesus. Na época, para uma mulher, era incomum ter acesso ao ensino. O encontro de Maria cc Jesus (11.32) mostra a profunda reverência de Maria frente ao mestre, jogando-se ela aos pés dele. E Maria quedava-se assentada aos pés do Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos (Lc 10.39). Maria era a a mesma que… lhe enxugou os pés (11.2) Então Maria ungiu os pés de Jesus… (Jo 12.3). Mateus conta: Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro. E eis que Jesus veio ao encontro delas, e disse: Salve! E elas, aproximando-se, abraçavam-lhe os pés, e o adoraram, (Mt 28.1,9). Em todas essas passagens é interessante ob-servar-se o termo pés. Além de serem simples instrumentos de locomoção, os pés também expressam: comunicação, domínio, autoridade. Jesus é descrito como um personagem que exerce uma enorme autoridade sobre as pessoas. Ele domina as situações, nas quais se encontra, até mesmo aquelas, em que parece levar a pior. A situação, em que Jesus deixa Lázaro morrer e se torna acusável de omissão por se demorar 3 dias até chegar, se insere aqui.
Um outro ponto de contato te mos dentro da parábola do rico e Lázaro. Em Lc 16.30 pede-se exatamente aquilo que Jo 11 conta:um ressuscitado dentre os mortos convenceria os 5 irmãos vivos e malvados a se converterem a Deus. Só que em Lucas esse pedido é negado com o argumento de que o texto bíblico é suficiente como instrumento de persuasão. Nesse sentido ao menos a ideia da ressurreição de Lázaro é prevista em Lucas. Como a João não interessa prioritariamente a historicidade, ele usa essa ideia para exaltar Jesus como Filho, enviado por Deus ao mundo.
3. Historicidade — O fato de a ideia da ressurreição de Lázaro ser contada dentro de uma parábola (Lc 16.19-31) naturalmente não contribui para que se deva assumir a historicidade desse milagre. Quem não aceita essa historicidade, em nada diminui o valor do Evangelho. É uma questão do intelecto.
Caso João quisesse que nós o entendêssemos mais dentro do conceito de historicidade, ele certamente teria acrescido alguma informação precisa sobre Lázaro após a ressurreição, a) Porém conforme 12.2, Lázaro é um habitante comum de Betânia. No mais nada se ouve a respeito do Lázaro ressurreto, e também nada se explica sobre os motivos da emoção de Jesus (11.35). b) Além disso, Jesus intencionalmente demora 3 dias (11.6). c) E como Lázaro teria saído do túmulo amarrado com as ataduras (11.44)?
Há certa indicação de que na pessoa de Lázaro se deva ver retratadas a morte e a ressurreição de Jesus. Em Jo 12.9-11 os judeus decidem eliminar também a Lázaro. É evidente que Lázaro morreu como qualquer ser humano. Mas se Lázaro representa Jesus que ressuscitou dos mortos, a fé que os judeus ortodoxos combatem, é consequentemente a fé em Jesus (v. 27). O cap. 11 é uma explicitação posterior da ressurreição de Jesus. Pode-se ver isso no fato de que 12. 1ss é pressuposto em 11.2, independente de este versículo ser tido por muitos como proveniente da redação eclesiástica, processada sobre o texto original de João que nós não temos mais hoje.
Pelo lugar, Betânia, também se vê que o evangelista não se preocupa muito com a historicidade. Todo o cap. 11 se desenrola em Betânia. Só no v. 54 se diz que Jesus fugiu para Efraim. Em 12.1 Jesus vai a Betânia. Conforme 12.12ss ele entra em Jerusalém. Percebe-se que essas indicações geográficas não pretendem ser exatas, mas servem ao esquema joanino. Podemos, portanto, considerá-las esquemáticas (Bultmann, p. 315 nota 4).
Fica visível que o evangelista quer contar histórias que dignificam o Evangelho pregado e crido na sua igreja. O acento não está principalmente no relato do passado, mas sempre também na relevância desse passado para a atualidade vivida na igreja.
IV — A comunidade de João
O evangelista se atém, uma vez, às histórias tradicionais de milagres e, por outra, â experiência atual da comunidade. E a comunidade cristã que Joio conhece, é fortemente exposta a uma aguda dissensão entre sinagoga e igreja (cf. Schulz, p. 82).
Olhando o evangelho, podemos encontrar diversas antecipações preparatórias à morte de Jesus. Os cap. 5-7 encerram com deci¬sões do sinédrio no sentido de Jesus ser preso e morto. Também os cap. 9-11 encerram com semelhantes decisões. Essas observações lançam a luz adequada sobre o milagre da ressurreição de Lázaro. Esse sinal é a manifestação poderosa daquele que enfrentou a sinagoga, foi condenado, sofreu a cruz e morreu, mas venceu a tudo: a maldade, a perseguição, a traição, a injustiça, o sofrimento e, enfim, a morte: ele tem o poder da ressurreição.
O evangelista procura a sua comunidade, onde ela se encontra no fim do séc. 1: na dor e na ameaça da morte. Sob esse pano-de-fundo entendemos a ressurreição de Lázaro como mensagem de amor, de solidariedade, de interesse fraterno, de esperança e de fé que ultrapassa efn muito aquela realidade que a nossa razão humana faz enxergar. Em outras palavras: com a ressurreição de Lázaro, João não quer desafiar a nossa racional idade ocidental do séc. 20, mas a fé naquele que dá sentido ao morrer glorificador de Deus:
Jesus morre, mas a sua morte é o caminho da glória: ele ressuscita;
Lázaro morre, mas a sua morte dá oportunidade à glória de Deus: ela se manifesta no sinal da ressurreição;
A comunidade é ameaçada de morte, mas também sua morte é sinal de vitória sobre o mundo (1 Jo 5.4): ela confessa a fé em Jesus.
Como o sofrimento de um cego não serve para debates, mesmo que sejam teológicos (9.3-5), assim a morte de um amigo não serve para cerimônias rituais, mesmo que sejam religiosas.
Conforme João isso são oportunidades de ser glorificado o Filho de Deus (11. 4). E há pressa para começar o trabalho que precisa ser feito enquanto há luz (cf. 8.12; 9.4-5; 11.9-10; 12.35-36). A oportunidade pode passar: há um tarde-demais.
V — Análise da perícope
Trata-se de um encontro entre Jesus e Marta. Os w. 1,3,17-20 são introdutórios desse encontro. Os vv. 21-27 reproduzem um diálo¬go que tem por tema central a fé na ressurreição.
Inicialmente Marta que, como em Lucas, é mais ativa que Maria, levanta uma hipótese que, além de denotar certa decepção sobre Jesus (Dietrich, p. 189s), mostra como é bom sonhar na companhia de gente amiga: O meu irmão não teria morrido, se estivesse aqui (v. 21). Ela acrescenta uma afirmativa de sua grande fé no poder da oração de Jesus junto ao Pai. De fato antes do milagre Jesus ora a Deus (vv. 41 s). Ele não é idêntico a Deus. Ambos são unidos. Jesus recebe do Pai os poderes divinos. Não os possui de uma forma absoluta?
A resposta de Jesus: O teu irmão ressuscitará (v. 23) faz Marta reproduzir um item da crença de muitos judeus: haverá uma ressurreição ao final dos tempos (Barrett, p. 328s).
Jesus surpreende com a afirmação central e paradoxal: Aquele que crê em mim, viverá, mesmo que morra (v. 25). A superação da morte não se dá apenas na hipótese de um eventual último dia da história, mas ali na pessoa de Jesus. A vida que vence a morte, acontece no confronto pessoal entre o crente, necessitado de tudo, o Jesus que a tudo supre. A eternidade toca o crente na pessoa de Jesus: Quem recebe Jesus (1.12), quem o aceita (3.33), quem permanece nele (15.7), quem comunga com ele, come de sua carne; e toma do seu sangue (6.56-58), terá a vida eterna.
O confronto entre o crente e Jesus não gera uma discussão de desfecho imprevisível, mas uma confissão de fé por parte de Marta: Tu és o Cristo (v. 27). A confissão resultou do encontro. Não é uma confissão de lábios apenas. Imediatamente ela começa o seu trabalho de testemunha, chamando a irmã para junto de Jesus. Também Maria se submete ao senhorio de Jesus, jogando-se aos seus pés (v. 32).
A presença do poder do mal e da morte, porém, irrita a Jesus. Ele se compadece e se solidariza com as pessoas que sofrem, mas a incredulidade delas o enche de indignação (v. 38). E até Marta que acabara de confessar a sua fé, necessita de uma admoestação no sentido de que só pela fé podemos ver a glória de Deus (v. 40). É que a crueza da realidade da morte fala muitas vezes mais alto à nossa razão que a Palavra do Senhor consegue nos impor a sua verdade. É, portanto, tarefa constante daquele que quiser testemunhar a esse Senhor, promover, sempre de novo, encontros com ele e confrontos com a sua Palavra. Só dai' é que surgirão belas confissões de fé e atos que testemunham o amor e a vida.
VI — A questão de mulher
A nossa perícope trata do encontro de Jesus com uma mulher: Marta. Os w. 28-33 tratam de outro encontro: Jesus e Maria. O diálogo de Jesus com essas mulheres envolve o terna central da fé da igreja: a ressurreição. Essa relação: mulheres, morte e ressurreição de Jesus, também temos nos sinóticos: Mt 27.55-56,61; 28.1-10; Mc 15. 40,47; 16.1-10; Lc 23.49,55-56; 24.1-10; Jo 19.25-27; 20.1,11-18. O inusitado desses encontros de diálogo nos é confirmado por 4.27: Neste ponto chegaram os seus discípulos e se admiraram de que estivesse falando com uma mulher. Isso para a probabilidade de que na comunidade de João as mulheres ocupavam funções de grande importância. Em Jo 4 uma mulher dá margem a que se verbalize o combate à centralização do culto em Jerusalém e, por extensão, a luta contra a sinagoga com os seus dogmas restritivos para a mulher. Em Jo 8 se vê que João considera o pecado do homem igual ao da mulher, sem diferença entre ambos, o que não tem apenas consequências éticas, mas também teológicas: Deus não condena uma pessoa mais que a outra; a bondade de Deus não discrimina.
Mulheres, sem a presença e o amparo de um homem na família, já eram tradicionalmente carentes de misericórdia de Deus, porque o mundo as ameaçava não só na sua reputação (prostituição ou esterilidade) e na sua integração social (Dt 25), mas também na suo subsistência física (agressão, dificuldade no trah.i!ho, na alimentação e no vestuário — Êx 21.7-11) e nos seus direitos de herança de propriedade (Nm 27.1ss; 36.1ss). A lei as protegia de forma especial, mas a realidade geral não era a da observância justa da lei.
De qualquer maneira podemos ter certeza de que Jesus ofereceu um amplo espaço de atuação às mulheres, tanto no seu movimento como também na igreja, primitiva. A mulher teve acesso direto ao mestre. É de se perguntar o que impediu que ela também mantivesse esse acesso direto posteriormente, quando o acesso aos sacramentos se tornou cada vez mais de mediação exclusivamente masculina.
O pregador não poderá omitir esse enfoque comprovadamente evangélico que nos dias de hoje também é de grande importância na promoção da justiça e da equidade entre irmãs e irmãos. As mulheres, desde o início, tiveram acesso ao ensino de Jesus, e não só ao ensino periférico ou superficial, mas o ensino essencial e central do Evangelho: a morte e a ressurreição de Cristo. Conceder-lhes apenas o serviço da assistência, da diaconia (Lc 8.1-3; Mc 15.41; Mt 27.55) talvez tenha sido a forma de preterir as mulheres na manutenção do acesso ao ensino e ao ministério dentro da igreja.
VII – A atualidade da fé
Com a ressurreição de Lázaro pelo Senhor Jesus Cristo, por vontade do Pai celeste que atendeu a oração de seu Filho, o evangelista João estabelece a base para uma afirmação cristológica: Jesus Cristo se interessa por um corpo em decomposição há 4 dias; ele liberta o corpo das amarras da morte e não apenas a alma; ele chama da morte para a vida a pessoa toda e não apenas o seu espírito. Essa afirmação tinha grande importância para a comunidade antiga que procurava formular o que nós hoje repetimos no Credo Apostólico: creio… na ressurreição da carne. E havia os grupos gnósticos que difundiam um desprezo total do corpo e do mundo (Freitag, p. 75). A morte não é o fim da fé, mas a fé, o fim da morte (Schneider, p. 221). Pela fé na Palavra haverá uma reunião dos que crêem com Jesus (17.24), onde verão a sua glória. Junto com essa ideia de um lugar da fé, João defende a presença da salvação: Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em jufzo, mas passou da morte para a vida (5.24). João protesta contra a acentuação exagerada do futuro e do menosprezo ao presente da fé (Schulz, p. 223).
Os trechos que em João se referem a conceitos apocalípticos, como p. ex. a ressurreição no último dia — 6.39,40,44,54, no todo são interpretados pela teologia central de João, representada por 11. 25,26: em Jesus a vida está presente agora pela fé. Em relação a isso. João conscientemente evita a teleologia histórica de Lucas, como também aqueles conceitos paulinos que são semelhantes à apocalíptica judaica.
Que podemos imaginar como conteúdo teológico do consolo trazido pelos judeus a Marta e Maria? Certamente teriam dito que Deus é o Criador e que Lázaro irá ressuscitar no último ida. Marta aprendeu essa lição e a repete a Jesus (11.24). Conforme João, Jesus não se satisfaz com isso. Não é no futuro apenas que se pode falar. Não é também apenas no passado da ressurreição de Jesus que se deve falar. Mas é na presença de Jesus pelo Espírito Consolador entre a comunidade cristã agora que se deve falar. E se ele está presente entre nós pela fé, a morte também está vencida. O Cristo não veio apenas no passado, encarnado na pessoa de Jesus de Nazaré. Ele vem ao mundo também hoje. E é preciso confessá-lo na situação de ameaça de morte que se vive hoje, como p. ex. a falta, o desvio ou o mau uso de recursos para a prevenção de doenças e mortes na assistência médica brasileira; o esgotamento físico do trabalhador pela remuneração e alimentação insuficientes; a ineficiência da justiça brasileira que por burocracia acoberta a exploração do capital, da terra, das riquezas do país, da mulher, do índio e outros com escândalos, torturas e assassinatos sem julgamento adequado; a política exportadora que reduz os bens indispensáveis para a vida do brasileiro, beneficiando apenas uma minoria de elite; a ideia militarista que cria armas cada vez mais eficientes para o extermínio da humanidade.
Jesus é unido em tudo com o Pai. Pelo fato de o Pai atender as orações de seu Filho, Jesus se torna divinamente poderoso: ele é capaz de ressuscitar a Lázaro. Mas Jesus não é um deus abstrato, e sim completamente humano: ele chora, se irrita e se agita. Nesse novo homem, visível em Jesus, se inspirará a comunidade de João e a nossa, sabendo que pelo Espírito Santo ele continua presente nas aflições que ela passa no mundo. A comunidade se anima e se enche de esperança, porque está no meio dela aquele que venceu o mundo, um mundo que opta, se desvia e é dominado pela maldade.
VIII – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Todo-poderoso Deus, querido Pai. Chegamos à tua presença, sabendo que tu promoves e amas a vida. O nosso mundo, que tu amas, está cheio de ameaças e perigos para a vida: doenças nos roubam a alegria e o prazer de viver, falecimentos nos separam de entes queridos e amados, acidentes nos chocam com a sua violência e agressividade, guerras fazem desmoronar a nossa fé na justiça e na fraternidade das pessoas. A tua presença, juiz da humanidade, nos faz tremer na nossa insegurança e falta de paz. Confessamos-te que nos agredimos mutuamente por medo de perdermos a nossa posição, o nosso ganho, a nossa vida. Faltamos com o amor e o perdão mútuos. Omitimo-nos, deixando de colocar no mundo sinais da tua força que transforma em vida o que morreu, em saúde o que está doente, em alegria o que era motivo de lamento e choro. Perdoa-nos, Senhor, habilitando-nos a integrar entre nós os marginalizados e preteridos, a acolher com amor os que sentem a ameaça da morte e do esquecimento dos irmãos. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Pai, reúne os nossos pensamentos, para que medi¬temos nos gestos de acolhida, de amor, de misericórdia, de doação total de teu Filho Jesus! Prepara os nossos corações como terra fértil, onde possa cair a tua Palavra e produzir os frutos do teu Espírito Santo: amor, alegria, paz, paciência, ternura, bondade, fidelidade, humildade e domínio próprio. Amém.
3. Intercessão: Senhor Jesus, ouve a nossa oração com clemência! Se tu estivesses entre nós, o amor estaria plenamente realizado. Sonhamos com essa tua realidade: Venha o teu reino! Mas o mundo nos aflige e nós caímos vítimas dele: livra-nos do mal! Pelo teu poder e pelo teu amor intercedemos em favor: dos doentes e moribundos, para que na tua presença saibam que a vida na fé não será vencida pela desnutrição e pelo absurdo; dos enlutados e solitários, para que a tua comunhão os visite, anime, conforte e toque; dos preteridos e marginalizados, para que a tua força os integra, os faça sentir-se aceitos e os ponha a caminho da vida contigo em plenitude; dos pequenos agricultores brasileiros que enfrentam o declínio da vida de trabalho e suor com a pensão de meio salário mínimo; dos que têm de abandonar a colônia e procurar uma outra oportunidade nas periferias das cidades, para que a tua promessa se realize: Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra! (Mt 5.5); dos analfabetos e sem profissão definida, para que o teu ensino de amor e de paciência nos estimule a auxiliá-los na promoção de sua organização em grupo e na defesa de seus direitos humanos; das mulheres, para que o espaço que tu lhes deste no ensino, na comunhão, na diaconia e no ministério não seja diminuído; dos torturados e mortos nas guerras abertas ou surdas desse mundo, para que a opção por teu caminho e por tua luz nos una como igreja para agirmos com coragem em favor dos fracos e pobres, sem temer o risco, a desvantagem, a própria fraqueza, o sofrimento ou mesmo a morte. Ouve a nossa prece. Pai celeste, por amor de teu Filho Jesus Cristo e pelo poder do teu Espírito Santo! Amém.
IX — Bibliografia
– BARRETT, C. K. The Gospel according to St. John. 1. ed. (1955) re-impressa. Londres, 1965.
– BRAKEMEIER, G. Observações introdutórias referentes ao Evangelho de João. In: Proclamar Libertação. v. 8. São Leopoldo, 1982.
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das NT. 18. ed. Göttingen, 1964.
– DIETRICH, B. Meditação sobre João 11.1,3,17-27. In: Proclamar Libertação. V. 2. São Leopoldo, 1977.
– FREITAG, C. Meditação sobre Pentecostes sob 1 João 4.1-6. In: Proclamar Libertação. V. 9. São Leopoldo, 1983.
– JÄNICKE, T. Die Herrlichkeit des Gottessohnes. 2. ed. Gelnhausen e Berlin-Dahlem, 1961.
– SCHULZ, S. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. V. 4. 1. ed. Berlin, 1975. 12. ed. Göttingen, 1972.