Prédica: Lucas 4.16-21
Autor: Huberto Kirchheim
Data Litúrgica: Ano Novo
Data da Pregação: 01/01/1985
Proclamar Libertação – Volume X
l — Observações iniciais
Sobre o nosso texto já existem dois auxílios homiléticos em Proclamar Libertação vol. VI, p. 7ss e 19ss. São bons subsídios para a elaboração de uma prédica de Ano Novo. O primeiro trabalho enfatiza a dimensão coletiva e o segundo, por sua vez, acentua mais o aspecto individual, mostrando, no entanto, a interligação com a coletiva. Ambos se complementam.
Ano Novo é momento oportuno para avaliar e redimensionar o rumo da caminhada cristã sob os aspectos individual e coletivo.
Parece-nos importante chamar a atenção para uma questão de tradução. Almeida traduz: evangelizar os pobres. A melhor tradução seria: anunciar aos pobres a boa notícia da vitória. Esta seria uma tradução mais original. Dessa maneira também se evitaria uma interpretação espiritualizante e uma pastoral paternalista e assistencialista, que faz dos pobres meros objetos.
Ainda merece uma melhor complementação o que o autor, citando várias formas de evangelização, afirma em Proclamar Libertação VI, à p. 11, sob o item IVc: O trabalho junto aos índios, que deixou de ser uma evangelização que visa converter o índio para o cristianismo. Essa afirmação pode ser mal interpretada. Supomos que o autor não está colocando em dúvida a missão entre os índios como a que sempre visa o confronto com o Evangelho de Jesus Cristo. No entanto, quer acentuar que a missão cristã não pode e deve ignorar e desrespeitar o contexto social e cultural do índio. Justamente deve preocupar-se com a pergunta pela encarnação autêntica do Evangelho na realidade indígena. E isso forçosamente será diferente do que em nosso contexto sócio-cultural.
II — A perícope e seu contexto:
Há uma certa semelhança do nosso texto com o de Mc 6.1-6a. No entanto, Lucas o complementou com fontes próprias e o trabalhou teologicamente. Em Mc 6.2-3 se diz dos ouvintes, como reação às suas palavras, que se escandalizaram dele. Porém, em Lc 4.22, conforme tradução própria: Todos davam testemunho contra ele e, estranharam as palavras de graça.. ., e essa tradução também está de acordo com o que segue no v. 28s: Todos na sinagoga, ouvindo estas cousas, se encheram de ira. E, levantando-se, expulsaram-no da cidade e o levaram até ao cume do monte sobre o qual estava edificada, para de lá o precipitarem abaixo.
É importante destacar que em Lucas a reação de todos: os da sinagoga, os líderes religiosos e políticos e o povo em geral, é mais do que maravilhar-se. É de fato testemunho contra ele, é estranheza, ira, expulsão e ameaça de morte.
Para Lucas tal reação é inerente ao próprio Evangelho no sentido de anunciar aos pobres a boa notícia da vitória, proclamar libertação aos cativos, restaurar a vista aos cegos e pôr em liberdade os oprimidos. Assim Lucas deixa bem claro de que este é o conteúdo do Evangelho que compromete a comunidade de Cristo neste mundo. A comunidade deve estar consciente da reação que o testemunho, desse evangelho, em palavra e ação, necessariamente vai causar, ou seja, conflito, sofrimento e cruz.
A caminhada da Igreja é marcada pela cruz e não pela glória, pelo aplauso e sucesso. No entanto, esta cruz já traz em si a marca da Páscoa, da vitória da vida sobre a morte. A vida venceu, vence e vencerá definitivamente a morte com todas as suas manifestações. Essa é a esperança que nos anima e fortalece na caminhada sob a cruz (Lc 9.23ss).
Por conseguinte, parece-nos importante incluir na perícope também os vv. 28-30.
Em lugar da meditação e dos passos com vistas à pregação, compartilhamos uma prédica sobre Lc 4.16-21, 28-30, proferida no culto de abertura do XIlIo. Concílio Geral da IECLB, no dia 20/107 82, em Hamburgo Velho.
Pensamos que este auxílio pode servir de estímulo e avaliação no processo de elaboração de uma prédica própria.
III – Prédica sobre Lc 4.16-21, 28-30.
É importante e significativo que este Concilio Geral sobre o tema Terra de Deus – Terra para todos, acontece no meio da Comunidade. Ainda mais expressiva é a feliz coincidência de que esta Comunidade de Hamburgo Velho, comemorando os 150 anos de sua existência, aviva também nossa memória histórica de Igreja. Neste Concílio Geral os delegados dos 32 Distritos Eclesiásticos devem avaliar, à luz do Evangelho de Jesus Cristo, a nossa presença, ação e caminhada de IECLB. Confiamos em que o Espírito Santo nos oriente nessa avaliação a fim de que melhor (em conjunto) descubramos o conteúdo e o lugar específicos de nossa missão no Brasil e na América Latina.
— Do conteúdo e do lugar de nossa missão nos fala o Evangelho em Lc 4.16-21,28-30: (leitura do texto).
Percebemos que o conteúdo do Evangelho é:
— Cristo traz vida: aos que não a têm e nem a merecem. Ele é a vida para todos que estão à margem da vida: pobres, cativos, cegos e oprimidos. Nisso fica claro que o conteúdo do Evangelho determina o lugar em que o mesmo deve ser articulado, vivenciado e concretizado. Conteúdo e lugar são inseparáveis! Todo o Evangelho, segundo Lucas, mostra o Cristo que primordialmente se interessa e preocupa com aquelas pessoas que, tanto na sociedade, como na Igreja, são desprezadas, rechaçadas e desconsideradas.
Pergunto-me: — É este o Cristo que eu e nós confessamos como nosso Senhor? É este o Cristo que determina a nossa vivência, pregação e ação na família, comunidade, igreja e sociedade? Pensamos neste Cristo quando nos denominamos cristãos? É vital conscientizarmo-nos de que diante de nós está o Cristo que diz:
Eu sou o ungido, ou seja, enviado e investido por Deus para evangelizar os pobres: i. é: eu sou libertação, salvação para os pequenos, fracos e pobres; eu sou a boa notícia para os que se acostumaram com o lado negro da vida; eu sou a libertação para os presos e oprimidos; eu faço com que os cegos enxerguem.
Deu para perceber que Cristo é a vida para os que não a têm, não a conhecem e nem merecem? Dá para sentir a direção em que o Evangelho nos leva? Confesso que é duro e doloroso sermos desinstalados e postos a caminho da margem, da periferia da sociedade e comunidade.
Pois lá está o número crescente e alarmante de desempregados, desocupados. Os 25 milhões de crianças carentes abandonadas, as 12 milhões de crianças que passam fome e miséria (de O a 6 anos).
Lá vegetam os 60 milhões de subnutridos (por não terem o suficiente para uma alimentação básica e sadia). Lá estão os 40 milhões de migrantes dos últimos 10 anos. Lá estão os 96 milhões de pessoas que só podem repartir entre si 1/3 de toda riqueza nacional. Lá estão os idosos, que numa sociedade de produção e consumo, apenas representam carga e fardo. Lá estão os 10 milhões de bóias-frias, os sem-terra e os posseiros. Lá estão os restantes índios, sempre mais privados de seus costumes e de suas terras. Lá estão os pequenos agricultores, cuja sobrevivência está ameaçada por uma política agrária concentradora e exportadora. Lá estão as mães brasileiras, que, entre as mulheres do mundo, têm o maior teor de DDT no leite materno. Es¬sas são algumas das vítimas de um processo louco, irresponsável e desumano do assim chamado progresso e desenvolvimento. Enfim, lá estão os pobres, cativos, cegos e oprimidos, dos quais fala o nosso texto. A IECLB ao se colocar sob o tema: Terra de Deus, Terra para todos, forçosamente é confrontada com esta realidade. Somos Igreja de Jesus Cristo no Brasil. E este Jesus Cristo, conforme nosso texto, nos obriga a pregar, anunciar e vivenciar o ano aceitável do Senhor.
Em Cristo, Deus concede perdão aos que não o merecem justifica os totalmente injustos, dá valor e sentido de vida aos que nada são e nada têm a oferecer. Concretamente isto nos leva a lutar por uma mudança de mentalidade, que se reflete numa nova escala de valores. Pois, diante de Deus, o homem vale pelo que ele é e não pelo que tem, produz e consome.
Isto também nos leva a empenharmo-nos para que seja realizada uma distribuição mais justa da terra e da renda para todos. Neste contexto, lembro um exemplo concreto: a Igreja está reivindi-cando a aplicação e realização do Estatuto da Terra, fixado em lei há 18 anos.
O ano aceitável do Senhor significa: Cristo é e traz vida abundante aos que não a têm e nada fizeram para merecê-la: a vida em que as necessidades básicas espirituais, emocionais, materiais e sociais são atendidas.
No entanto, todos que ansiosamente esperavam e esperam pela vida abundante e plena, a rejeitaram e continuam dando às costas a ela.
Quando Jesus afirmou: Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir, todos na sinagoga (na Igreja) se encheram de ira. Conforme uma tradução mais correta do versículo 22, todos davam testemunho contra ele e estranhavam as palavras de graça.. . E conforme v. 29 Expulsaram-no da cidade e tentaram empurrá-lo morro abaixo.
O que incomoda a todos neste Jesus?
É incómodo para os poderosos e piedosos porque anula a sua segurança de vida. Ele que se diz ser o esperado Messias, coloca tudo de cabeça para baixo: toma partido em favor dos marginalizados, injusto e pecadores. Derruba os líderes religiosos e políticos, pois conforme a sua escala de valores, pobre é preguiçoso e não abençoado; preso é o malandro, o ladrão, o subversivo; cego é. o pecador castigado por Deus; oprimido o que não conseguiu subir na vida, o burro — que não serve para outra coisa do que ser mandado e usado. Todos esses valores, fundamentados pela religião, são desmascarados pelo esperado Senhor. Tal Messias os líderes não suportam. Rejeitam e crucificam.
Mas, por mais absurdo que pareça, os que mais esperavam pela vinda de nova vida, que o Messias traz, também se irritam, incomodam e escandalizam. Pois Ele não assume o papel de ídolo, herói, poderoso, mas se apresenta como humilde, fraco e impotente demais. Por causa disso também eles gritam: Crucifica-o!
Até os próprios discípulos o abandonam quando Ele é preso e morto. Não conseguem aceitar um Messias que nesta situação não reage com poder (Lc 24.21).
Não é assim que também nós cristãos experimentamos, sempre de novo, a tentação de querermos ser uma Igreja forte, poderosa, influente? Sentimos necessidade de sucesso, aplauso e glória! E nisso dificilmente conseguimos encaixar o fato de obreiros nossos serem presos por se terem colocado ao lado de posseiros sem nome!
Impressiona-nos muito mais ver 150 mil cristãos no Maracanã, homenageando ao Presidente com uma Bíblia!
No entanto, Cristo diz, para nós, como cristãos individualmente e como Igreja: Lc 9.23-24: Se alguém quer vir após mim a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará. Será que assim fica suficientemente claro que para nós cristãos só existe um discipulado, um ser Igreja? A saber: O discipulado e o ser Igreja sob a cruz de Cristo! Aos olhos do mundo, a cruz sempre leva à morte, ao fracasso.
Porém, aos olhos de Deus, a cruz leva pela morte para a vida. Da morte nasce a nova vida. O grão de trigo precisa morrer na terra, para que nasça a planta de trigo. Na pessoa de Cristo, Deus atesta ao mundo, a vitória da vida sobre a morte. Sinais desta nova vida, Deus agora já nos possibilita. No entanto, a vitória definitiva da vida sobre a morte dar-se-á quando Deus construir novos céus e nova terra, nos quais habita justiça plena, sem morte. Esta esperança não nos acomoda e nem nos deixa conformados com a violação da vida. Pelo contrário, esta esperança é como um raio de sol que nos aquece, revigora e encoraja para lutarmos pela vida e justiça, contra morte e injustiça. Pensamos, por exemplo nos colonos de Itaipu que, movidos pelo Evangelho, se agruparam e reivindicaram os seus direitos de indenização mais justa. Ou numa comunidade que sai do centro e vai ao encontro de um bairro pobre. A partir do estudo do Evangelho os pobres percebem que têm direito à água, luz e condições de saúde.
Tal vivência evangélica é cruz para a comunidade, pois significa: anunciar o Evangelho de que Deus justifica os pecadores por graça e fé contra qualquer religião de merecimentos. Significa também denunciar todas as manifestações de morte e injustiça; significa sair da casa segura em direção aos pequenos, fracos e marginalizados e resistir com eles contra toda e qualquer estrutura que oprime e impede vida e terra para todos.
Santo Espírito, derruba e desinstala-nos através de teu Evangelho e põe-nos num caminho sob a cruz e faze surgir sinais concretos da vitória da vida.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Misericordioso Deus e Pai! Hoje nos permites iniciar mais um novo ano. Nisso percebemos tua graça e longanimidade. Por causa disso nós nos curvamos humildemente diante de ti. Confessamos que no ano que findou temos falhado diante de ti, do próximo e do mundo. Estivemos demais presos a nós mesmos, preocupados com o nosso direito e bem estar. Por isso não repartimos com o necessitado. Por medo e conveniência calamo-nos onde deveríamos ter denunciado injustiças e desamor. Como comunidade não temos sido sal e luz do mundo. Sensibilizamo-nos pouco com os presos, oprimidos e marginalizados. Ficamos devendo-lhes o testemunho do Evangelho libertador. Por causa de Jesus Cristo, teu Filho amado, rogamos-te que nos perdoes
todos os pecados, falhas e omissões e nos concedas o teu Espírito Santo para que nossas vidas sejam transformadas. Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Obrigado, Senhor, que não nos rejeitaste, mas nos tens perdoado e aceito por causa de Jesus Cristo. Derrama agora o teu Espírito Santo sobre nós para que a tua Palavra penetre em nossos corações, transformando nossas vidas. Dá que sejamos sinais visíveis e concretos do teu amor, da tua paz e justiça nesse mundo, por causa de Jesus Cristo que reina contigo e o Espírito Santo, de eternidade em eternidade. Amém.
3. Motivações para a oração final: agradecer pela comunhão experimentada nesse culto com Deus e os irmãos; pela fidelidade e bondade de Deus que nos deixou iniciar um novo amor; pedir que Deus nos conceda a coragem da fé para o testemunho destemido do amor de Deus junto aos que esteio à margem da comunidade e sociedade; coloquemos a confiança tão somente em Deus e sua palavra; que tenhamos coragem para desmascarar os falsos deuses que só escravizam; que saibamos colocar sinais do repartir cristão em nossos lares, comunidade a sociedade; interceder pelos que estão à margem da comunidade e sociedade; presos, idosos, pobres, doentes, desempregados; interceder pela direção da IECLB, para que saiba ser instrumento facilitador do ser igreja e que tenha humildade para confessar erros e coragem e liberdade para denunciar e anunciar; interceder pelos governantes do mundo no sentido de promoverem uma nova ordem sócio-econômica mundial, que possibilite um repartir mais justo, um processo de desarmamento em favor da paz.
V — Bibliografia
MALSCHITZKY, H. e STRECK, E. Meditações sobre Lucas 4.14-21. In: Proclamar Libertação, v. VI, São Leopoldo, 1980. Além da literatura ali indicada, recomendamos: GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lucas. In: Theologischer Handkommentar zum NT. v. 3. 8 ed. Berlin 1978.