Prédica: Lucas 17.11-19
Autor: Ulrico Meyer
Data Litúrgica: 14º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 08/09/1985
Proclamar Libertação – Volume: X
I – O texto
O texto de Lc 17.11-19 não apresenta grandes dificuldades quanto a sua forma e redação. Trata-se de um conto tradicional surgido provavelmente em Jerusalém. Pois somente a partir de Jerusalém podia-se pensar numa viagem de Jesus da Galiléia para Jerusalém com passagem pela Samaria. Samaria era o único caminho possível (Stöger p. 103). Conforme Gerhard Bohhe, por se tratar de matéria exclusiva de Lucas, o texto em apreço só pode ter sido um conto oral, que estava na boca do povo de Jerusalém. Pois, se de fato tivesse acontecido o milagre, os outros evangelistas, preocupados em testemunhar o senhorio e a glória de Jesus Cristo, não teriam omitido este fato maravilhoso da cura de dez leprosos em Samaria (p. 18).
Este conto, que originariamente compreendia os vv. 12 a 18 e que acentuava o milagre em si e a universalidade do reino de Deus, foi reinterpretado e atualizado por Lucas. Portanto, somente os vv. 11 e 19 são redação de Lucas. O acento do texto de Lucas não está no milagre da cura dos dez leprosos, nem tampouco no fato de um estrangeiro ser agraciado por Deus. Mas o acento está no fato de um homem receber a salvação plena. A cura corporal não é suficiente para a salvação que Deus tem para o homem. É preciso acontecer algo mais. É preciso o reconhecimento do fato divino e a consequente gratidão e o louvor a Deus. É preciso acontecer a fé. Em suma: Dez leprosos foram curados, mas somente um foi agraciado pela salvação plena, pois teve fé. Somente um reconheceu, em Jesus Cristo, a proximidade de Deus.
II – Detalhes
Jesus havia tomado o firme propósito de ir para Jerusalém (9.51). No caminho, entra em aldeias e cidades, aproveitando a viagem para ensinar (13.22). Ele encontra pessoas pecadoras, doentes, desprezadas e marginalizadas e as cura. Em todos os recantos ele dá sinais claros da proximidade de Deus, que está acontecendo em sua pessoa. Deus, com sua graça e seu amor, veio ao mundo e caminha ao encontro das pessoas que dependem dele e as ajuda. Essa missão de Jesus se consumará em Jerusalém, na cruz. O destino da viagem de Jesus é Jerusalém. É o caminho que Deus escolheu. E a estrada, que da Galiléia vai para Jerusalém, passa por Samaria. Jesus caminha ao encontro também de estrangeiros. Ele veio também para eles. Por isso, ele não só passa pela Samaria, mas cumpre sua missão já pelo caminho, entrando em aldeias e vilas samaritanas, onde ensina, cura e perdoa. É a graça de Deus que chegou para todos. O Deus exclusivo de Israel é Deus universal. Ê a boa nova da graça e do amor de Deus que caminha da Galiléia, pela Samaria, para Jerusalém. É a graça de Deus indo ao encontro dos marginalizados, sofridos, pecadores e doentes. É o reino de Deus estabelecendo-se em toda a parte. Por onde Jesus passa o reino de Deus acontece pela sua palavra e ação.
A fama de Jesus, pelo menos como milagreiro ou curandor, correu rápida pela Samaria. Pois, entrando numa aldeia vieram-lhe ao encontro dez leprosos que, de longe, lhe gritaram: Jesus, Mestre, compadece-te de nós! Os dez marginalizados pela doença chamam a Jesus de Mestre, isto é, reconhecem-no como autoridade. Eles não ousam aproximar-se de Jesus, ficando distantes, pois a lei lhes proibia a aproximação a pessoas sãs (Lv 13.45). Os dez reconhecem Jesus como um Mestre cheio de piedade e misericórdia, por isso, se animam e pedem por compaixão. Sua esperança era de que este Mestre podia ajudá-los. Pois este não só ensinava a lei, mas tinha também o poder da cura, e se dispunha a ajudar.
O interessante é que Jesus, vendo-os, não dá nenhuma palavra de cura. Apenas lhes diz: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes. Jesus manda-os cumprir a lei da purificação do leproso: Eis a lei relativa ao leproso, para o dia de sua purificação: Será conduzido ao sacerdote (Lv 14.2). Confiantes, os dez obedecem a Jesus e põem-se a caminho, antes mesmo de estarem curados. Somente pelo caminho eles iam sendo curados. Para receber a cura eles tiveram que arriscar um passo no escuro: obedecer sem compreender, mas com esperança, confiança, fé e coragem. Assim como Abraão obedeceu a Deus sem compreender a sua ordem, aparentemente sádica e maluca (Gn 22.2), assim os dez leprosos tiveram que arriscar um passo semelhante. Eles foram curados porque obedeceram incondicionalmente e não limitaram o poder do grande Mestre.
Dez leprosos foram curados, mas somente um volta para agradecer a Deus na presença de Jesus. Somente aquele um alcançou a verdadeira libertação, reconhecendo que Jesus Cristo é a presença do amor e da misericórdia de Deus. Ele agradece a Deus aos pés de Jesus. Este um reconheceu que havia recebido de Deus uma graça imerecida. Pois, agradecer é o mesmo que dizer: Eu nada fiz para merecer tamanha graça. Por que será que os outros nove não voltaram a Jesus para agradecer? Provavelmente não viram em Jesus o que este um viu. Os nove apenas constataram que um homem os curou, um homem que nada mais fazia do que cumprir o seu dever. A cura, para os nove ingratos, nada mais era do que um direito que lhes cabia. Um direito que nós hoje chamaríamos de direito adquirido. Por isso não precisavam agradecer.
O que volta para dar graças a Deus é um samaritano. Justamente um estrangeiro, desprezado e não cumpridor da lei judaica, se humilha perante Jesus, agradecendo a Deus. Será que os outros nove eram judeus, piedosos cumpridores da lei e, por isso mesmo, já haviam recebido o direito da purificação? E, por isso, não reconheceram a graça de Deus?
Jesus indignou-se com a ingratidão dos nove e lamenta: Não foram limpos os dez? E os nove onde estão? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro? Ninguém lhe respondeu, pois as perguntas não exigem respostas. As respostas estão incluídas nas próprias perguntas. Sim, foram limpos os dez. Os nove desapareceram. Foram limpos e purificados e voltaram ao convívio da sociedade, mas nada de essencial havia mudado neles. Nenhum dos nove reconheceu em Jesus Cristo a proximidade de Deus e, por isso, não acharam motivos para dar glórias a Deus. Apenas dez por cento doa atingidos pelo poder e o amor de Deus soube reconhecer a graça imerecida. Este um que.voltou soube reconhecer que a cura é dádiva, é presente, de Deus e não pagamento ou mérito por quaisquer boas obras. A cura representou, para ele, graça e não direito que lhe cabia.
Houve, portanto, naquele homem, não somente a libertação daquela terrível doença, mas houve também uma mudança de vida. Houve também uma transformação radical no comportamento e na mentalidade daquele homem. Somente este experimentou a verdadeira graça imerecida de Deus. E Jesus lhe diz: Levanta-te e vai, tua fé te salvou.
Conforme Brakemeier, o escopo da história de Lucas pode ser formulado dessa forma: Um homem aprende a dar louvor a Deus através de Jesus Cristo (p. 6). O samaritano passa a ser um exemplo para todos os que, de uma ou de outra forma, são beneficiados por Deus através de Jesus Cristo. Salvação acontece lá onde há gratidão a Deus. Quem se humilha será exaltado.
III — Meditação
Conforme a nossa história, somente um de dez volta para agradecer a Deus. Somente um sabe reconhecer sua cura como dádiva de Deus ou como graça imerecida, que acontece através da pessoa de Jesus Cristo. Somente um dos dez descobriu que este Mestre Jesus Cristo é a presença do próprio Deus no mundo; que Cristo é a realidade do poder e do amor de Deus entre os homens. Somente este estrangeiro viu que o reino de Deus ou a Salvação já é uma realidade presente. Jesus o fez experimentar isso, porque se humilhou agradecido. E o que o levou a essa atitude grata foi a sua fé. Ele creu em Jesus como enviado de Deus e, em consequência, sua vida mudou radicalmente. Ele não só foi curado da doença, mas foi curado também de um mal ainda maior. Jesus o libertou do orgulho e do egoísmo, tornando-o um homem grato e humilde, que soube reconhecera sua pequenez e soube aceitar tudo como graça imerecida de Deus. A sua fé incondicional em Jesus Cristo é a chave de tudo. Ele alcançou a plena libertação através da fé. Em seu coração Deus fez germinar a pequena semente de seu reino.
A palavra de Jesus: Levanta-te e vai, a tua fé te,salvou não é somente uma palavra de promessa e graça, mas ela é também uma palavra comprometedora. Ela compromete o homem atingido a permanecer na graça, mostrando através de sua maneira de viver que nele brotou algo inédito, diferente, novo: o Reino de Deus. O homem atingido pela palavra libertadora de Jesus Cristo vai ser discípulo de seu Senhor no mundo. Ele vai trilhar o caminho de Jesus, mesmo que este leve à cruz. Jesus o liberta e o envia ao mundo para ser testemunha, proclamando essa boa nova da graça de Deus. O homem agraciado andará pelos caminhos do mundo em atitude humilde, agradecendo e louvando a Deus em Jesus Cristo, a cada passo que conseguir dar. Tudo lhe será dádiva imerecida de Deus e, por isso, voltará sempre para agradecer. Talvez ele não terá uma vida fácil e agradável, mas será uma vida feliz, porque experimentará, sempre de novo, o Reino de Deus. Ele experimentará a alegria e a paz no sofrer pelo irmão, o qual Deus também quer atingir por sua palavra.
Ao transportar esta história para a nossa atualidade, isto é, para o mundo de pessoas que se dizem cristãs, de pessoas que foram, formalmente, atingidas pela graça imerecida de Deus, surgem perguntas como estas: Como estamos nós? Será que somente dez por cento dos membros de nossas comunidades se voltam para agradecer a Deus? Ou será que nem são dez por cento? Será que houve em nossa vida aquela transformação radical que aconteceu àquele samaritano? Será que existe realmente uma diferença entre a vida dos cristãos de hoje e a vida dos não-cristãos? Vivemos a vida nova presenteada por Deus, ou vivemos a velha vida do egoísmo, do orgulho e da vaidade? O Batismo mudou algo em nossa vida?
A nossa Igreja ensina que é justamente no Batismo que Deus nos presenteia a nova vida, a salvação. É ali no Batismo que Jesus nos diz: Levanta-te e vai, a tua fé te salvou. O Batismo é o sinal visível da graça e do amor de Deus que aconteceu na pessoa de Jesus Cristo. No Batismo o velho homem pecador é afogado para dar lugar ao novo homem, agraciado por Deus. Este novo homem viverá uma vida diferente, totalmente nova e renovará seu Batismo diariamente. Acontece isso hoje realmente conosco? E como isso se mostra concretamente?
Olhando com olhos críticos para a nossa comunidade e o nosso mundo, facilmente chegamos a esta conclusão pessimista: Não existem mais discípulos de Jesus hoje, pois, parece que ninguém mais quer comprometer-se com a palavra da graça de Deus. Todos, assim parece, procuram a vida, não em Jesus, mas no mundo consumista e secularizado. O mundo é por demais científico. Para tudo que recebemos como graça achamos uma explicação científica. Até mesmo a vida, que é dádiva de Deus, é vista geralmente apenas como fenômeno da natureza ou acaso. São poucos os que conseguem ver a mão do Criador por trás dos fenômenos e dos acasos. Daí a ingratidão. Por que agradecer a Deus, se tudo existe por acaso?
O nosso coração está tão preso a estas coisas do mundo, que dificilmente estaremos dispostos a largar tudo em favor de algum irmão necessitado. Dificilmente estaremos dispostos a sofrer a cruz para que o irmão tenha uma vida melhor. Tudo isso porque vivemos como se Deus não existisse. Ele não faz parte de nossa vida e, por isso, tudo o que conseguimos nesta vida não reconhecemos como graça imerecida de Deus, mas como mérito e ganho por alguma coisa que fizemos.
Porém, é justamente esta graça que o samaritano recebeu de Jesus: A graça de ser livre de si mesmo a ponto de se sentir impotente para fazer qualquer coisa por si mesmo. Tudo é dádiva de Deus. Ele dependeu inteiramente da graça de Deus. A cura, portanto, não é mérito seu, mas graça. Este samaritano deverá nos servir de exemplo toda vez que formos beneficiados por Deus. A gratidão humilde, como sinal de nossa impotência, conduzirá para a libertação plena.
No entanto, também a gratidão corre o risco de se tornar obra e mérito próprio, quando feito como lei e não como algo que, realmente, está dentro do coração. A própria disposição para agradecer e louvar a Deus já é graça. Jesus é quem transforma um coração ingrato e vaidoso, tornando-o grato e humilde. Isso mostra como somos impotentes por nós mesmos. Por forças próprias nada podemos fazer pela nossa salvação. Tudo é graça imerecida, até mesmo a fé. O que nos resta é pôr-nos à disposição de Deus e orar: Estou aqui de mãos vazias. Nada posso, nada sei e nada tenho. Dá-me fé, Senhor! Pois através da fé tudo me é possível. Através da fé eu posso ser discípulo de Jesus; posso ir ao encontro do irmão necessitado; posso ser humilde e grato; posso amar; posso viver o teu reino…
IV – Sugestão para a prédica
Sugiro seguir os seguintes passos na pregação:
a) Leitura do texto: A leitura do texto pode ser feita no início, pois o mesmo não necessita de uma introdução ou explicação detalhada. A história, certamente, é conhecida de todos.
b) Acentuar o exemplo do samaritano grato: Um homem aprende a dar graças e louvor a Deus através de Jesus Cristo.
c) Lançar a pergunta à comunidade: O que temos hoje para agradecer a Deus? Deixar a comunidade mesmo responder. Certamente vão surgir coisas concretas, como: vida, o pão de cada dia, vestuário, casa, lar, saúde, colheita boa, etc. Talvez um ou outro vai dizer: salvação que se deu em Cristo.
d) Aproveitar as respostas da comunidade para acentuar a graça imerecida. Nada é mérito nosso. Tudo é dádiva de Deus, o Criador.
e) Esta graça imerecida já nos é dada no Batismo. O Batismo é o sinal visível da graça. Receber a graça compromete e leva ao irmão necessitado.
f) Recebemos essa graça através da fé incondicional em Jesus Cristo e para recebermos a fé precisamos nos pôr à disposição de Deus. Somente um coração que recebeu a fé consegue ser grato e humilde, a exemplo do samaritano de nossa história.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai amado, estamos aqui reunidos diante da tua face de mãos vazias. Nada temos para dar em troca de tua misericórdia e teu amor. Sem tua ajuda nada somos e nada conseguimos realizar. Mas, confessamos-te, que, apesar disso, somos vaidosos e pensamos viver por nossa própria conta. Contamos muito pouco contigo. O egoísmo e o orgulho não nos deixam reconhecer que dependemos totalmente de ti. Constantemente esquecemos que a vida e tudo o que temos para mantê-la são dádivas de tuas bondosas mãos. A nossa fé é fraca e não conseguimos reconhecer que tu vieste ao mundo em Jesus Cristo para nos ofertar de graça o perdão e a vida plena. Senhor, perdoa-nos a ingratidão e todas as faltas que cometemos com relação ao nosso irmão necessitado. A tua cruz nos parece pesada demais. Por tudo isso e muito mais: Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Amado Senhor! Infunde em nós a fé necessária para podermos agora ouvir a tua palavra da graça. Ajuda-nos a reconhecer que precisamos de ti para viver. Em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém.
3. Oração final: Amado Senhor! Temos muitas coisas para te agradecer. Tudo o que somos e temos nós devemos a ti. Senhor. Hoje queremos agradecer-te por todos os benefícios que recebemos de tuas mãos. Mas especialmente, queremos agradecer-te por Jesus Cristo, teu Filho amado, que trouxe para este mundo o teu Reino e mudou muita coisa em nós e entre nós. Através dele podemos ser novas criaturas, herdeiros de teu reino. É por causa de Cristo que podemos experimentar, já aqui e agora, a paz e a alegria de um novo céu e de uma nova terra, onde habita a justiça. Pedimos-te por todos aqueles que se afastaram de ti por causa de seu egoísmo e de sua vaidade. Dá que tornem a ti, humildes e gratos. Pedimos-te por todas as pessoas ingratas, incluindo a nós, que não conseguem ter fé e, por isso, não vivem o teu amor. Perdoa-lhes a ingratidão e torna-as aptas para crer em ti. Dá que todos nós nos coloquemos à tua disposição para que, dessa forma, possamos receber a fé necessária para reconhecermos a tua bondade e misericórdia. Senhor, estejas tu com todos nós, porque precisamos de ti para viver! Torna-nos todos humildes e gratos, a exemplo do samaritano que Jesus curou. Amém.
VI — Bibliografia
– BRAKEMEIER, G. Jesus cura dez leprosos. In:As histórias de milagres no Novo Testamento. São Leopoldo, s. d. (Polígrafo).
– BOHNE, G/GERDES, H. Wunder Jesu. In: Biblischer Unterricht. Berlin, 1965.
– STÖGER, A. O evangelho segundo Lucas. In: Coleção Novo Testamento, v. 3/2. Petrópolis, 1974.