Prédica: Mateus 20.1-16a
Autor: Friedrich Gierus
Data Litúrgica: Domingo Septuagesimae
Data da Pregação: 03/02/1985
Proclamar Libertação – Volume X
l — A parábola no contexto
A perícope é uma parábola de Jesus, matéria exclusiva do evangelista Mateus. Ele localizou a parábola entre a passagem intitulada O perigo das riquezas que termina com o dito: Muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros e a passagem na qual Jesus, anunciando pela terceira vez sua morte e ressurreição, se volta a Jerusalém em função de sua obra salvífica que lhe era necessário (Mt 16.21) levar ao fim.
Presume-se que o evangelista viu na parábola uma resposta de Jesus à pergunta de Pedro: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos! Que será pois de nós? — uma resposta que seria então um alerta diretamente aos discípulos para não se preocuparem demais com o galardão, porque no reino dos céus a escola de valores seria diferente da dos homens. Neste mesmo sentido evolui o diálogo que Jesus em seguida tem com os discípulos (Mt 20.20-28), a partir do pedido da mãe de Tiago e João. A conversa culmina na frase: Quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo (20.27). E finalizando, Jesus coloca seu próprio procedimento de servir — ao dar a sua vida — como exemplo de atuação e comportamento a ser imitado pelos discí¬pulos.
II — A parábola em sua concepção original
Voltando para trás do contexto criado pelo evangelista e, procurando o ponto culminante, verificamos que o dito sobre os primeiros e últimos no v. 16a representa uma conclusão secundária, porque o clímax não é o fato de os últimos terem recebido em primeiro lugar o pagamento e, em seguida, os outros até aos primeiros. Neste caso a parábola poderia ter terminado com o v. 8! Mas ela continua e o clímax se encontra no v. 15! Portanto, o v. 16a é um dito isolado que indevidamente foi colocado (por Mateus?) como conclusão final da parábola. Já dissemos: A questão dos primeiros e dos últimos é um traço insignificante. Porque o motivo da queixa dos primeiros não foi, que os colegas, que trabalharam apenas durante a última hora do dia receberam seu pagamento em primeiro lugar, mas sim, o fato de eles terem recebido o mesmo salário como eles que aguentaram o dia inteiro no serviço duro e suportaram a fadiga e o calor do dia (v.12).
A queixa conduz ao ponto alto da parábola: A devida resposta em forma de três perguntas:
a) Não combinaste comigo um denário? (v. 13)
b) Não me é lícito fazer o que quero do que é meu? (v. 15a)
c) São maus os teus olhos porque eu sou bom? (v. 15b)
Nestas perguntas transparece a intenção da parábola: A crítica dos trabalhadores que se sentem injustiçados está sendo rechaçada com perguntas que, honestamente respondidas, dão razão ao dono da vinha. Com isso é justificado o procedimento do patrão.
Visto assim, a parábola se dirige aos críticos de Jesus, aos fariseus e escribas, que não aceitaram o comportamento solidário de Jesus em relação aos publicanos e pecadores.
A parábola, portanto, originalmente é uma mensagem que:
a) defende a justiça de Deus (Amigo não te faço injustiça v.13).
b) chama a atenção para a soberania de Deus (Não me é lícito fazer o que quero do que é meu? v. 15);
c) faz entender o amor de Deus que se preocupa com os atrasados, e por isso prejudicados (Quero dar a este último, tanto quanto a ti v. 14).
d) critica os que de olhos maus (v. 15) somente enxergam as vantagens que outros têm, sem no entanto valorizar o que eles mesmos receberam.
Esta mensagem justifica as atitudes de Jesus junto aos perdidos, desprezados e oprimidos. Como enviado de Deus, Jesus transmite o amor de Deus que se coloca ao lado dos pequenos, aceita os fracassados e dá esperança aos oprimidos (Lc 4.18ss).
Joachim Jeremias, em seu livro As Parábolas de Jesus apresenta diversas interpretações que a nossa parábola sofreu no correr da história e mostra que todas elas alienaram a intenção original do texto (p. 229ss). Por isso convém interpretar a parábola por si, sem o versículo 16a e, fora do contexto, no qual o evangelista a colocou. Sobretudo evite-se a alegorização que tenta dar a cada traço um sentido mais profundo.
III – O texto
O reino dos céus é semelhante (v. 1) é fórmula introdutória (Mt 13.31;33;44;45; 18.23 e outros). É óbvio que o reino dos céus não é semelhante a um dono de casa em si, mas sim, no reino dos céus valem os critérios que o dono da casa estabeleceu no ato do pagamento de seus operários.
O porque no início do v. 1 quer ser introdução à parábola que, de acordo com o evangelista Mateus é uma ilustração do dito Mt 19.30. Já mostramos acima que com isso não se corresponde à intenção original da parábola.
O modo de procedimento no assalariar trabalhadores é praxe na época de Jesus e, sendo que o dono sai diversas vezes à procura de operários, pode-se presumir que ele precisa toda mão-de-obra que encontra devido à época da colheita. As uvas têm que ser colhidas enquanto o tempo for propício. Por isso a intensa procura de trabalhadores que começa já pela madrugada.
O salário de um denário foi o ordenado comum para trabalhadores que fizeram a jornada de serviço de um dia (Tobias 5.15). O pagamento, de acordo com a lei mosaica, deve ser efetuado diariamente e antes do pôr do sol (Dt 24.14ss Lv. 19.13).
É importante observar que o dono somente fixa e combina o salário com os que emprega em primeiro lugar (v. 2). Os empregados da terceira hora (v. 3) apenas recebem a promessa de serem remunerados de uma maneira justa (Vos darei o que for justo v. 4). A observação do v. 5 de que o dono em relação aos trabalhadores da sexta e da nona hora procedeu da mesma forma, deixa presumir que a remuneração ficaria nos mesmos critérios como indicado no v. 4. Somente em relação aos últimos nem se fala de salário. Ainda assim eles aceitam o convite para o serviço e vão trabalhar na vinha. A respeito da resposta deles: Ninguém nos contratou (v. 7) é de observar que isso não é uma desculpa barata para encobrir a preguiça deles! Ninguém nos contratou significa mesmo que ninguém achou eles aptos para o serviço. O fato de eles não terem estado na praça nas outras vezes que o dono veio em busca de trabalhadores também não quer dizer que durante este tempo jogaram cargas, foram pescar ou fizeram outra coisa qualquer para fugir do serviço. Quem sabe, estavam se colocando a caminho para procurar trabalho e, já que não acharam nada, voltaram para a praça e, graças à bondade do dono da vinha, conseguiram, pelo menos, trabalho para uma hora.
Até aqui a parábola apresenta traços da vida normal conhecida pêlos ouvintes. A partir do v. 8 inicia a segunda parte da parábola. A ordem do dono: Paga os trabalhadores e começa com os últimos, chama a atenção dos ouvintes. O motivo dessa ordem não é simplesmente uma extravagância do dono que nesse dia quer que as coisas sejam diferentes. Ao contrário, os últimos são remunerados em primeiro lugar para evidenciar que recebem o denário correspondente a um dia de serviço. Aliás, eles decerto não esconderam sua alegria ao receber uma gratificação, digamos, um salário tão generoso. A partir daí é evidente que os demais começam a calcular: Eles receberam por uma hora de serviço um denário; pela lógica devemos receber 3 vezes, 8, ou até 10 vezes mais. Cada um de acordo com o tempo de serviço que prestou. O ouvinte da parábola somente pode concordar com o raciocínio desses trabalhadores! Mas a decepção é grande no momento em que se verifica que todos recebem apenas um denário. A decepção se transforma em revolta. Acusa-se o dono de injusto. Neste momento chegamos ao auge da parábola. Para o ouvinte, que evidentemente toma partido dos revoltados, se levanta agora a pergunta: Como o dono vai sair dessa?
A reação do dono é uma resposta em forma de três perguntas. E, como já observamos acima, eles, sendo honestos, somente podem dar razão ao dono, ainda que a lógica e a justiça humanas falem outra linguagem!
Acontece que os revoltados na parábola não dão resposta nenhuma. A parábola termina com as três perguntas. Nessas perguntas fica transparente que Jesus aguarda uma resposta por parte dos ouvintes. Daí podemos localizar o Sitz im Leben: Jesus identifica os revoltados de descontentes com os fariseus, seus inimigos que criticam a benevolência e os atos de solidariedade que Jesus demonstrou em colocar-se ao lado dos assim chamados publicanos e pecadores: Mt 9.10-13; Lc 7.36-50; 19.1-10 e outros.
IV — O escopo
No reino dos céus há critérios de justiça e amor que fogem da lógica do direito e do entendimento humanos. Deus é soberano. Sua justiça vale para todos os homens, seu amor, porém, é voltado espe¬cialmente para os pequenos, marginalizados e oprimidos.
V — Reflexão e sugestões para a prédica.
a) Os ouvintes
Estamos pregando a uma comunidade que se reúne em função do culto. Não se trata, portanto, de críticos que contestam atitudes de Jesus. No entanto, é relativamente fácil atualizar a parábola.
Temos mercado de trabalho. Há muitas pessoas que procuram um emprego. Uns acham serviço sem grandes dificuldades; outros estão passando ma!: ninguém nos contratou!. Os mais prejudicados são as pessoas mais idosas, são as que não têm boa aparência (diga: são negros ou índios!) ou simplesmente não servem.
Os ouvintes hoje conhecem os problemas da falta do emprego, da política salarial, da problemática do salário em si — o salário mínimo ainda atende às necessidades de um operário? —Com este pensamento já passamos para o 2º. passo:
b) Os critérios da justiça humana
A luta pelo salário justo e condigno favorece a formação de partidos e classes. O que é justo? O que é condigno? O empregador pensa diferente do operário. O deputado diferente do homem da rua. Os tecnocratas de uma multinacional conhecem outros critérios do que o dirigente de uma microempresa. Uns defendem: Cada um merece o que produz. Outros lutam pelo tratamento e salário igual para todos, também para as mulheres.
No âmbito da Igreja conhecemos opiniões semelhantes. Uns acham que p. ex. a contribuição proporcional seria o mais democrático e socialmente justo. Outros defendem (e com que sucesso!) a contribuição igual para todos com o slogan: Os mesmos direitos — as mesmas obrigações! Por isso a mensalidade tem que ser mantida num nível baixo para que os pobres também possam dar a sua contribuição… Há outros exemplos da justiça humana: O pai que manda sua filha para a rua proibindo-lhe a casa porque espera um filho antes de casar e, que vergonha. (!), de um homem de cor! — Uma medida justa e aprovada pelos vizinhos, membros da IECLB.
Os índios, que por natureza são preguiçosos — pelo menos os brancos o afirmam! — não necessitam tanta terra; por isso é senso comum grilar as terras deles, transferi-los a áreas menos produtivas e discriminá-los culturalmente. (O índio não precisa estudar – índios são parasitas!);
Os critérios para a justiça humana são uma questão de ponto de vista. Em geral favorecem os fortes — porque são ditados pelos fortes! Os critérios para a justiça de Deus, porém, conhecem um ponto de vista apenas: o do amor que se volta ao pequeno, ao desprezado.
c) A justiça de Deus questiona
Em Jesus Cristo, Deus revela uma nova escala de valores, uma escala que é ditada por um amor soberano (Não me é lícito fazer o que quero do que é meu?). Os menos favorecidos estão no centro do interesse. O bem-estar do homem está acima do interesse pelo capital, acima do interesse pelo progresso, acima do interesse pela opinião pública. Os fortes são questionados em suas leis, seu comportamento, sua moral — Por que são maus os teus olhos?. O amor se coloca ao lado dos atrasados. Os trabalhadores também têm que viver a precisam do salário mínimo que garanta a sobrevivência! Não há critérios nem olhos maus que possam impedir essa livre e soberana vontade de Deus que quer dar mais do que o direito humano permite.
Perguntamos: A Igreja está disposta e livre para dar mais, p. ex., os índios do que a sociedade, digamos, a FUNAI permite?
As comunidades da IECLB estão livres e se sentem impelidas pelo amor de ir, com seu planejamento e trabalho, além de suas fronteiras que em geral são delineadas pelo orçamento fixo e garantido, pelo fichário, pela tradição cultural, por conceitos sociais?
d) As respostas continuam abertas
Os atos de solidariedade com os pecadores levaram Jesus à cruz. No fim era essa a resposta que os inimigos deram às perguntas que o dono da casa levantou na parábola. No entanto, para nós continuam abertas.
Que resposta teremos hoje como comunidade, como indivíduo?
Indiferença? (Não me reconheço nessa parábola. Isso não é comigo!) Indignação? (Eu não tenho olhos maus!; Quem está errado não sou eu!) Penitência? (Ë preciso reassumir o desafio do amor de Deus com todas as consequências!)
A prédica deve levar o ouvinte ao autoquestionamento e encorajá-lo a redefinir suas atitudes com os irmãos atrasados. Sobretudo, deve ficar bem claro que não somos Deus, o soberano, mas sim os seus encarregados que dependem dele.
Como leitura bíblica no altar recomenda-se o texto do AT: Jr 9.23-24, texto este que poderá ser utilizado na prédica como passagem de referência que questiona sabedoria, força e riqueza do homem e, antes de mais nada, os critérios humanos que regem o jogo da sociedade hoje.
IV — Subsídios litúrgicos.
1. Confissão de pecados: Nosso Senhor, luz dos povos, juiz dos poderosos e pai dos aflitos, estamos reunidos para ouvir a Tua mensagem de amor. Mas antes procuramos o teu perdão pelo egoísmo que só enxerga os próprios interesses, pelo comodismo que não quer lutar contra a injustiça reinante em nosso redor, pela ignorância que não se incomoda pela compreensão dos outros. Perdoa-nos, Senhor, e dá-nos coragem para abrirmos mão do nosso passado porque o futuro é teu?. Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Nós te agradecemos, Senhor, que tu nos chamaste para ouvir tua palavra e nos dás oportunidade de receber a tua orientação para as nossas vidas: Abre as nossas mentes e corações para que, ouvindo, nos tornemos praticantes; para que, cantando, sejamos alegres na comunhão dos irmãos; para que, orando, sejamos honestos na procura da tua verdade. Em nome de Jesus, nós te pedimos. Amém.
3. Oração final: Senhor, e, por Jesus Cristo, nosso Pai! Tu és diferente em teu agir. Teu amor tem profundidade imensurável. Tua justiça está cima de toda a compreensão humana. Por isso temos dificuldade de atender ao teu chamado e viver de acordo com a tua vontade. Preferimos seguir os nossos próprios caminhos, formulando os nossos próprios critérios de vida, de justiça e de amor. Tu, porém, nos mostraste que toda a nossa força, sabedoria e poder são corruptos, incompetentes e podres — onde não procuramos a honra do teu nome, onde não visamos o bem-estar do nosso irmão pequeno e fraco. Liberta-nos para que possamos servir-te com novo ânimo. Sabemos que Tu vais à nossa frente. Dá-nos coragem de seguirmos teus passos na obediência até à cruz para colocarmos sinais de teu amor, de tua justiça e de tua paz. Pedimos petos legisladores, governantes, pelos juízos, enfim, por todos os que fazem e executam as leis, para que se achem soluções para os problemas graves que castigam o nosso povo, como a fome, o desemprego, a injustiça social, a poluição. Pedimos pela juventude para que ela encontro em ti, Senhor, o ponto de orientação e para que sua vontade de conquistar o futuro receba a orientação de Tua palavra. Pedimos pelos fracos, abandonados, tristes, Idosos e doentes: Deixa-os encontrarem em nós a luz, o consolo, o apoio, ajuda e esperança que tu nos transferiste ao nos incumbires com a missão de sermos teus seguidores. Por fim, te pedimos pela tua Igreja para que ela se deixe questionar pela tua palavra em sua missão e vida. Senhor, dá o teu Espírito Santo para que a Igreja tenha autoridade de colocar sinais de teu reino, de tua justiça, de tua paz, de tua salvação. Amém.
VII – Bibliografia
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Matthäus. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. v. 1. 4. ed. Berlin, 1968.
– JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. São Paulo, 1976.
– SCHWARTZ, S. Meditação sobre Mateus 20.1-16a. In: Homiletische Monatshefte. Ano 54. cad. 3. Stuttgart, 1978.
– VOIGT, G. Meditação sobre Mateus 20.1-16a. In: Der Schmale Weg. Göttingen, 1978.