I — Preliminares
Na pesquisa recente, o evangelista Lucas não tem gozado de apreço propriamente alto. Dirigiam-se as críticas não às tradições compiladas neste evangelho (estas em boa parte são as mesmas que em Marcos e Mateus), mas sim às ênfases e aos destaques de Lucas, à maneira de ele trabalhar o material da tradição, em suma, criticava-se a concepção teológica manifesta em suas operações redacionais. Acusava-se Lucas de se ter empenhado na dúbia busca por garantias históricas para a fé, de defender uma forma, se bem que primitiva, de sucessão apostólica, de ter substituído a esperança imediata por uma problemática concepção de história da salvação. O terceiro evangelista, assim se afirmava, historizou o evangelho, escrevendo a primeira biografia de Jesus e dando à Igreja institucionalizada o lugar antes reservado ao Espírito Santo. Em outros termos, Lucas seria o típico representante do catolicismo primitivo.
Conceituação incomparavelmente mais positiva começou a tomar lugar ao ser redescoberto o assim chamado traço social deste evangelho. Como nenhum outro autor do Novo Testamento, Lucas ressalta a proximidade de Jesus aos pobres e define a missão do Filho de Deus como libertação dos cativos (Lc 4.16ss). Especialmente em nosso continente latino-americano este evangelho adquiriu singular relevância.
Mas também no mais levantaram-se protestos contra a desqualificação teológica de Lucas. Ele que além do evangelho redigiu também a primeira história da Igreja (o livro dos Atos dos Apóstolos) não mereceria juízos tão duros como os acima mencionados. O que, então, prevalece neste escritor, o interesse historiográfico ou o evangelístico? O que afinal pretende?
Na brevidade aqui exigida procuraremos responder estas perguntas, relembrando simultaneamente os principais dados isagógicos.
II — Os propósitos de Lucas
1. Lucas é um cristão da segunda geração. Evidencia-o o prólogo (1.1-4) que antepôs â sua obra e no qual define seus objetivos. Confessa não ser o primeiro a escrever uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram. Houve antecessores. Ainda assim, Lucas julga por bem apresentar igualmente uma exposição em ordem para que Teófilo, a quem dedica a obra e do qual no mais nada sabemos (cf. At 1.1), tenha plena certeza das verdades em que foi instruído. Para este fim propõe-se a fazer acurada investigação e recorrer àquilo que transmitiram as testemunhas oculares e ministros da palavra. Isto significa:
1.1 Sem expressamente criticar seus antecessores, Lucas é de opinião que, em termos de redação de um evangelho, pode ser feito mais do que o foi até aquele momento. De fato, o evangelista procura situar a história de Jesus no decurso da história mundial mediante indicações cronológicas exatas (cf. Lc 2.1; 3.1, etc.). Persegue o propósito de deixar claro que os acontecimentos salvíficos não tiveram lugar no oculto nem em qualquer recanto (At 26.26), mas sim representam parte significativa da história da humanidade. Sobretudo, porém, chama atenção a enorme quantidade de material que Lucas foi capaz de acrescentar ao patrimônio evangélico. Mais do que um terço de sua obra é constituído de material exclusivo, sem paralelo em Marcos ou Mateus. Nossos conhecimentos a respeito de Jesus, suas palavras e gestos, seriam bem mais pobres sem as acuradas investigações de Lucas.
Contudo, as principais fontes de Lucas são as obras de seus antecessores, o evangelho de Marcos e a assim chamada fonte Q. Até que ponto o evangelista dispunha de ainda outros documentos literários, é assunto controvertido entre os especialistas. Pouco de concreto se sabe a respeito da proveniência do material exclusivo. É provável que grande parte do mesmo remonte às tradições orais da primeira comunidade, ainda não fixadas por escrito. De qualquer maneira, a redação do evangelho espelha o enorme esforço de investigação de seu autor.
1.2 Lucas escreve a certa distância histórica dos fatos. Não pertence às testemunhas oculares. A tradição eclesiástica o tem identificado com Lucas, o médico e companheiro de Paulo, mencionado em Cl 4.14; Fm 24 e 2 Tm 4.11. Na verdade, também este evangelho, à semelhança dos demais, é anônimo. O autor não revela sua identidade, sendo que todas as notícias a seu respeito são de data posterior. O que levanta suspeitas com relação à tradição da Igreja neste particular é que nem o evangelho e muito menos no livro dos Atos se percebe influência teológica de Paulo, como é de esperar se Lucas tivesse sido o companheiro deste ilustre apóstolo. Não há motivos para duvidar que o autor se tenha chamado Lucas. O nome não era muito frequente na antiguidade e tudo fala a favor de ser original. Mas a identificação deste Lucas com o médico e companheiro de Paulo permanece hipótese insegura.
O que se sabe é isto: Lucas foi um gentílico-cristão. Escreve um grego erudito, de ótima qualidade, não escondendo a pretensão de redigir uma obra capaz de concorrer com a literatura de alto nível na época. Ë certo também que Lucas não escreveu na Palestina. Dirige-se a comunidades provenientes do paganismo, permanecendo desconhecido, porém, onde no império romano se localizavam. Certo é, enfim, que Lucas põe mão à obra em época um tanto avançada. Os especialistas indicam os anos por volta de 90 d. C. como provável data de redação tanto do evangelho como dos Atos. Um dos testemunhos do avanço da época é que Lucas (e as comunidades, das quais é expoente) se debatem com o problema da certeza nas verdades evangélicas.
2. Nesta situação, o que Lucas pretende não é fundamentar a fé mediante argumentos históricos. Pois fé é aceitação da promessa de Deus, é decisão, não simplesmente conhecimento histórico. Resulta de proclamação, não de mera informação. Lucas bem o sabe. Confronta as pessoas com a necessidade de se posicionarem frente à pessoa de Jesus, como o mostra o caso dos dois malfeitores na cruz por exemplo (Lc 23.39ss). E, todavia, a fé precisa do conhecimento histórico. É a sua premissa. Faz alguma diferença se Jesus falou ou agiu deste modo ou daquele. Precisamente neste sentido Lucas procura fornecer certeza, a saber no que vem a ser a autêntica tradição a respeito de Jesus. Não procura demonstrar a fé, mas sim distinguir verdadeiro testemunho apostólico de falso. Representa isto inalienável mandato da teologia. Daí decorre:
2.1. Lucas, antes de ser historiador, é evangelista. Redige uma obra que, quanto a seus objetivos, pouco se distingue dos demais evangelhos sinóticos. Procura despertar a fé. De um modo geral Lucas segue a estrutura de Marcos, mas lhe incorpora alguns importantes blocos: (1) Os capítulos 1 e 2, além do prólogo, contém as histórias do nascimento de João Batista e de Jesus. Habilmente entrelaçadas e enriquecidas pelos cânticos de Zacarias, Maria e Simeão elas representam algo como uma introdução, sem reais paralelos sinóticos (cf. Mt 1 e 2). Somente a partir do cap. 3, embora também aí com uma série de particularidades, Lucas segue a sequência de Marcos. (2) O segundo bloco é formado pela assim chamada pequena inclusão, abrangendo os cap. 6.20 – 8.3 e reunindo o sermão da planície e outras tradições predominantemente originais da fonte Q. (3) A grande inclusão, enfim, é constituída pelos cap. 9.15 -18.14. Lucas ampliou consideravelmente o relato da viagem de Jesus a Jerusalém como Marcos o apresenta (Mc 10), encaixando neste bloco a grande quantidade de seu material exclusivo.
Merece registro, além disto, que Lucas se afasta de Marcos especialmente na descrição dos inícios da atividade de Jesus (Lc 4.16 -5.11) e na história da paixão e páscoa-(Lc 23-24). Entretanto, apesar dessas divergências é notório que Lucas escreveu um evangelho, não simplesmente uma crônica histórica e que para tanto se apoio em Marcos. Recontando a história de Jesus, não deixou de pregar o evangelho a seus leitores.
2.2. Todavia, não permitem ser desprezados os interesses historiográficos de Lucas. Escreve ele não só a história de Jesus, escreve também a da expansão da primeira cristandade. Lucas tem clara noção do tempo que o separa dos inícios. A história da primeira cristandade se lhe constitui em ponte que liga o seu tempo ao de Jesus. Pode-se facilmente descobrir que Lucas divide a história em três períodos: (1) o da lei e dos profetas, estendendo-se até João Batista (16. 16); (2) o período da atuação de Jesus, pela qual a salvação chegou aos homens (cf. 2.11; 4.21; 19.10, etc.) e (3) o período da Igreja. Este inicia com a ascensão e pentecostes (At 1-2) e é por excelência o tempo da missão.
O interesse histórico de Lucas se documenta, não por último, naquela categoria que se lhe tornou especialmente importante, a saber a da testemunha ocular (Lc 1.2; At 1.21ss), respectivamente do apóstolo (Lc 6.13; 9.10; 17.5, etc.). Fé cristã se fundamenta no testemunho apostólico (cf. Ef 2.20; Ap 21.14). No entanto, é errôneo descobrir em Lucas algo como uma doutrina de sucessão apostólica. Lucas busca a certeza da verdade pelo recurso às fontes, não pela evidenciação de uma corrente ininterrupta de transmissores fidedignos do patrimônio da fé. Os interesses históricos de Lucas, ao se dirigirem às origens apostólicas da Igreja de modo algum conflitam com os seus propósitos evangelísticos.
3. Será possível dizer algo com respeito à situação, na qual o evangelista escreve? Quais eram os desafios a que procurou responder e os problemas com que suas comunidades se debatiam? Dependemos exclusivamente de conclusões indiretas das duas obras de Lucas. Ainda assim, algumas coisas se cristalizam com suficiente clareza.
3.1. As comunidades de Lucas estão marcadas pela experiência da demora da parusia. Naturalmente, a esperança não é abandonada, mas percebe-se que o fim não está tão próximo como se supunha (cf. p.ex. Lc 21.8s e Mc 13.5s). Isto tem sérias consequências. Pois a Igreja, de alguma forma, deve arranjar-se neste mundo. Deve criar ordens e instituições para sobreviver, deve estruturar-se. Torna-se bem mais insistente a pergunta, como o cristão deve comportar-se no mundo. Portanto, a ênfase se descola da esperança para a ética. Deve ser definida a tarefa da Igreja neste amplo espaço de tempo que ela tem, devem ser desenvolvidos critérios orientadores quanto ao que é cristão e não o é. Tudo isto se percebe nitidamente na obra de Lucas, tendo-lhe imprimido profundas marcas.
3.2. As comunidades de Lucas se defrontam com o problema da heresia. Os lobos vorazes e os homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles, como os preanuncia o apóstolo Paulo conforme At 20.29s, obviamente já estão atuando. É possível que se trata de hereges gnósticos. Uma série de peculiaridades da teologia lucânica assim acharia explicação. A forte acentuação da realidade da morte e da ressurreição do Senhor (…), a vinculação das viagens do Jesus terreno com sua ascensão (…), e a integração da história de Jesus na história universal (…) servem, evidentemente, de defesa contra os falsos mestres gnósticos e sobretudo docetas, os quais põem em perigo a ASPHÁLEIA da Palavra, na qual Teófilo foi instruído (Kümmel, p. 182).
3.3. As comunidades de Lucas se defrontam com sérios problemas sociais internos. Pelo que tudo indica, a maioria dos membros é pobre. Mas há também os que estão em melhores condições econômicas. A estes Lucas dirige o insistente apelo de repartir. Riqueza é perigosa (cf. Lc 6.24-ss; 12.15ss, etc.), e misericórdia é a exigência do Deus misericordioso (6.36). Para este mesmo fim é apresentado também o exemplo da primeira comunidade, na qual, devido ao espírito da partilha, ninguém sofria necessidade (At 2.42ss; 4.32ss). O importante aqui não é o modelo oferecido (este em épocas diferentes dificilmente pode ser copiado), mas a necessidade de aprender a misericórdia e eliminar a carência do pobre.
3.4. As comunidades de Lucas são irrisória minoria no império romano, perseguida por sinal, lutando por um lugar na sociedade. É óbvio o propósito de Lucas de apresentar a doutrina e a Igreja cristã como merecendo a mais atenciosa consideração por parte das autoridades romanas. Lucas faz propaganda para a fé cristã (cf. At 24.10ss, etc.). O evangelho é assunto não só de pequenos grupos marginais, é assunto de toda a humanidade. Possui alcance universal (cf. Lc 3. 23ss; 24.44ss; At 1.8, etc.).
III — Ênfases teológicas
1. Uma das mais significativas peculiaridades teológicas de Lucas se observa em sua cristologia: Jesus é o salvador dos pobres e perdidos. A prédica inaugural de Jesus em Nazaré explica a missão do Filho de Deus em termos de Is 61 como evangelização dos pobres e libertação dos oprimidos (Lc 4.18). Não menos programática é a afirmação de Lc 19.10: Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido.
Aliás, enfatiza o evangelista fortemente a filiação divina do nascido em Belém. É testemunho disto, desde o princípio, a história do nascimento virginal (1.26ss). Jesus é o Filho do Altíssimo (1.32), o Salvador (2.11), nele repousa o Espírito Santo (3.22; 4.18,21). Do segredo messiânico, que conforme Marcos envolve a pessoa de Jesus, em Lucas nada se percebe. As reivindicações de Jesus causam escândalo e a maioria de seus contemporâneos lhe nega a messianidade (cf. Lc 4.22ss, etc.). Ainda assim a filiação divina é proclamada desde o início do evangelho, sendo por isto a ascensão do ressuscitado (24. 50ss) o desfecho consequente de sua história.
O Filho de Deus, na verdade, veio para salvar a todos. Mas há os que se excluem a si mesmos. São eles, uma vez, os ricos asfixiados pelo volume de seus bens (18.18ss), incapazes de repartir e apáticos frente à miséria de Lázaro (16.19ss). Riqueza assemelha-se a um narcótico, embalando as pessoas com falazes ilusões (12.16ss), desviando-as de Deus. Pois …onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração (12.34). Além de Tiago, é Lucas quem no Novo Testamento assume a posição mais crítica frente às posses. Paira sobre os ricos o ai da ameaça (6.24ss). Vai perecer quem entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus (12.21). Não provém tal crítica de uma postura simplesmente sócio-política, mas sim de uma avaliação religiosa da riqueza: Ela corrompe as pessoas, constituindo-se em ídolo (16.13) e fazendo o ser humano incapaz da misericórdia.
Em razão disto são bem-aventurados os pobres (6.20). Deus enxerga necessidades. Dá a quem não tem, exalta os humildes (1. 52s). Não são os pobres os bons, merecedores do reino de Deus. Precisam também eles confiar e assumir o discipulado. Ninguém é dispensado da fé. Na realidade são pobres em Lucas não só os material¬mente pobres (embora estes o sejam em primeiro lugar), mas todos os que em suas necessidades não dispõem de outro recurso senão a confiança na compaixão de Deus, muito à semelhança do filho pródigo (15.11ss). Do arrependimento todos necessitam (13.1ss), o que não invalida o fato de haver quem dele necessite mais, como por exemplo Zaqueu, o rico publicano (19.1ss). A pessoas como ele Lucas dirige o apelo missionário de modo todo especial, sendo Zaqueu o modelo de conversão evangélica. Em Jesus apareceu quem demonstrou a misericórdia de Deus aos pobres e quem simultaneamente, ensinou ser a misericórdia a suprema exigência divina (10.25ss; 10.37).
Mas excluem-se da salvação não só os ricos, excluem-se também os que se consideram justos e, por isto, desprezam os demais (18.9ss). Não são justificados os que evadem da solidariedade de todos no pecado e assumem a postura farisaica de justos em relação aos perdidos (cf. 15.1ss). Pessoas justas são insuportáveis, cruéis. Negam aos pecadores o perdão de Deus e criam as classes dos bons de um lado e dos maus de outro. Julgam, mas não sabem perdoar, gloriam-se das suas obras. Jesus, porém, traz o amor de Deus exatamente aos endividados com Deus (7.40s), aos que não o merecem. Não condena, mas recupera o perdido (15.7). Não tem vez junto a Deus quem não se descobre na comunhão dos pecadores, em tudo depende da graça de Deus.
Jesus é o salvador por ser a encarnação do amor de Deus que ajuda, perdoa e dá comunhão (5.29ss; 15.1ss) aos culpados (7.36ss; 15.11ss, etc.). Responde isto pelo escândalo e pela oposição que levam Jesus à cruz. Também em Lucas a cruz de Jesus Cristo é morte em favor dos pecadores (22.19ss). Assim como o Filho de Deus viveu em favor dos pobres e perdidos, assim também por eles morreu.
Há, porém, ainda um outro aspecto cristológico, especialmente típico de Lucas. Conforme este evangelista, Jesus não é somente o mediador da graça divina (cf. p. ex. 23.43, etc.), ele não deixa de ser também o modelo de verdadeira existência humana. Não significa isto que os discípulos devessem imitar o seu mestre. Imitar e seguir são duas coisas distintas. Devem eles, isto sim, aprender um estilo de vida que se caracteriza pela prática da misericórdia (6.36; 10.37), pela disposição para a renúncia (9.57ss; 14.25ss) e a capacidade de perdoar inclusive aos inimigos, como mostra a oração de Jesus na cruz, dizendo: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (23.34). Aprende o discípulo a liberdade que provém da confiança em Deus (12.22ss), a gratidão pelos benefícios recebidos (17.11ss) e, não por último, aprende também a devolver sua vida nas mãos de Deus, como o próprio Jesus o fez ao morrer com as palavras: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (23.46).
Em Lucas, pois, Jesus é simultaneamente a revelação de Deus e o homem como Deus o quer. Por ele as pessoas recebem a graça divina e são chamadas para viverem em nova relação com Deus e os vizinhos.
2. De acordo com o testemunho de Lucas, a salvação em Cristo se encontra inserida numa ampla história da salvação. Não se trata ai de uma segunda história ao lado da história profana da humanidade. Seria isto em crasso mal-entendido. Pois Lucas insiste fortemente na realidade histórica geral como sendo o lugar dos acontecimentos salvíficos. O termo expressa muito antes que a salvação não apareceu qual ponto na história humana, mas sim como linha. A ação salvífica de Jesus tem um antes e um depois, tem os seus precedentes na época da lei e dos profetas (16.16) e sua continuação na história da Igreja (At 2.47; 4.2; 16.17, etc.). A salvação, ela mesma, tem uma história, apresentando-se como uma sequência de acontecimentos transformadores de história na história, por detrás dos quais a fé detecta um plano de Deus. Como se deve entender isto?
Aos discípulos que, decepcionados peia crucificação de Jesus, regressam para Emaús, o ressuscitado dirige a pergunta: Porventura não era necessário que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? (24.26). E ele explica que a Escritura do Antigo Testamento dá testemunho desta necessidade (24.44ss). Deus assim o quis. Também a expansão da Igreja desde Jerusalém até aos confins da terra (At 1.8) obedece aos desígnios de Deus, sendo ele próprio que, através do Espírito Santo ou um anjo, toma as principais iniciativas (At 8.29; 10. 3, etc.).
Isto não significa que Deus tivesse predeterminado o curso da história. A ação de Jesus na história acontece em forma de intervenções, não em forma de pré-fixação dos acontecimentos. Tais intervenções são descobertas pela fé na lei e os profetas, sobretudo na ação de Jesus, como também em muitas ocorrências da história da Igreja. Salvação não se limita ao passado nem é uma questão do futuro apenas. Ela pode ser experimentada hoje (cf. Lc 2.11; 4.21; 19.9; 23. 43).
É claro que a concepção de uma história da salvação, que abrange também o tempo da Igreja, pressupõe a consciência de uma certa distância das origens — algo já mencionado acima como característico de Lucas. Mas justamente em tal situação, marcada ainda pela experiência da demora da parusia, essa concepção desempenha função altamente importante: Assegura que a Igreja se encontra no caminho previsto por Deus. A esperança há de se cumprir, mesmo que não de imediato. Um trajeto histórico deverá ser percorrido, mas o alvo está fixo. O reino de Deus, a despeito de eventuais contra-evidências, tornar-se-á realidade. A Igreja, pois, em sua caminhada, não se sabe abandonada, antes carregada pelos propósitos salvíficos de Deus, participante de urna história que já agora possibilita a experiência do Espírito renovador e conduz à consumação prometida.
3. Neste ínterim entre a primeira e a segunda vinda de Cristo importa cumprir a missão de que Jesus incumbiu sua Igreja. Consisto numa tarefa tríplice:
3.1. Devem os discípulos dar testemunho das maravilhosas obras de Deus (At 2.11; 4.33; Lc 24.48, etc.). Tem eles uma história a contar com respeito à qual não podem ficar calados sob pena de traírem seu Senhor. O próprio evangelho de Lucas se entende dessa forma: É narração dos acontecimentos salvíficos, dos quais a Igreja vive, que despertam a f é e para cujo conhecimento exato a cristandade necessariamente deve recorrer aos depoimentos apostólicos.
3.2. Devem os discípulos criar nova comunhão (respectiva mente comunidade) entre as pessoas. Todo missionário inevitavelmente deve construir comunidade de Jesus Cristo, na qual pessoas diferentes aprendem a servir-se mutuamente e a superar os seus conflitos (cf. At 2.42ss, etc.). A história de Jesus, contada no evangelho de Lucas é causa e fonte de nova comunhão.
3.3. Devem os discípulos servir aos necessitados à semelhança de Jesus. Diaconia é encargo inalienável da Igreja. Engloba não só a assistência como também a cura (cf. At 3.1ss, etc.) e a eliminação da causa dos males. A existência de necessitados é a vergonha de uma sociedade e representa um insistente desafio à diaconia de comunidade cristã (cf. At 4.34).
A martyria, a koinonia e a diaconia (testemunho, comunhão e serviço) podem e devem ser distinguidas, mas jamais separadas na ação da Igreja. Para o seu devido cumprimento Lucas redige o evangelho (e o livro dos Atos), construindo assim Igreja no mundo.
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Proclamar Libertação 10
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia