Prédica: Mateus 25.31-46
Autor: Werno Stiegemeier
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 17/11/1985
Proclamar Libertação – Volume: X
l — Introdução
Onde encontramos Jesus? No poder, na riqueza, no luxo, na força, numa doutrina cristã pura, livre de qualquer heresia? Parece que a tendência natural do homem é identificar Jesus com acontecimentos extraordinários e sobrenaturais. Logicamente também se espera encontrá-lo em cerimônias religiosas bem organizadas, como. por exemplo, em cultos nos quais haja perfeita harmonia entre prédica, liturgia e hinos; em belas cerimônias de casamento, com palavras, músicas e hinos que mexem com o sentimento de todos (e é claro que tudo isto deve acontecer numa grande e luxuosa igreja muito bem ornamentada); em apresentações de corais com as vozes rigorosamente selecionadas; em concertos com instrumentistas de primeira categoria; em concílios muito bem organizados e bem sucedidos e em muitos outros espetáculos religiosos.
Mt 25.31-46 nos apresenta um Cristo diferente, bem mais humilde e pobre, despojado de qualquer poder, riqueza, luxo e boa aparência exterior. Jesus se apresenta como aquele que está escondido nos famintos, sedentos, forasteiros, doentes, presos e naqueles que não têm o que vestir.
II — Algumas considerações exegéticas
Para facilitar o estudo deste texto, vamos abordar inicialmente algumas poucas questões mais formais e técnicas para depois entrar na discussão de problemas teológicos e de conteúdo.
Em Mt 24 e 25 encontramos um dos blocos de parábolas deste evangelho. Quem olha nosso texto nesta sequência, facilmente terá a impressão de estar lendo mais uma parábola. Na verdade, porém não se trata deste género, mas sim de uma alocução de revelação apocalíptica (cf. Voigt, p. 485). Somente os vv. 32b e 33 possuem caráter de parábola.
A maior parte do texto é constituída do diálogo do Filho do Homem (Rei-Juiz) com os justos, respectivamente injustos. O diálogo foi colocado dentro de uma moldura que possui a finalidade de mostrar em que situação este transcorre. Temos assim a seguinte estrutura:
Vv. 31-33: introdução;
34-40: diálogo do Rei-Juiz com os justos;
41-45: diálogo do Rei-Juiz com os injustos;
46: conclusão.
Já que o texto é simples e de fácil compreensão, limitamo-nos a estas poucas considerações, para darmos maior ênfase às questões teológicas, já que ali nos deparamos com perguntas muito importantes.
III — Aspectos teológicos
1. A quem se refere o PANTA TA ETHNÉ do v. 32? Quem es¬tá sendo julgado? Os gentios? Os cristãos? Todos os povos? Segundo a opinião de Jeremias (p. 206s), Jesus aqui estaria falando do julgamento dos pagãos. Em Mt 10.32s ele prometeu falara favor dos que o confessam diante dos homens. Em vista disso alguém poderia perguntar: E o que acontecerá aos que não te conheceram? Com que critério serão julgados? A resposta de Jesus seria: Também com eles eu me encontrei no próximo necessitado. Tudo que eles fizeram a uma pessoa carente o fizeram a mim.
A grande maioria dos exegetas, no entanto, não concorda com esta interpretação. E realmente não existe uma base sólida que permita sustentá-la. Sem o recurso de uma imaginação muito fértil, não é possível fazer tal afirmação. Perguntamos: Por que haveria diferentes critérios no julgamento? Por acaso alguns seriam julgados segundo a sua fé e os outros de acordo com suas obras de misericórdia? Concluímos pois, que o julgamento do qual Jesus fala atinge todos os homens sem distinção. Dos cristãos se espera que vivam de acordo com a sua fé; pois a fé sem obras é morta. Se os pagãos, que pratica ram o bem, também creram em Jesus, mesmo sem conhecê-Io, 4 uma questão que será abordada no item seguinte.
2. Qual é a situação daqueles povos que nunca ouviram falar de Jesus? Como eles serão julgados? Se ninguém vem ao Pai na não ser por Jesus Cristo (Jo 14.6), haverá salvação para eles? Há teólogos que são da opinião de que não importa conhecer ou pronunciar o nome de Deus ou de Jesus. O que importa é cumprir a sua vontade. E quem ajuda e se dedica aos miseráveis em suas aflições e sofrimentos, está cumprindo aquilo que Deus quer. Ragaz (p. 23) afirma que Deus está onde se pratica a justiça. Desta forma pode ocorrer uma inversão: Nem sempre Deus está ali onde pessoas pensam conhecê-lo e adorá-lo quando confessam sua fé. Por outro lado, ele poderá ser encontrado onde não se pronuncia seu nome; Deus até pode estar onde aparente¬mente é negado e combatido. (Ragaz, p. 22)
O julgamento não compete a nós. Não precisamos ensinar a Deus como julgar; ele o fará com justiça. Mas certamente haverá muitas surpresas naquele dia. Jesus mesmo disse: Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. (Mt 7.21) Realmente tudo dá a entender que muitos daqueles que esperamos ver à direita do Rei-Juiz estarão à sua esquerda, e outros que nós, em nosso julgamento, colocamos à esquerda, estarão à sua direita. (Em que lado estaremos nós?)
3. Quem são os pequeninos irmãos de Jesus? Somente os discípulos ou todos os cristãos? Ou até todo e qualquer sofredor, seja ele crente ou não? Também nesta questão não há unanimidade de opinião entre comentaristas e teólogos. Os autores das obras que consultamos, no entanto, não hesitam em ver nos pequeninos irmãos de Jesus todos os oprimidios, rejeitados, desprezados e necessitados, mesmo que não sejam seguidores de Jesus. A favor desta interpretação fala o fato de os julgados não terem estado cientes de que suas obras de caridade foram feitas ao próprio Cristo. Se se tratasse de um bem feito aos discípulos, os aceitos pelo Rei-Juiz compreenderiam com maior facilidade que foi ao próprio Cristo que o fizeram.
Precisamos, no entanto, ter o cuidado de não transformar a pobreza e a miséria numa condição que favorecesse a aceitação por parte de Cristo, como se um necessitado merecesse automaticamente o amor de Jesus. A pobreza não é uma virtude, assim como o bem-estar e a riqueza também não o são. O amor de Jesus é uma dádiva que não pode ser conquistada. Amor é sempre uma doação. Jesus se identifica com as pessoas mencionadas nos vv. 35 e 36, respectivamente 42 e 43, por serem semelhantes a ele em sofrimento. O sofredor coloca-se ao lados dos sofredores, solidariza-se com eles.
4. Como acontece o julgamento? Todos deverão prestar contas de seus atos num acerto final, ou o julgamento já acontece ao longo da história? Partindo da experiência humana, devemos dizer que o julgamento é um processo que nos acompanha ao longo de nossa vida. Todo ser humano possui uma noção sobre o que é justo e o que é injusto. Aquele que pratica o mal ou deixa de se engajar pelo bem, sabe de seu procedimento condenável. Seu próprio conhecimento de justiça o condena. Uma prova disso é o grande esforço que as pessoas fazem para se auto-justificar. Quem sente o peso da condenação, procura justificar-se de qualquer maneira. Certamente esta necessidade é maior diante de si mesmo do que diante dos outros.
Esta visão de julgamento, porém, de forma alguma exclui o juízo final. O julgamento ao longo de toda a existência não é nada mais do que a antecipação parcial do julgamento final. Tão bem co-mo a aceitação do amor de Deus nos permite experimentar, já no presente, fragmentos do futuro Reino de Deus, também a condenação final marca, já agora, a vida dos que não se submetem à boa vontade de Deus.
5. A grande redescoberta de Lutero foi a justificação do pecador pela graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo. E esta redescoberta não está baseada em ideias e imaginações do Reformador, mas sim na Sagrada Escritura. São inúmeros os textos bíblicos que falam do amor de Deus que salva, independentemente das obras. Mas como encarar Mt 25.31-46? Não temos aqui um texto que exclui completamente a graça e fala apenas das obras?
Há vários fatores que vão contra este pensamento:
a) O Rei-Juiz convida os justos para entrarem no Reino que lhes está preparado desde a fundação do mundo. Não se trata, portanto, de uma conquista. O Reino é obra de Deus. Ele mesmo o preparou desde a fundação do mundo para os seus escolhidos.
b) As obras de misericórdia não foram planejadas com a finalidade de obter uma recompensa. Os que são convidados a entrar no Reino nem sabem que fizeram o bem ao próprio Senhor. É uma surpresa para eles, de modo que perguntam: Quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? ou com sede e… (vv. 37-39).
Na literatura dos rabinos e dos egípcios se fala que as pés soas serão julgadas de acordo com as suas obras. Lá, no entanto, os julgados demonstram orgulho e se gloriam de seus feitos e realizações, enquanto que aqui os julgados nem sequer sabiam que suas obras foram tão importantes.
As obras de misericórdia dos justos de nossa perícope são fruto de uma nova mentalidade, de uma nova maneira de ser, de uma vida transformada. Aquele que foi atingido e envolvido pelo amor de Cristo, é liberto para uma ação espontânea, sem segundas intenções. Quem acha ser necessário conquistar sua salvação através das obras, não consegue agir tão livre e espontaneamente. Suas preocupações são um obstáculo que impede a concretização da verdadeira caridade. Somente quem não precisa garantir sua própria salvação é capaz de agir tão despreocupadamente como os que são convidados, em nosso texto, para entrar no Reino. Gente realmente engajada não sabe de suas próprias obras, pois as suas obras os acompanham (Ap 14.13).
c) Nenhum texto bíblico nos permite definir a fé como simples conhecimento e aceitação de algumas verdades abstratas. Fé sempre envolve a pessoa toda, tanto o cérebro quanto os pés e as mãos. A verdadeira fé se concretiza na prática do amor ao próximo. A fé, se não tiver obras, por si só está morta. (Tg 2.17)
IV – Meditação
1. O que significa dar de comer aos famintos, de beber aos sedentos, hospedar o forasteiro, vestir aquele que está nu, visitar os enfermos e presos? Dar um pedaço de pão a uma criança faminta que bate à porta de nossa casa? Dar uma peça de roupa velha ao que está com frio? Visitar os doentes e presos com a Bíblia debaixo do braço? Dar, por uma noite, uma cama ao que não sabe onde dormir, para despedi-lo no outro dia? Fazer a campanha do agasalho, promover um chá beneficente ou um baile, cujos lucros reverterão em benefício da APAE, de uma creche, de um asilo de velhos ou de um orfanato? É isto que os ricos geralmente fazem para poderem ficar com a cons¬ciência tranquila e orgulhar-se de suas obras de caridade. Há aqueles que só ajudam quando seus nomes e fotografias saem no jornal.
Mesmo vendo que nestas formas paternalistas de prestar auxílio o sofrimento de algumas pessoas é temporariamente amenizado, não podemos reconhecer nelas um meio que possibilite a solução definitiva da pobreza e da miséria em geral. São apenas paliativos que, muitas vezes, em vez de contribuir, até prejudicam e impedem as propostas que visam uma transformação ampla e profunda de toda a estrutura social. Dar esmola e praticar outras ações semelhantes jamais irá resolver o problema.
Mas não é esta, muitas vezes, a única coisa que nos resta fazer? Só denunciar injustiças e pedir uma reforma social também não resolve! Até que conseguimos algo neste sentido, o pobre Lázaro já poderá ter morrido na frente da porta de nossa casa. Parece-nos, portanto, que é necessário atacar as duas frentes ao mesmo tempo. Precisamos pedir e lutar por soluções profundas e verdadeiras, mas ao mesmo tempo não podemos esquecer aquele que depende de uma ajuda imediata para poder sobreviver.
2. Jesus Cristo não se envergonha de identificar-se com o faminto, o esmoleiro sujo e esfarrapado que diariamente anda pela cidade, o doente sem assistência, o moribundo que não tem lugar nem para morrer, o sem-nome e sem-pátria, o engraxate, a mulher que vende seu corpo para matar a fome de seu filho, a criança excepcional, a criança sem escola, o louco no hospício, o criminoso que está atirado como um trapo velho numa sela qualquer de nossos presídios. Jesus se identifica com eles e se entende como irmão de todos — tanto deles quanto nosso. Esta sua atitude nos desafia para que também nós os aceitemos, acolhamos e amparemos como nossos irmãos.
3. Ao olharmos para as nossas comunidades e, naturalmente, também para nós mesmos, descobrimos que sempre de novo precisamos ser incentivados para a prática do bem. Vivemos dentro de um sistema em que aprendemos, desde pequenos, a pensar em primeiro lugar — e quase só — em nós mesmos. Apesar de a Igreja ter desperta¬do nos últimos anos para a necessidade de uma pregação que considere os acontecimentos sociais, políticos e econômicos — o que aumentou muito a preocupação em relação aos que sofrem —, precisamos constatar que na prática pouco tem mudado. E, antes de acusarmos os outros, precisamos perguntar o que nós pastores estamos fazendo. Falamos muito em justiça, em amor, em solidariedade e em ajudar o próximo necessitado, mas o que temos feito concreta mente? Será que nós mesmos não falhamos, na maioria das vezes, naquilo que condenamos em membros de nossas comunidades e deles pedimos?
Por que todos temos tanta necessidade do imperativo e mesmo assim ainda não conseguimos nos desprender de nós mesmos? Por que não conseguimos amar e fazer o bem espontaneamente? A que se deve essa dificuldade de amar e de servir, sem segundas intenções? Por que não conseguimos acolher e amparar de uma forma tão despreocupada como no-la apresenta Mt 25.31-46?
Não será este um sinal de que ainda não conseguimos compreender e assimilar, com profundidade, que Deus nos aceita e justifica por graça e por fé? Pois quem realmente compreendeu e vive na graça de Deus, deveria estar livre das preocupações consigo mesmo. Não precisa garantir-se a si mesmo. Deus garante por ele. Deus o ampara e carrega. A sua vida está nas mãos do Senhor. Sim, é desnecessária toda a preocupação por nós mesmos. Não somos escravos; somos filhos livres. E quem é livre deseja que todos os irmãos o sejam. Podemos abrir nossos braços para acolher os que nada são e nada possuem, a não ser sofrimento e dor. Quem reconhece em Deus um Pai bondoso e misericordioso, sabe que o desejo deste Pai é que todos os seus filhos possam ter vida em abundância, vida de bom conteúdo, vida com sentido.
Quem quer conquistar a salvação através de suas obras não consegue sair de si próprio. Tudo o que faz, em última análise, é para si mesmo e não para o próximo, pois vê neste apenas um meio para alcançar sua própria salvação.
Em vista de tudo isto, o acento da prédica não deveria estar no imperativo, no sentido de nós temos que ajudar para não sermos condenados no julgamento final! — mas no anúncio alegre da graça, do amor, da bondade e da misericórdia de Deus, que nos quer libertar para uma ação alegre e espontânea, sem comprometimentos e segundas intenções.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, Pai justo e misericordioso! Reconhecemos que a nossa vida não está em nossas próprias mãos; ela não depende de nós, mas do teu amor e da tua graça. Este reconhecimento deveria libertar-nos de nós mesmos para que pudéssemos caminhar em direção daqueles que vivem na miséria, no sofrimento e na dor. Deveríamos acolher e amparar aqueles que Jesus chama de seus pequeninos irmãos. Mas a preocupação maior sempre gira em torno de nós mesmos. Será que isto não se deve ao fato de termos dificuldades de realmente compreender e aceitar a nossa vida como uma dádiva que tudo nos concedes por tua graça?! Perdoa Senhor, este nosso pecado liberta-nos para um viver voltado a ti e aos nossos semelhantes. Que te possamos servir alegre e espontaneamente, sem esperar recompensas, naqueles que estendem os braços em busca de socorro! Amém.
2. Oração de coleta: Senhor, reúne-nos em torno de tua Palavra, afastando todos os pensamentos que porventura possam desviar nossa atenção. Que ouçamos não somente com os ouvidos e que compreendamos não apenas com as mentes! Que a tua Palavra penetre profundamente em nossas vidas, de modo que sejamos transformados a partir do centro! É o que pedimos em nome de teu Filho Jesus, nosso irmão. Amém.
3. Assuntos para a oração final: agradecer: pela graça, e pela misericórdia de Deus, pelo amor que deseja incluir todos no seu Reino de justiça e paz; pelo fato de Deus querer uma vida digna e abundante para todos os seres humanos, dando, inclusive, todas as condições necessárias para tanto; pedir: que Deus ensine à humanidade a distribuir os bens e as riquezas com justiça, de modo que todos possam ter a vida que ele quer; pelos famintos, sedentos, nus, presos, enfermos e forasteiros: que cristãos e não-cristãos saibam ajudar para que todos eles tenham acesso ao que é necessário para a vida e que se dê este apoio livre e espontaneamente, sem buscar-se a recompensa, tendo, realmente, em vista o bem do próximo; pedir de uma forma especial pelos membros da comunidade local, que também entre eles seja praticado este amor livre de qualquer egoísmo.
V – BIBLIOGRAFIA
– BRAKEMEIER, G. Preleção sobre Mateus. São Leopoldo, 1971 (mimeografado)
– JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. São Paulo, 1976.
– LAUFF, W. Meditação sobre Mateus 25.31-46. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 79. Caderno 8. Göttinqen, 1979.
– RAGAZ, L. Die Gleichnisse Jesu. Hamburg, 1971.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Matthäus. In: Das Neue Testament Deutsch. v. 2. Göttingen, 1968.
– VOIGT, G. Meditação sobre Mateus 25.31-46. In: -. Der schmale Weg. Göttingen, 1978.