Prédica: Lucas 8.4-10
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Domingo Sexagesimae
Data da Pregação: 10/02/1985
Proclamar Libertação – Volume X
l — Auscultando o texto
A parábola do semeador encontra-se nos três evangelhos sinóticos. Em Mateus e Marcos o texto é quase idêntico. Há somente algumas pequenas divergências. Lucas, por sua vez, apresenta algumas peculiaridades que devem ser consideradas. O que mais chama a atenção é que ele não fala da produção a trinta, sessenta e a cem por um. Ele somente diz: outra, afinal, caiu em boa terra; cresceu e produziu a cento por um. Além disso, o texto de Lucas, como não podia deixar de ser, traz formulações tipicamente helenísticas. Quem toma para a prédica ainda a explicação da parábola, encontra a expressão grega bem clássica: KALÉ KAI AGATHÉ. (v.15). Mas ela não pode ser interpretada no sentido da filosofia grega como se o ser humano, no seu íntimo, fosse reto e bom por natureza, ou que com suas próprias forças pudesse atingir este ideal de vida. O próprio texto de Lucas deixa claro que o coração do ser humano não é reto e bom. Se assim fosse, não constaria no versículo 10 o enfático vos é dado conhecer. Para Lucas se alguém chega a ser boa terra, então isto é dádiva! Este aspecto deveria ser observado na abordagem do nosso trecho.
Quanto à parábola em si, parece-me necessário evitar a interpretação alegórica. A comunidade, porém, conhece a parábola do semeador exatamente com a intepretação alegórica que os próprios evangelhos apresentam. Para um novo ouvir do texto julgo importante evitar atribuir a cada detalhe um sentido especial. Importa, antes, e Lucas sugere isto quando ele próprio evita detalhes, perguntar pelo tertium comparationis. Uma coisa só é o centro da atenção, a uma só se refere a comparação.
Após esta reflexão introdutória, queremos ver o que seria o tertium comparationis na parábola do semeador. A correlação estabelecida é, sem dúvida, entre semente e palavra. Ambas são frágeis na sua aparência, mas ambas produzem grande efeito.
Aqui se trata da palavra de Deus que é Cristo. O Deus de Israel, santo e fiel, encarna-se no meio de seu povo. O Verbo se faz carne em Jesus de Nazaré. Deus identifica-se com este homem na relação pai-filho. Em Jesus temos acesso ao Pai porque Jesus é a expressão da vontade divina para conosco. Nele está presente tudo o que Deus significa para o ser humano: amor até o fim. Assim exatamente ele é a palavra de Deus, seu ato de comunicação, revelação de sua face. É neste sentido que a palavra de Deus era e é (na forma plena, que na história de Israel apenas se anuncia) a palavra que neste Unigénito se tornou carne (K. Barth). A este Jesus que a si mesmo se esvaziou, assumiu forma de servo, a si mesmo se humilhou e se tornou obediente até à cruz, a este Deus exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome (Fp 2.9). Este nome, pronunciado concretamente na história, é, ao mesmo tempo, um mistério. Neste contexto o versículo 10 assume um lugar central. Respondeu-lhes Jesus: A vós outros é dado conhecer os mistérios do reino de Deus Alguns manuscritos lêem o mistério, no singular. J. Jeremias traduz o trecho paralelo em Mc 4.11b-12 da seguinte forma: A vós é confiado o mistério do reino de Deus; mas àqueles que são de fora, tudo é enigmático, de modo que (como está escrito) eles vêem e não vêem, ouvem e não entendem, a não ser que se convertam e Deus lhes perdoe (J. Jeremias, As parábolas de Jesus, p. 10/11), isto vale de modo geral do anúncio de Jesus do reino de Deus que já se torna presente e que só é compreensível aos que crêem. Aos que não crêem o reino permanece enigmático. Mas isto não significa que se tratasse de algo esotérico ou de algum conhecimento oculto. O conhecimento do mistério, aqui, não exige uma gnose especial, nem uma iniciação a um saber esotérico. A vós outros é dado saber os mistérios do reino de Deus significa que aos discípulos os olhos são abertos, assim que conseguem perceber que em Jesus de Nazaré, desprezado por viver com publicanos e pecadores, com marginalizados, portanto, o qual não tinha onde reclinar a sua cabeça, irrompeu o reino de Deus. É digno ainda de nota que Paulo designa exatamente a palavra da cruz como mistério! Que na fraqueza Deus manifesta seu poder, isto não reconhecemos a partir de nós mesmos. Isto sabemos somente quando nos é dado saber, quando somos levados para dentro do seguimento concerto, quando não mais estamos na atitude de espectador distante.
II — Subsídios para a prédica
Quando ouvimos esta parábola do semeador, fazemos, imediatamente, muitas associações. Lembramos as muitas vezes que já meditamos sobre este texto. As mais diversas recordações são evocados em nós.
Talvez alguém, de maneira muito intensa, ligue a parábola com um conhecido quadro de van Gogh. Ali vemos um semeador lançando a semente em movimentos amplos e generosos. O tom que predomina no quadro é o amarelo. Isso tem um efeito impressionante! Dá ao todo uma luminosidade especial e desperta uma sensação de alegria. É, sem dúvida, uma cena belíssima. Mas, se olhamos para a nossa parábola percebemos ainda um outro tom. Em todo caso, não nos podemos edificar por muito tempo, no quadro idílico do semeador, pois se fala aí das muitas formas do extermínio da semente divina. Por isso, paira sobre a parábola uma grande tristeza e profunda melancolia (H. Thielicke). Quem se detém no quadro idílico do semeador deve, no mínimo, perceber a presença deste tom de tristeza.
Outros hão de se recordar de prédicas onde todo o peso estava sobre os quatro tipos de solo. Descreve-se extensamente os caminhos endurecidos pelas pisadas. Fala-se até de ruas asfaltadas para, então, dizer que há também corações asfaltados. Coitados dos homens-caminho! Eles não conseguem ser terra lavrada à espera da boa semente.
Sem seguida, descreve-se o solo pedregoso. Pensa-se em pessoas atingidas pela mensagem que talvez até falem em conversão. Mas trata-se de um cristianismo emocional sem profundidade. A planta não cria raízes. O terceiro tipo de solo é aquele que contém em grande quantidade semente de espinhos. Aí se pensa em pessoas em cuja vida ainda brotam tantas outras coisas além da palavra de Deus. São mencionados os cuidados, os deleites da vida e as riquezas.
Finalmente, as prédicas que lembramos, falam da boa terra. São as pessoas que não somente ouvem a palavra, mas também a guardam. Bem, certamente é legítimo falar dos quatro tipos de solo. Os próprios evangelhos o fazem. Mas, vejo uma dificuldade quando se chega a lançar a pergunta: Que solo és tu? ÉS tu boa terra? Torna-te, irmão, boa terra para que a semente possa germinar, crescer e trazer frutos! Duas coisas podem ocorrer: Ou caímos na resignação de dizer: Ora, então tudo depende do tipo de solo que a gente nasceu! Não tenho culpa. Nada posso mudar, ou mergulhamos na desesperada tentativa de nos transformarmos, nós mesmos, em boa terra a fim de podermos receber a preciosa semente. O testemunho do evangelho, porém, me parece ser que a boa terra é doada (DEDOTAI).
É neste sentido que cantamos o hino 116,3:
Dá que boa terra eu seja,
que a semente cresça em mim!
Dá-me luz que a mente veja
teus desígnios, e que, assim,
na alma possa se arraigar
o teu Verbo e frutos dar!
São essas as primeiras reações quanto à parábola do semeador. Expus, também, algumas dificuldades que se apresentam. Confesso que com tudo isso foi se tornando cada vez mais forte a necessidade de descobrir uma outra abordagem. Cada vez mais foi se impondo a compreensão que a semente e a Palavra estão sendo comparadas e se encontram no centro da nossa parábola. A semente é algo que faz parte do dia a dia. É algo extremamente frágil. Nem se lhe dá maior atenção. É tomada, é armazenada, é também desperdiçada. Mas, ao mesmo tempo, é de grande alcance. A falta de grãos, por exemplo, pode produzir uma situação de fome. Em tempos de escassez ocorrem terríveis especulações. Florescem as tentativas de enriquecimento rápido em cima da falta de arroz ou de trigo, por exemplo. Isso aponta para a importância da semente. Em suma: De um lado a semente é algo extremamente frágil, de outro, é algo sem o que as pessoas não podem viver.
O mesmo se dá com a palavra. A palavra é frágil e, ao mesmo tempo, poderosa. E aqui não se trata de qualquer palavra, mas da palavra de Deus. A Bíblia testifica da Palavra que Deus falou na história. Em Hebreus, capítulo 1 lemos: Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, nos profetas, nestes últimos dias falou, em um que é seu Filho… Não se diz o que é, mas quem é a palavra de Deus! Assim, no evangelho segundo João o papel de Jesus é tanto pronunciar a palavra do Pai que ele é chamado a palavra, o Verbo. No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus… E o Verbo se fez carne e habitou entre nós… Em Jesus Deus se dá a conhecer como ele, na verdade, quer ser conhecido. O Verbo se tornou carne, esta é a confissão que atravessa os séculos; que é sempre repetida pelos cristãos. Esta é a confissão que em tempos especialmente difíceis é colocada com firmeza. Penso numa confissão que, neste ano, alcança seus 50 anos de existência. Refiro-me à Declaração de Barmen. A Igreja, na Alemanha, em parte, tinha-se deixado levar pela ideologia nazista. Havia um forte contingente eclesiástico que se denominava cristãos alemães. A base teológica da Igreja era minada por doutrinas estranhas. Representantes das igrejas Luterana, Reformada e Unida reuniram-se, então, em Barmen nos dias 29-31 de maio de 1934. Redigiram uma declaração em face dos erros dos cristãos alemães onde confessam claramente: Jesus Cristo, como nos é atestado na Sagrada Escritura, é a única Palavra de Deus que devemos ouvir, e em quem devemos confiar e a quem devemos obedecer na vida e na morte. Jesus Cristo, a única Palavra de Deus! Mas é aí exatamente que se dividem os espíritos. Uns aceitam, outros rejeitam essa única Palavra de Deus. Por que? Qual seria o motivo? No versículo 10 Jesus diz: A vós outros é dado conhecer os mistérios do reino de Deus Mistério!! Essa palavra mexeu comigo. O que exatamente viria a ser este mistério? As coisas se clarearam quando observei que o apóstolo Paulo emprega o conceito mistério no contexto da palavra da cruz. Ele escreve aos coríntios que não lhes falou em linguagem persuasiva de sabedoria, pois ele decidira nada saber senão a Jesus Cristo, e este crucificado (1Co 2.2), o que, aliás, é a verdadeira sabedoria. Falamos, escreve o apóstolo Paulo, a sabedoria de Deus em mistério (v. 7). Essa palavra da cruz nós não gostamos de ouvir. Estamos dispostos a ouvirmos um Deus como nós o imaginamos. Mas Deus no seu movimento para baixo, Deus na sua forma de servo, aí nós relutamos. Isso não queremos aceitar. Para essa palavra da cruz que é o mistério do reino de Deus, somos solo duro, pisado, pedregoso e cheio de espinhos. Somente se o Espírito de Deus nos transforma chegamos a ser terra fértil que acolhe a semente da palavra da cruz. A partir de nós mesmos confiaríamos em Deus somente se operasse em poder externo, à maneira deste mundo. Gostaríamos de ver a ação de Deus através do Espírito Santo em força visível. Eis os espinhos que querem sufocar a palavra!!
Vivemos dias difíceis. O Congresso Nacional decidiu contra as eleições diretas. Uma grande expectativa de todos nós foi frustrada. Não se veio ao encontro da maioria do povo brasileiro. E nós como Igreja temos somente a palavra! Não temos tropas, nem armas. Temos a palavra, a palavra da cruz. Mas através dela o Espírito transforma e cria espaço para vida verdadeira. E aí está toda nossa esperança. E quando somos levados para dentro do movimento no qual Deus quer ser Deus, ou seja, para baixo, então vale para nós: A vós outros é dado conhecer o mistério do reino de Deus e nos vale a bem-aventurança: Bem aventurados os olhos que vêem as coisas que vós vedes. Pois eu vos afirmo que muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes, e não viram, e ouvir o que ouvis e não o ouviram.
Ill — Subsídios litúrgicos
Salmo 119.89-91; 105-116
Para sempre, ó Senhor,
está firmada a tua palavra no céu.
A tua fidelidade estende-se de geração em geração;
fundaste a terra e ela permanece.
Conforme os teus juízos, assim tudo se mantém até hoje;
porque ao teu dispor esta*o todas as coisas.
Lâmpada para os meus pés é a tua palavra,
e luz para os meus caminhos.
Ampara-me, segundo a tua promessa,
para que eu viva.
1. Confissão de pecados: Senhor, sempre de novo deixamos de seguir os teus caminhos, e o que tu queres de nós, não fazemos. Amamos a nós mesmos mais do que tudo. Isto é culpa diante de ti. Isto nos separa dos irmãos. Senhor, mantém-nos na comunhão contigo e com nossos irmãos. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, todo poderoso e único Deus, pedimos-te: Não permitas que confiemos nas obras de nossas mãos e em nossa própria força, pois não conseguem dar sustento à vida. Livra-nos de autojustificação. Dá que não te esqueçamos. Ouve-nos por Jesus Cristo que contigo e o Espírito Santo nos lava a entender a tua palavra. Amém!
3. Elementos para a oração final: Agradecimentos pela existência da comunidade que pode viver diante do Senhor, servir-lhe e louvá-lo, que em uma situação tão difícil pode testemunhar a vontade salvadora e libertadora do Pai; agradecer que a existência desta comunidade no mundo, não depende de nós, mas de Deus mesmo. Isto nos da' liberdade para a ação. Pedir que nos lembremos disso quando queremos desanimar; que Deus fortifique a nossa fé; que sejamos verdadeiros no nosso testemunho em palavra e ação; que tanto nosso falar quanto nosso agir aconteçam no poder do Espírito.
IV — Bibliografia
– GRUNDMANN, W. Das evangelium nach Lukas. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. v. 3. 6. ed., Berlin 1971.
– STECK, K. G. Meditação sobre Lucas 8.4-15. In: Herr, tue meine Lippen auf. v. 1. Wuppertal-Barmen, 1962.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lucas 8.4-8 (9-15). In:- Der schmale Weg. Göttingen, 1978.
– WENDT, H. Meditação sobre Lucas 8.4-15. In: Estudos Teológicos. Ano 1949, n. 1, São Leopoldo.