Prédica: Lucas 1.(39-45)46-55(56)
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data Litúrgica: 3º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 23/12/1984
Proclamar Libertação – Volume X
I — A delimitação da perícope
A indicação de texto por parte da coordenação de Proclamar Libertação é de Lucas 1. (39-45) 46-55 (56). O centro desse texto maior são os versículos 46-55. Os outros versículos são moldura. Molduras são importantes. Elas ajudam a ver e a entender o quadro. Por isso pode ser importante ler o trecho de 39-56. Ou se pode contar o que está na moldura. A leitura de quase 20 versículos pode ser cansativa. Talvez se possa copiar o trecho para a comunidade. As comunidades que têm a Bíblia nos bancos têm sua tarefa facilitada, ou os membros que trazem sua Bíblia de casa.
A mosca do trecho todo são os versículos 46-55. Parece difícil ver o texto de maneira diferente. O impacto desses versículos é tão grande que os outros se tornam periféricos. E mesmo que talvez fosse possível um enfoque diferente, o que se quer para este 4o Domingo de Advento é deixar falar os versículos 46-55.
A tradução de Almeida está bem. Não disponho do texto de A Bíblia na Linguagem de Hoje, a cuja tradução Harald Malschitzky faz reparos em Proclamar Libertação V. Também por causa dos comentários a respeito de Maria sugiro recorrer ao auxílio homilético em Proclamar Libertação V.
II — Considerações sobre o conteúdo do texto
O texto é uma explosão de alegria, gratidão e adoração. Maria sente a incomparável experiência de ser abordada por Deus. Os termos que se referem a Deus como que se atropelam: Senhor, Deus, meu Salvador, o Poderoso, santo, sua misericórdia, seu braço. No outro lado como que se atropelam os feitos de Deus: contemplou na humildade de sua serva, me fez grandes coisas, sua misericórdia vai de geração em geração, agiu, com seu braço valorosamente, dispersou os que no coração alimentavam pensamentos soberbos, derrubou dos seus tronos os poderosos, exaltou os humildes, encheu de bens os famintos, despediu vazios os ricos, amparou a Israel.
Em meio a isso está Maria, humilde serva, a quem o Senhor fez tão grandes coisas que todas as gerações a considerarão bem-aventurada. Quando é normal que os poderosos exigem, e ganham os grandes privilégios, o Senhor aplica uma outra orientação, uma outra lei. Ele dá preferência a uma mulher pobre e simples. A resposta de Maria é engrandecer ao Senhor e manifestar sua alegria de maneira exuberante.
O texto é um hino, um salmo, cheio de razão e sentimentos, de sentimentos e razão. O texto consegue transmitir fatos e ideias, mas o texto consegue, acima de tudo, transmitir vida.
A verdade inquestionada é que os poderosos dos governos, os poderosos da economia e os poderosos da religião acumulam, querem acumular, têm que acumular as grandes atenções e os grandes privilégios. Isso todo o mundo sabe e todo o mundo aceita. Porque é isso que todo o mundo sempre experimenta. Com isso a tendência é de os fortes se tornarem cada vez mais fortes, os ricos cada vez mais ricos e os santos cada vez mais santos. E o poder, a riqueza, a santidade são usados em benefício próprio, para produzirem mais poder, mais riqueza, mais santidade.
E é esse círculo vicioso que Deus quebra com o nascimento de Jesus. E o novo mundo inicia em Maria.
Os governantes autosuficientes, os ricos autosuficientes e os religiosos autosuficientes não correspondem à vontade de Deus porque não levam em consideração a ordem de Deus. Por isso Deus os elimina e restabelece sua ordem através da cruz. E para isso Deus escolhe Maria para que seja instrumento de sua nova criação, Maria, uma mulher simples e pobre.
Maria assume o papel que Deus lhe dá. Ela sabe que não é mérito dela, mas graça de Deus. Ela por ela é uma humilde serva. Ao mesmo tempo ela se dá conta de que Deus lhe dá um valor que vai fazer com que todas as gerações me considerarão bem-aventurada. É o orgulho que está tomando conta? Está Maria enveredando pelo caminho dos governantes, dos ricos, e dos religiosos arrogantes? Não está! A sua misericórdia vai de geração em geração. Deus é misericordioso. Não porque Maria o merecesse, mas porque faz parte da natureza de Deus ser misericordioso, e isso independentemente da condição de poder, ou riqueza, ou santidade dos homens.
Deus não aceita poder, riqueza, santidade para efeitos de autopromoção. Poder, riqueza e santidade que têm essa conotação, Deus os derruba. Deus os condena. São contra sua vontade, contra seu reino, contra suas leis.
A lei de Deus é que ele seja Senhor e que os homens sejam irmãos e que o mundo animal e vegetal e mineral seja considerado e conservado boa criação de Deus. E Deus vai realizar a sua vontade, vai fazer valer a sua lei, vai construir o seu reino. Deus não vai permitir que espíritos alheios ao seu e procedimentos estranhos ao seu se tornem padrão em seu mundo e em meio aos homens que Ele criou à sua imagem. Ele vai alcançar os seus objetivos e nos convoca na humildade de suas (seus) servas (os) a sermos instrumentos. Aqui cabe a avalanche de alegria, gratidão e adoração nossa por isso.
Ill —Meditação
Muitas igrejas na América Latina, e em outras partes do mundo, estão ficando com as orelhas em pé quando escutam este texto. E estão querendo escutar e viver sua mensagem. Muitas igrejas apostaram, ao longo dos séculos, na sua vinculação com os poderosos, políticos, econômicos, culturais, eclesiásticos. Apostou-se muito numa igreja forte, e em gente forte na igreja. Isso ocorreu/certamente, por ingenuidade, muitas vezes, com boas intenções, outras vezes, mas também por interesses outros que evangélicos. É de se admirar que textos como o nosso ficaram à margem da preocupação e da pregação da igreja. Já isso é indício de algo. Quantas vezes a Bíblia chama a atenção para a tentação e o perigo do poder e da riqueza e para o fato de que é comum os poderosos e os ricos usarem mal os seus recursos. Poder e riqueza criam com muita facilidade um sentimento de autosuficiência, e uma fome por autopromoção. São poucos os homens que suportam o peso do poder e da riqueza e que conseguem administrá-los responsavelmente.
Em alguns lugares nas igrejas textos como o nosso estão conseguindo abrir os olhos de cristãos e de igrejas. Alguns cristãos e igrejas estão crescendo na sua visão da realidade das coisas. Estão analisando com maior intensidade e profundidade a questão do poder e da riqueza e o fazem a partir de mais enfoques, teológico, sociológico, psicológico, político. E estão divulgando suas perguntas, observações e preocupações.
Cristãos e igrejas estão intensificando suas denúncias de mau uso de poder e riquezas, um uso de poder e riquezas que favorece a poucos e não se preocupa com a sorte de grande maioria de uma população, isso quando essa grande maioria não é usada para aumentar os privilégios dessa minoria. Deus não atua assim. Deus não se impressiona com o poder e riqueza egoístas. Deus os deixa de lado e vai aos humildes e faz deles instrumentos de seu reino. Constrói em seu meio o seu reino. Constrói através deles o seu reino. Ele mesmo se faz humilde, pobre e sem poder em Jesus Cristo.
Uma coisa o texto deixa claro: Não é a humildade e a pobreza em si que são idealizadas. A humildade e a pobreza em que penetra Deus, que Deus assume em Jesus Cristo, se tornam instrumentos do reino de Deus. A pobreza e humildade passiva, acomodada também não é da vontade de Deus e não é instrumento de Deus. E a pobreza e humildade combativa, agressiva, sem a presença do Espírito Santo, corre inerentemente o perigo de buscar um poder exclusivo e opressivo. Se a igreja, se os cristãos vão aos humildes e pobres, deve movê-los a força teológica, não uma força ideológica. O cristão pode preferir uma proposta ideológica a outra proposta ideológica para instrumentalizar valores do reino de Deus. A Maria humilde não é o suficiente. O objetivo da igreja deve ser a Maria humilde e temente a Deus.
Textos bíblicos têm aberto os olhos de cristãos e igrejas para estruturas opressivas de poder e riqueza e algumas igrejas têm sentido liberdade crescente para analisar estas situações e para antepor o que da Bíblia se conlui como vontade de Deus. A partir daí algumas igrejas estão questionando muito energicamente estruturas de poder e detentores de poder. Algumas igrejas têm conseguido uma admirável liberdade profética.
O que se deve examinar também a partir de nosso texto é como as igrejas, seus pastores e seus membros estão vendo e vivendo o seu papel. É sabido que no decorrer da história muitas vezes igrejas acumularam grande poder e grandes fortunas e usaram este poder e fortunas para favorecer minorias e/ou para privilégio de uma minoria. Tenho a impressão que às vezes hoje igrejas denunciam abuso de poder e bens fora da igreja, sem refletir com suficiente coerência sobre uso e/ou abuso de poder da igreja e de setores e membros da igreja. Algumas vezes a igreja não tem se questionado suficientemente a si mesma. Não tem confessado com suficiente honestidade seus próprios pecados. Não tem estado disposta a arrepender-se e iniciar uma nova vida. A denúncia para fora da igreja tem às vezes muito tom de raiva, ódio, recalque, sem a liberdade, ao mesmo tempo, para uma própria confissão de pecados e arrependimento.
Será que a atual estrutura do pastorado na igreja luterana é consequência de uma mentalidade de serviço ou de uma mentalidade de poder? Por que o ministério especial na igreja luterana se reduziu praticamente ao ministério do pastor, e ainda de um certo tipo de pastor? A questão do ministério é extremamente estreita na igreja luterana, tanto na sua concepção como na sua prática. A concepção de ministério especial e a prática do ministério especial são pobres na igreja luterana. No Novo Testamento o ministério especial se divide com muita facilidade em muito mais ministérios. Nalgum ponto do caminho desde a comunidade primitiva aconteceu um grande estreitamento e uma grande elitização do ministério. Pode ser que numa certa época fosse para proteção da igreja de Jesus Cristo. Mas hoje é em prejuízo da igreja de Jesus Cristo. Os pastores muitas vezes estão tão distantes dos humildes, pequenos e pobres que não acham o caminho que leva a eles. Ao mesmo tempo em um imenso número de comunidades o pastor é o único, entre milhares de membros, responsável por todas as tarefas na comunidade. Tantos outros ministérios se perderam, atrofiou a capacidade para outros ministros e ministérios. E os pastores estão tão perto dos poderosos na comunidade e fora dela que muitas vezes não conseguem safar-se de sua órbita. Dá o que pensar isso.
Se admitimos isso, se sabemos que somos humildes e pequenos e que precisamos do Salvador que veio através de Maria, talvez neste Advento e Natal Ele possa vir a nós. Ele não vai vir aos poderosos e ricos que se consideram fortes e autosuficientes. Ele não vai chegar a igrejas que têm seus próprios programas muito seguros, autosuficientes, introvertidos e sem disposição de serem instrumentos para participar da salvação do mundo.
Aos que são necessitados Ele está disposto a vir neste Advento e Natal. Aos que não estão necessitados Ele não vem, porque não vão recebê-lo.
Que aconteçam, neste Advento e Natal, muitas explosões de alegria, gratidão e adoração como o Magnificat.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nós te agradecemos que através de tua humilde serva Maria tu vieste ao nosso mundo. Lemos na Bíblia que tu vens aos humildes e pequenos porque os grandes e poderosos não te querem. Mas nós confessamos que somos constantemente tentados a querer ser grandes e poderosos, ricos e autosuficientes. Estamos muito preocupados conosco mesmos e muito pouco vemos a tua causa e os homens e mulheres ao nosso redor em suas necessidades. Preocupamo-nos com nossa salvação e segurança e nos esquecemos de ir ao outro para sua salvação e vida digna. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração da coleta: Querido Deus e Pai, agradecemos-Te que neste domingo antes do Natal podemos escutar nesta comunidade que Tu queres vir a nós e trazer-nos a mensagem e a realidade da salvação. Por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo realiza o Teu reino. Amém!
3. Assuntos para oração final: Agradecer que em Jesus Cristo Deus continua vindo; agradecer que a igreja pode ser instrumento da vinda do Salvador; pedir que Deus proteja a igreja contra uma falsa segurança, uma igreja que se satisfaz a si mesma; pedir que Deus liberte a igreja dos poderosos e que lhe dê força e sabedoria para ir aos humildes, necessitados, pobres; pedir que Deus converta os poderosos e ricos e os que se contentam com sua própria santidade, pedir que Deus ajude a igreja luterana a ir em direção de um ministério com muitos ministérios e dons e serviço diferentes; pedir a Deus que a comunidade consiga furar a mentalidade comercializada de Natal.
V — Bibliografia
– CALVIN, J. Evangelien-Harmonie, 1. Teil. In: Auslegung der Heiligen Schrift. V. 12. Neukirchen-VIuyn, 1966.
– MALSCHITZKY, H. Auxílios Homiléticos sobre Lucas 1.46-55. In: Proclamar Libertação V. 5. São Leopoldo, 1979.
– RENGSTORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas. In: Erläuterungen zum Neuen Testament v 2. Stuttgart, 1947.