Prédica: Marcos 16.1-8
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 07/04/1985
Proclamar Libertação – Volume: X
I – Considerações preliminares
O relato da ressurreição, na forma como Marcos o apresenta, é bem mais jovem do que o que temos em 1 Co 15.1ss. Desde os primórdios do estudo da Bíblia já se vem levantando a pergunta pelo final do evangelho de Marcos, pois praticamente é indiscutível que o que temos hoje (16.9-20) não faz parte do evangelho original. Caso o evangelho de Marcos nos fosse apresentado apenas até 16.8, forçosamente perguntaríamos o que se seguiu depois do que as mulheres viram. Ora, o que lemos em 16.1-8 é mensagem central não apenas para Marcos mas para todo o Novo Testamento. O seu conteúdo vai além de todas as categorias e palavras com as quais o ser humano procura articular aquilo que compreende ou julga ter compreendido. A última parte (vv 9-20) como a temos atualmente, é uma tentativa de relatar os acontecimentos que se seguiram e as consequências imediatas para os seguidores de Jesus, o que vamos encontrar também em Mateus e Lucas. É importante ressaltar já aqui que a ressurreição não é um evento que, por ser algo totalmente fora dos padrões humanos, deva ser visto e discutido isoladamente de todo da vida de Jesus e do nascimento da Igreja. Que o verbo se fez carne (Jo 1.14) também aqui não pode ser ignorado: A ressurreição ocorreu no mundo e em meio a sua história e, entre outros, me parece que os adendos (vv. 9-20) desejam deixar claro este aspecto. Ressurreição é mensagem de vida plena que precisa ser levada adiante, pois assim como a crucificação, também a ressurreição aconteceu pro nobis (por nós).
II — Considerações exegéticas
V. 1: As três mulheres já mencionadas em 15.40 assistiram de longe a crucificação e, de acordo com 15.47, ao menos duas delas também viram onde o corpo de Jesus fora colocado. Neste versículo há algumas questões intrigantes e abertas: O clima da região não impedia que o corpo agora ainda fosse embalsamado? A ideia de poder entrar no túmulo sugere que estava claro que este lugar seria provisório? Neste caso, o que significaria este provisório? São questões abertas. A atitude das mulheres deixa evidente um detalhe capital, a saber, que para elas Jesus estava morto. Nem sinal de uma morte aparente ou temporária.
V, 2: Este versículo procura apenas situar no tempo a ação introduzida acima: … ao despontar do sol. Me parece que não há lugar para especulações como, por exemplo, aquela segundo a qual elas teriam escolhido esta hora para não serem vistas. As mulheres não estavam sonhando ou sonâmbulas. Muito pelo contrário, em uma hora bem determinada elas se dirigem ao lugar onde Jesus fora colocado.
V. 3: A pergunta feita pelas mulheres sem dúvida causa espécie, afinal, duas delas tinham visto o lugar e provavelmente devem ter divisado, ainda que de longe, o tamanho da pedra. Em si a pergunta aqui já não cabe mais. É muito provável que esta pergunta é mais uma questão de estilo de quem escreveu para sublinhar o caráter da ressurreição.
V. 4: A surpresa das mulheres é muito grande, pois a pedra, muito grande (l), estava revolvida, fora do lugar, deixando aberta a entrada do túmulo. Esta surpresa é descrita com o verbo ANABLÉPEIN que significa que alguém que não enxergava, de repente, passa a ver. Isto é, as mulheres estavam tão pasmadas como alguém que, até então, fora cego. Mais uma vez se procura destacar que o evento da ressurreição não estava previsto, programado, calculado.
V. 5: A surpresa aumentou ainda mais, quando, dentro do túmulo, em lugar de Jesus encontraram um anjo trajado de branco e sentado ao lado direito. O tipo de surpresa e temor que toma as mulheres de assalto neste momento, é característico He encontros que seres humanos têm com o divino (Is 6.5; Lc 2.9). Ainda assim, também aqui o importante não é o encontro ou a visão em si e como tal, mas sim a mensagem que este anjo (mensageiro!) tem a transmitir.
V. 6: Aqui transparece uma fórmula cristológica que já muito cedo fazia parte do credo cristão e na qual a identidade entre o crucificado e o ressurreto fica evidenciada. São usadas três designações para o Jesus terreno: Jesus, o nazareno e o crucificado, para em seguida dizer: Ele ressuscitou. E quase como observações à margem as mulheres são instadas a olharem o lugar onde tinham colocado o corpo de Jesus.
Marcos não relata o processo da ressurreição nem ao menos dá qualquer pista para explicar como isso poderia ter acontecido. Muito pelo contrário, o texto procura contar o que já tinha acontecido.
Uma das questões controvertidas e que aparece neste versículo, a do túmulo vazio. Se pergunta, por exemplo, se Paulo conhecia ou não a tradição do túmulo vazio, uma vez que em 1 Co 15.1ss nada se fala a respeito, ou se ele julgou este dado de somenos importância. Com isso se levanta a pergunta pelo papel do túmulo vazio no todo da mensagem da ressurreição. Certamente não há como usar o detalhe do túmulo vazio para provar, com objetividade histórica, a ressureição. Quem se deixou enredar por este tipo de apologia, se deu mal. Se a credibilidade do evangelho de Cristo estiver preso a detalhes deste tipo, então é vã a nossa fé (1 Co 15.17).No terreno histórico o túmulo vazio não prova nada. Isso não significa que não lhe tenha sido atribuído um papel importante no todo dos relatos, ora, antes de mais nada se deseja assegurar a identidade do crucificado e do ressurreto. Jesus não vive apenas em espírito e no céu, mas ele foi ressuscitado, nas palavras do discurso de Pedro: …este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo (At. 2.36b).
V. 7: Este versículo interrompe a fluência da narrativa, interrupção esta indicada pelo ALLÁ. Daí porque se defende a tese de que este versículo não está em seu lugar original e que talvez pertença até ao final perdido do evangelho de Marcos (Baltzer). A pergunta, naturalmente, deve ser, qual o sentido que tem o versículo neste contexto e dois momentos podem ser destacados: 1. Os discípulos só começam a compreender realmente o seu mestre a partir das aparições; agora os olhos lhes são abertos; 2. As aparições aos discípulos faziam parte integrante da tradição cristã e da mensagem da ressurreição desde o início, valendo o mesmo para o papel de liderança de Pedro (1 Co 15.1ss). Para destacar estes detalhes o versículo poderia ter sido inserido neste lugar. Mas, há mais uma observação: Jesus, segundo Marcos, iniciou sua atuação precisamente na Galiléia (1.14), terra dos gentios e a estes fora prometida a salvação (Is 9.1). A intenção é, pois, mostrar que o Evangelho vai além dos limites de um povo. Em outras palavras: Aparições do ressurreto são, simultaneamente, envio. Esta pequena observação nos mostra, ainda, que missão faz parte da essência da Igreja e não é uma opção sua.
V. 8: O que as mulheres enxergam e ouvem é demais para as suas capacidades de compreender; aqui elas estão nos limites humanos do entendimento. A partir disso poder-se-ia justificar o seu silêncio. Por outro lado se sabe que, via de regra, o ressurreto sempre foi proclamado a partir das aparições do ressurreto 1 Co 15.1-8.. Segundo Marcos as mulheres apenas constataram o túmulo vazio e receberam a notícia de que Jesus fora ressuscitado. Além disso sempre de novo é lembrado que o testemunho de mulheres não era válido, daí a observação de que elas silenciaram. Ora, há quem deixe este versículo fora da perícope, encerrando com o recado aos discípulos no v. 7 (cf. Erich Dinkler). Sem dúvida aqui ficam perguntas abertas. Mas, sem invalidar as respostas tentadas, talvez seja lícito tentar um outro enfoque: Será que não se trata do puro medo que se segue ao susto? Ou, será que as mulheres não gostariam de segurar para si esta notícia fantástica?
III — Meditação a caminho da prédica
Ressurreição é o cerne da mensagem cristã. Somente a partir desde evento é que, na retrospectiva, se podem imaginar tanto os evangelhos como a atividade missionária. Um dos testemunhos mais antigos está em(1 Co 15.5-8).Aqui está resumido de forma clássica o querigma cristão. Antes, porém, desta formulação está o evento da ressurreição e este evento é a pedra de toque para a cristandade.
Isso não significa que tenhamos que nos deixar enredar por uma apologética na tentativa de comprovar com argumentos historicamente objetivos este evento. Também aqui o caminho é por baixo: Não há argumentos historicamente defensáveis, começando pelo testemunho de pessoas que justamente não eram as mais destacadas na sociedade de então — pescadores e mulheres! É a partir deste testemunho, entretanto, que a mensagem da nova vida em Cristo ecoa por toda a terra, ainda que nesta caminhada, antes de mais ninguém as testemunhas sempre de novo tenham se afastado de seu senhor e mestre.
A ressurreição é um protesto contra a morte, um protesto do próprio Deus, criador e doador da vida. Esta mensagem encerra dois aspectos que não podem ser ignorados um em favor do outro; os dois são parte de um todo. A mensagem da ressurreição anuncia que a morte que cerca e marca a humanidade já não é mais a derrocada do ser humano. Isso abre espaço para a esperança que vai além do nosso campo de visão demarcado pelos túmulos em nossos cemitérios. Esta mensagem grandiosa deve ser pregada a plenos pulmões. Cristo é as primícias dos que dormem (1 Co 15.20). O mesmo Deus que confessamos ser o criador do céu e da terra, tem e usou o seu poder para ressuscitar o seu filho. As mulheres que foram ao túmulo ficaram estupefatas diante desta mensagem e talvez a nossa estupefação não aconteça, entre outros, porque o decorrer do Ano Eclesiástico já nos assegura que depois da Sexta-feira da Paixão vem o Domingo de Páscoa e porque nós, pregadores, encontramos nesta mensagem tantas dificuldades racionais que não conseguimos pregar esta mensagem com o ímpeto que lhe é inerente. É necessário repetir com o apóstolo Paulo: Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens (1 Co 15.19). Entretanto, a recíproca também é verdadeira e com isso estamos no segundo aspecto a ser destacado.
A mensagem da ressurreição não se restringe à proclamação de uma nova vida, à esperança pós-morte. Se a ressureição é um protesto contra a morte, então isso não significa que ela o seja somente em relação à morte física de cada um, mas sim, é um protesto contra todos os tipos de morte que estão aí e caracterizam o mundo e a (dês) convivência humana.
A morte se manifesta ali onde pessoas não têm espaço para a sua vida:
Não têm espaço porque o dinheiro que ganham não serve nem para morrer e nem para viver;
Não têm espaço porque os alimentos são, antes de tudo, objeto do lucro e da cobiça, obrigando a maioria da população mundial a uma espécie de jejum permanente (o fato de o FMI decidir o preço do pão que vai ou deveria ir para a mesa dos brasileiros é altamente ilustrativo!);
Não têm espaço porque o mundo modernizado e tecnizado, à revelia da tese de que o desenvolvimento e a técnica vêm em benefício de todos os homens, o marginaliza da vida e de todos os seus processos;
Não têm espaço porque a terra, criada e doada por Deus para manter vida plena, vai sendo aglutinada nas mãos de sempre menos pessoas e grupos;
Não têm espaço porque o progresso invade suas terras, suas matas e seu meio ambiente de sobrevivência;
Não têm espaço porque seu clamor e sua dor não são ouvidos e nem tomados a sério por seus semelhantes;
Não têm espaço porque a saúde e a medicina se transformaram em privilégios de quem tem dinheiro e não são direito de quem precisa.
Poderíamos continuar desfilando os sinais de morte. Cada pregador deverá identificar os sinais que rodeiam e infestam a comunidade em que vive e atua.
Deus não se deixou vencer por aqueles que lhe decretaram a morte e ele não quer que a sua criatura se deixe vencer por aqueles que decidiram e decidem que só uma minoria tem direito à vida. Por isso a mensagem da ressurreição encerra um desafio: Protestar, a partir do protesto de Deus, contra a morte em todas as suas formas de aparição; falar e agir contra a morte e a favor da vida. Protestar é levantar sinais de vida plena desejada por Deus em meio a um mundo marcado pela morte.
A cristandade, no decorrer da história e não apenas em períodos determinados, vai a suas igrejas como as mulheres foram ao túmulo para prestarem uma homenagem a um amigo morto. Tantas vezes igrejas e catedrais são apenas o sepulcro, o túmulo de Jesus. Por isso é bom e é extremamente necessário que Páscoa seja a oportunidade de bradar bem alto: Ele não está aqui, ele está adiante de nós, ele está a caminho!
Por outro lado, um alerta — assim entendo — se faz necessário: Muitas vezes e em muitos grupos cristãos se pensa que a ressurreição anulou a cruz e o sofrimento, tanto que o caminho dos cristãos e da Igreja deveria ser o caminho da glória. Alguns programas ditos evangélicos na televisão sugerem isso com clareza e constantemente. Entretanto, se o ressurreto é idêntico ao crucificado, então isso significa que a cruz não está anulada, mas que existe uma relação dialética entre o que se espera (um novo céu e uma nova terra) e o que se vive hoje, aqui e agora (um mundo e uma humanidade marcados pelo pecado e pelo distanciamento de Deus). Em outras palavras, a partir da ressurreição também a cruz adquire um sentido de salvação, o que não anula a sua crueldade.
Por que esta observação? Porque facilmente a Páscoa se transforma em um discurso de glórias e aleluias que fogem do mundo e que não têm espaço para o homem sofredor deste mundo. A esperança pelo futuro é que deve nos ajudar a trilhar conscientemente o caminho da cruz.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, a mensagem de nova vida e vida plena concretizada na tua ressurreição é grandiosa demais para nós compreendermos em toda a sua profundidade e dimensão. Também por isso nossa fé e nossa ação muitas vezes mostram tão pouco desta esperança e promessa de vida nova. Tantas vezes queremos guardar para nós esta mensagem e esquecemos que o teu protesto manifestado na ressurreição é também um protesto contra a morte dos outros. Senhor, perdoa e ajuda-nos. Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Neste dia, em todas as partes do mundo ecoa a mensagem da Páscoa. Obrigado por podermos ouvir esta boa notícia. Transforma tua cristandade a partir dela, enchendo o seu coração e entendimento com esta boi nova, para que ela pregue e viva com alegria esta novidade de vida, ajudando sempre mais pessoas a participarem e partilharem esta realidade. Por Jesus Cristo que, contigo e com o Espírito Santo, vive e reina eternamente. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Agradecimento pela promessa de vida plena no reino definitivo de Deus; intercessão por todos os que são tolhidos em sua liberdade de viver (cf. a meditação) uma vida digna já aqui e agora; pedindo para que Deus transforme e use a sua cristandade como instrumento para criar espaços de vida; pedir por esperança para todos os desesperados, quer individual ou coletivamente, seja por sofrerem em corpo ou espírito; pedir que Deus não permita que a Páscoa se restrinja apenas a um dia determinado.
V — Bibliografia
– BALTZER. K. et alii. Meditação sobre Marcos 16.1-8. In: Göttinger Predigtmeditationen. v. 27. cad. 2. Göttingen, 1973.
– DEHN, G. Meditação sobre Marcos 16.1-8. ln: Georg Eichholz (ed.): Herr tue meine Lippen auf. v. 1. 3.ed. Wuppertal-Barmen, 1957.
– DINKLER, E. Meditação sobre Marcos 16.1-7. In: Göttinger Predigtmeditationen. v. 44. cad. 2. Göttingen, 1955.
– DREHER, M. N. O Segundo artigo — terceira parte. In: Proclamar Libertação (Catecismo). São Leopoldo, 1982.
– KLOSTERMANN, E. Die Evangelien – l Markus. In: Handbuch zum Neuen Testament. v. 2. Tübingen, 1907.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Markus. 5. ed. Göttingen, 1949.
– VOIGT, G. Meditação sobre Marcos 16.1-8. In: -. Derschmale Weg. Göttingen, 1978.