Prédica: João 3.1-11 (15)
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: Domingo da Trindade
Data da Pregação: 02/06/1985
Proclamar Libertação – Volume: X
l — Notas preliminares
Levantam-se sempre mais vozes por uma espiritualidade maior, nos diferentes campos e grupos, em nossas Comunidades. Opiniões, neste sentido, são veiculadas, largamente, dentro da IECLB. Por que não? Não queremos, porém entrar mais a fundo no mérito da questão.
O texto de Jo 3.1-11(15) parece oferecer-nos bons subsídios para uma reflexão crítica em cima do tema espiritualidade. De antemão cumpre-nos destacar a espiritualidade centrada no próprio homem, visando nada mais do que uma auto-satisfação espiritual que parte para cima do próximo com ar de superioridade.
É evidente não ser nossa intenção vender este tipo de peixe. Uma espiritualidade centrada em cima da piedade própria não precisa da ação do Espírito Santo e muito menos da transformação radical e constante que acontece a partir do encontro com o Evangelho de Jesus Cristo.
Torna-se difícil desligar um texto previsto para o Domingo da Trindade do evento de Pentecoste. A festa da Trindade não aponta para um ato salvífico específico, mas nos desafia a considerar todos os grandes atos salvíficos de Deus na história humana.
II— O texto no seu contexto
Jesus Cristo é a revelação, é o enviado de Deus (3,16). De sua aceitação ou rejeição dependem vida ou morte do homem. A perícope prevista para o Domingo da Trindade, necessariamente, deverá considerar este pano de fundo.
Não pretendemos abordar toda a história da redação do quarto evangelho. Poderíamos, isto sim, enfocar alguns detalhes com relação à história das formas, observando por exemplo aspectos, relacionados com o nosso texto de prédica.
Por exemplo, Jo 2.23-25, o texto que antecede, assemelha-se a um prelúdio a preparar o chão, sobre o qual foi construído o capítulo 3. As categorias de tempo e espaço são definidas também no capítulo 2, nos vv. 13-22. Se o capítulo 3 está interessado em destacar Nicodemos, um representante digno da classe religiosa dos judeus, segue, no capítulo 4, a apresentação de uma representante do mundo inimigo dos judeus, uma samaritana.
Quanto à estrutura interna do capítulo 3, não existem dificuldades ou dúvidas maiores.
Os vv. 22 a 30, o testemunho de João Batista, com muita probabilidade, indicam para um enxerto do redator. Um fio vermelho transpassa todo o capítulo. O tempo de Jesus Cristo é tempo de decisão e de crise. A redação está, sobremaneira, interessada em revelar a Jesus Cristo como Senhor. O encontro com Jesus tem caráter decisório. Jesus é identificado com o Cristo, o ungido de Deus, quem nele crê não é julgado, o que não crê, já está julgado (3,18).
Quanto à delimitação da perícope, em apreço, pairam algumas dúvidas. Há quem entenda os vv. 1-8 como um bloco a encerrar uma linha de pensamento completo; anexar os vv. 9-11 também faria sentido; a opção no sentido de acrescentar os vv. 12-15 (ou até o v. 21), igualmente, se viabiliza, observando o conteúdo do texto. Seja como for, não haveria a necessidade de lermos, no púlpito, o texto até o v. 21.
Considerar os vv. 16-21 na interpretação do texto, faz sentido. Na exegese, a seguir, abordarei, de forma mais detalhada, os vv. 1-11.
Ill — Considerações exegéticas — renascer — um mistério
Vv. 1-12: Na calada da noite, hora própria conferida aos rabinos, para o estudo e reflexão profunda (cf. Strack/Billerbeck II, p. 420), Jesus é procurado por um representante credenciado do judaísmo; seu nome: Nicodemos. Quem é Nicodemos?
Afora Jo 7.50ss e 19.39 é um homem desconhecido nos Evangelhos. Deveria tratar-se de um dos anciãos do povo de Israel, escriba, membro do Sinédrio, portanto, homem de respeito.
Nicodemos está, vivamente, impressionado com os sinais que Jesus fizera (2.1; 2.13), por isto procura a Jesus. Nicodemos inicia o diálogo, reconhecendo que a autoridade de Jesus deve ser derivada diretamente do poder de Deus. Os sinais evidenciam uma posição notória e singular de Jesus.
Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus. O plural sabemos poderia indicar para um grupo maior de simpatizantes de Jesus.
Vv. 3-4: Nicodemos, o agente de diálogo com Jesus, passa a objeto deste mesmo diálogo. O que deveria ter-se tornado uma conversa sobre Jesus, passa a ser um diálogo sobre Nicodemos!
A preocupação do interlocutor de Jesus gira em torno da sua participação no reino de Deus. Jesus esclarece, de saída, que existe uma condição sem a qual não acontece salvação: o nascer de cima. Nicodemos não terá parte no reino de Deus, a não ser que nasça de cima, consequência da ação do Espírito; esta ação leva à fé. Na sua situação de homem natural, ele está excluído do reino de Deus. Mesmo assim, a participação na salvação escatológica pode tornar-se, para Nicodemos, uma possibilidade real. A condição imposta por Cristo é única: renascer. Através desta argumentação de Jesus, a salvação futura e a vida presente foram colocadas em xeque, as bases seguras deste homem respeitável, Nicodemos, começam a estremecer.
No v. 5 Jesus substitui a expressão nascer de cima por água e Espírito. Variantes na crítica textual sugerem a omissão de água, supondo ter sido inserido, posteriormente, no texto. Não vejo, porém, razão maior de omitir o termo água. A tradição da Igreja antiga interpretou o renascimento como possibilidade imanente ao batismo.
Nos vv. 6-7 situamo-nos diante de uma nova progressão do diálogo. Nicodemos é posicionado diante de uma alternativa: carne e Espírito, duas realidades que se excluem. Carne indica para a realidade do mundo dos homens, ao passo que o Espírito aponta para a esfera, onde vale o senhorio de Deus.
Um novo ser só é possível através do nascimento de cima. Renascimento não é possibilidade humana, mas milagre de Deus. Um mistério cerca o renascimento: v. 8. O vento (= PNEUMA) sopra onde quer. Nem a procedência nem o destino do vento são grandezas visíveis; manifestam-se, isto sim, os efeitos da sua ação.
V. 9: Como se explica o mistério do renascimento, fruto da presença do Espírito? Jesus não dá a resposta. Um mestre de Israel deveria saber responder.
Nicodemos e Jesus iniciam um processo de decisão, do qual Nicodemos não pode sair mais.
No v. 11 acontece a mudança de interlocutor.
Em verdade, em verdade te digo… contudo não aceitais o nosso testemunho. Ó diálogo cede à pregação.
O milagre da transformação radical da vida humana só acontece, a partir da aceitação e da decisão em favor do testemunho que Jesus dá. A concretização de um novo ser sucede na aceitação do Filho de Deus. Ele veio do céu, retornou ao céu, morreu, porém ressuscitou. Jesus, o Messias de Deus, teve de vir ao mundo; novidade de vida concretiza-se a partir da sua aceitação.
O mundo já foi transformado, por intermédio da morte e da ressurreição de Jesus, por isto o novo início de vida, preocupação de Nicodemos, já é realidade presente; a fé descobrirá esta vida nova!
A história de Jesus é a história do renascimento do homem. (J. Seim)
IV — A Festa da Trindade e o texto
Que fará o pregador com este texto, no domingo da Trindade?
A confrontação da Comunidade, reunida em culto, com um tratado dogmático seria uma possibilidade maçante. Jamais façamos da doutrina da Trindade o texto de prédica! A Trindade pode resultar, então, numa vaga especulação a respeito de Deus, mas que foge do poder de concentração e assimilação dos ouvintes.
Acrescente-se, neste contexto, que a Festa da Trindade não chegou a movimentar, nem a criatividade e nem a fantasia das nossas Comunidades. Em comparação às Festas do Natal e Páscoa, o Domingo da Trindade, praticamente, passa desapercebido, não sensibilizando os nossos membros. Na Igreja Antiga, até o fim da Idade Média, este Domingo mantinha-se, intensivamente, ligado a Pentecostes. Na prática das comunidades, o Domingo da Trindade não passa de um marco litúrgico no calendário eclesiástico.
O texto sugere pregação cristocêntrica. Jesus Cristo — a fé neste Senhor decide sobre a vida e morte do homem — é escorado e glorificado pelos dois outros elementos de dogma trinitário. As consequências exegéticas da perícope, bem como de todo o capítulo 3, apontam para um cristocentrismo evidente.
O envio de Jesus Cristo ao mundo inicia um processo de transformação radical do homem; um renascimento espiritual que não tenha como pano de fundo a ação do amor de Deus (Ele é o agente da renovação!) não passa de obra humana, produto de nosso esforço; este tipo de renascimento, em última análise, nem precisa mais da dádiva do Espírito Santo. A renovação do homem tem como ponto de partida a fé em Cristo. Neste sentido, o homem desafiado à transformação, jamais viverá uma piedade auto-suficiente. A vivência a partir da fé no Evangelho de Jesus Cristo tem seu fundamento e centro fora de si mesmo: no por nós de Deus, que foi revelado em Cristo e que está presente em seu Espírito. (H. Brandt, p. 77)
A exigência de mudança do homem, feita por Jesus, em nosso texto, não é alcançável, através de um pouco mais de piedade ou de uma reforma moral; essa exigência pressupõe um novo início da existência humana. A história de Jesus Cristo, sinal mais evidente do amor de Deus (3.16), é o começo da transformação total do homem.
Na realidade, os fundamentos na vida de Nicodemos só podiam balançar. Ele aproximou-se de Jesus, na qualidade de homem piedoso, sua fé, sua personalidade, nada deixavam a desejar; durante a vida inteira lidou e interpretou a Lei de Moisés, era teólogo de larga experiência: e agora, abandonar, mudar tudo?! Impossível.
V — Pistas para a prédica
Jesus Cristo, cuja história é o início da transformação humana, deve ser trazido o mais próximo possível dos ouvintes: este é o desafio colocado pelo texto. A presença do Filho de Deus, neste mundo, qualifica a vida humana, a partir do amor e da solidariedade de Deus.
A fé que liberta o homem à aceitação de Jesus Cristo estimula ao testemunho e à vivência atuante.
O senhorio de Cristo concretiza-se, hoje, através do Espírito Santo. O poder do Espírito Santo transforma o homem, radicalmente, comprometendo-o em favor de Deus e do próximo.
A nova espiritualidade do discípulo estimula à missão e ao engajamento.
O domínio do Espírito Santo continua dispondo de homens, a fim de derrubar os muros que separam os homens entre si. O senhorio de Jesus Cristo que se manifesta na ação do Espírito Santo faz desabrochar as flores do amor e da esperança num mundo cheio de ódio e marcado pela desesperança. O poder do Espírito Santo continua erguendo a casa do perdão e da paz, em meio à sociedade egoísta e violenta.
Dois são os pensamentos fundamentais a orientar o pregador com vistas à prédica:
1. Encontros e re-encontros com Cristo continuam a vigorar, ainda hoje. Estes encontros com Jesus Cristo, à semelhança de Nicodemos, colocam o interlocutor diante de um processo decisório. Vida ou morte continuam na dependência da aceitação ou da rejeição de Cristo!
2. Encontros e re-encontros com Cristo não visam mera auto-satisfação espiritual, mas transformam o homem, dispondo-o a serviço de Deus e do próximo. A nova espiritualidade, reflexo da renovação de cima assume formas concretas, sem medo de sucumbir neste mundo. O homem dominado pelo poder do Espírito Santo sente-se livre para atuar dentro do mundo, em favor de todos os homens e do homem todo.
Não há próximo perseguido, sofredor, faminto, desesperado, doente, marginalizado, desiludido em Deus, tão distante do cristão, que por ele não possa ser amado.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de Pecados: Ó Deus e Pai, enviaste teu Filho Jesus Cristo a este mundo como sinal máximo do teu amor. Tens bons planos para com os homens. Tu revelaste caminhos diferentes e tens partilhado conosco pensamentos novos. Confessamos que não confiamos num mundo novo. O medo e o desespero nos assustam e nos deixam cegos. Obcecados pela desesperança, até mesmo, ignoramos os nossos irmãos. Tornamo-nos cúmplices da desunião, do desamor, da corrupção e da falta de perdão. Dá-nos coragem. Senhor, de esperar por um novo mundo, onde haja mais paz, fraternidade e mais justiça. Renova-nos pela força do teu Espírito Santo. Perdoa-nos Senhor, em nome de Jesus Cristo. Tem piedade de nós. Senhor. Amém.
2. Oração de coleta: Senhor, uma semana de trabalho, de alegrias e tristezas passa a ser uma página virada no livro da vida. Sentimos a tua presença, mas também a tua distância. Estiveste conosco a caminho. Uma nova semana está para iniciar. Não sabemos o que se passará conosco. Incerteza e medo, por vezes, nos afligem. A certeza de que tu vives nos anima e nos dá coragem. Pedimos-te: Sê conosco nesta nova semana e permite, agora, que possamos ouvir a tua mensagem neste culto. Acompanha-nos com a tua palavra e transforma-nos a partir do Espírito de Cristo Assim seremos instrumentos de vida neste mundo de morte. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Senhor, nosso Deus e Pai, anima-nos para um contato constante contigo, que as nossas orações não sejam meras repetições e que não se tornem simples cerimônias. Ensina-nos a permanecer unidos a ti, sem ti nada somos. Não deixes de falar conosco; como iríamos viver nós se tu te calasses? Permite, Senhor, que em nossas orações nos lembramos do próximo. Dispomos do mínimo, quem sabe até mais do que isto, para viver; lembramo-nos, porém, daqueles que clamam por alimento, moradia e por emprego. Nós temos saúde, não nos podemos queixar; há muitos, que, para serem atendidos precisam esperar em filas intermináveis, e mesmo assim são mal atendidos. Senhor, falamos contigo, como filhos falam ao Pai, muitos, porém, vivem no desespero, porque não te conhecem e não te aceitam como um Pai, no qual se pode confiar. Interceder pelos jovens; pela Comunidade, dar destaque a um trabalho comunitário; pela unidade da família da fé, pelos desesperados; pela paz e justiça; por lideranças sensíveis aos clamores; Colocar-se à disposição de Deus, dando testemunho e colocando-se a serviço.
VII – Bibliografia
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In:Kritisch-exegetischer Kommentar über da N.T. 18 ed. Göttingen 1964.
– SEIM, J. Meditação sobre João 3.1-15. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 61. Göttingen, 1973, p. 296ss.
– BRANDT, H. Espiritualidade. São Leopoldo, 1978.
– BRUNNER, P. Meditação sobre Lucas 10.21-24. In: Hören und Fragen. v. 5. Neukirchen, 1967. p. 342 ss.