Prédica: 1 Coríntios 4.1-5
Autor: Rosa Marga Rothe
Data Litúrgica: 3º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 15/12/1985
Proclamar Libertação – Volume: XI
Tema: Advento
I — Considerações preliminares
1 — A cidade de Corinto
Corinto, cidade também chamada de Porta da Grécia, era importante centro comercial entre Oriente e Ocidente. Fora arrasada em 146 a.C. pelos romanos. A partir de 44 a.C., por decisão de Júlio César, torna-se colônia latina.
Devido aos dois portos, Cencreas a leste e Lechaeum a oeste, o trânsito era intenso, sendo navios e barcos transportados do golfo Sarônico ao Golfo de Corinto e, vice-versa, por uma estrada de 6 km pavimentada com lajes, puxados sobre carros ou cilindros de madeira.
Entre a numerosa população (alguns falam de 500.000) havia muitos escravos, viajantes, artesãos, funcionários, comerciantes, migrantes, refugiados, biscateiros, prostitutas, etc.
De 29 a.C. em diante, Corinto ficou sendo a sede do procônsul e a capital da província senatorial Acaia.
Neste centro cultural proliferavam as várias correntes filosóficas do pensamento grego e a variedade de cultos às divindades faziam florescer o sincretismo religioso, havia templos de Afrodite e Apoio e outros santuários com seus banquetes e rituais extáticos que, segundo alguns autores, contribuíram para a permissividade e degradação dos costumes.
2 — Origem da Comunidade Cristã de Corinto
No decurso da 1a viagem missionária o apóstolo Paulo chega a Corinto, frustrado com o resultado de sua pregação perante os sábios de Atenas. Sua permanência ali durou 18 meses, de 49 ou 50 até 51 ou 52. Paulo encontrou trabalho como tecelão para se sustentar enquanto desenvolvia sua atuação missionária na casa de refugiados políticos, como o casal Priscila e Áquila, comerciantes judeus banidos de Roma juntamente com outros por decreto do imperador Cláudio, acusados de provocarem constantes tumultos incitados por Cresto (Cristo?) (Cothenet, p. 65).
Como era o seu costume, Paulo iniciou a pregação do Evangelho aos sábados na sinagoga. O chefe da sinagoga, Crispa, se converteu com toda sua família, porém Paulo foi alvo de violenta reação por parte dos judeus perdendo o espaço na sinagoga. Um prosélito, Tício Justo, ofereceu-lhe a casa e a partir daí Paulo inicia sua prodigiosa missão entre os chamados gentios. A comunidade se forma a partir das camadas mais baixas, contando com alguns mais privilegiados económica e socialmente.
No final de sua estadia em Corinto, Paulo é levado pelos judeus perante o tribunal do procônsul Galião (At 18.12) na grande praça pública. Galião, entretanto, recusa-se a julgar questões pertinentes a divergências religiosas dos judeus. Pouco tempo depois Paulo deixa Corinto e vai para Éfeso, Jerusalém, para em seguida descansar em Antioquia.
3 — Situação Contextual da Epístola
A primeira epístola aos Coríntios que temos na Bíblia parece ser a segunda que o apóstolo escreveu àquela comunidade. A nossa segunda deve ter sido a quarta.
Paulo está em Éfeso no decurso de sua 3a viagem missionária (54-57). As notícias que vem recebendo de Corinto deixam-no preocupado. Há problemas com a inserção de ideias e práticas helenísticas na comunidade dos neófitos. Há intrigas e fofocas de cunho personalista e também a influência dos costumes pagãos e cultos idólatras. Antes de entrar nas questões apresentadas, tais como a prostituição, a carne ofertada a ídolos, etc., Paulo lembra a origem dos membros que se vincularam àquela comunidade sob o senhorio de Cristo. A redenção, única e universal de Cristo, não admite senhores, nem classes, nem partidos. Paulo, Apoio, Pedro ou quem quer que seja que tenha contribuído para a fundação, ampliação e manutenção da comunidade, não passam de instrumentos a serviço deste único senhor. A comunidade tem o dever de administrar o tesouro que lhe foi confiado. A fidelidade que lhe é exigida não é aquela relacionada a pessoas ou coisas passageiras, nem tampouco a ideias ou sabedorias humanas.
II — Introdução ao texto da nossa perícope
Para compreensão da perícope, será necessário a leitura dos capítulos anteriores e também os posteriores.
Após a saudação, palavras de bênção e de estímulo, Paulo começa pela exortação à união, no mesmo Espirito e no mesmo modo de pensar, ou seja, relações de fraternidade sob o senhorio de Cristo.
A igreja é de Cristo que por todos deu sua vida. Para os sábios a linguagem da cruz é loucura, porém para os que se sabem resgatados é poder de Deus (1.18 ou 1.22-25).
Em seguida ele lembra que na composição da comunidade não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa (1.26-27). São justamente os marginalizados que Deus escolhe para confundir os sábios e os fortes. Para os que pertencem a Cristo a sabedoria provém de Deus e é justiça, santificação e redenção (1.30).
Paulo recorda-lhes o exemplo de sua atuação: não se apresentou com prestígio, nem cheio de sabedoria, seu único objetivo foi anunciar-lhes a mensagem de Jesus Cristo, o crucificado. Sua pregação nada tinha da persuasiva linguagem da sabedoria (2.4), mas pelo contrário, esteve cheio de fraqueza, de receio e de tremor. Ó Espírito de Deus demonstrou seu poder a fim de que a vossa fé não se baseie sobre a sabedoria dos homens, não sobre o poder de Deus (2.5).
Nos versículos seguintes à perícope (4.8-13) Paulo contrapõe a pretensão dos coríntios à atitude dos apóstolos:
CORINTIOS |
APÓSTOLOS |
– querem poder |
– prestam serviço |
– pensam em reinar; já estão ricos, sem Paulo se tornaram reis |
– estão expostos, em último lugar como condenados à morte em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens |
– fortes |
– fracos |
– prudentes por Cristo |
– loucos por causa de Cristo |
– bem considerados |
– desprezados |
– saciados |
– sofrendo fome, sede, nudez, maltratados, sem morada certa, fatigam-se trabalhando com as próprias mãos; amaldiçoados e bendizem, perseguidos e suportam, caluniados e consolam, considerados o lixo do mundo, a escória do universo. |
III — O texto
Os coríntios são lembrados antes por Paulo das limitações temporais, das coisas e dos homens, do presente e do futuro. Os homens são apenas administradores, o dono é Cristo. Àqueles a quem Deus revelou seus segredos e seus planos cabe um compromisso missionário. O bom administrador não é aquele que, se aproveitando de sua posição, desvia para o próprio bolsa parte do património que deve aumentar, fazendo para isso os arranjos contábeis. O patrimônio de Cristo são seus semelhantes e cada um na comunidade é chamado para participar na administração. Do administrador se exige fidelidade absoluta ao projeto elaborado por Deus e revelado por Cristo. Não foi Paulo que lançou o alicerce. Este é o próprio filho de Deus, rejeitado pelos homens. A obra continua na periferia da sociedade, fora das instituições. Os operários escolhidos são a escória do mundo, aqueles que para os valores do mundo são inaptos. Não dá para mudar o plano nem deslocar a fundação para um local mais agradável à vista humana. Também não dá para camuflar rachaduras com massa ou verniz, pois o Mestre exigente perceberá quem soube trabalhar bem e quem só marcou o ponto. Suborno e jeitinho aí não valem, cada um será avaliado pelo que contribuiu de fato. As máscaras cairão e até os interesses mais ocultos serão revelados. A manipulação, o divisionismo, os rótulos de classificação, tudo isso nada significa diante da amplitude deste projeto universal do Cristo indivisível. Seu critério de avaliação é o inverso daquele que o mundo ensina e portanto é incompreensível para o juízo humano.
Apesar de saber da frente de oposição que lhe fazem as várias correntes que se formaram no seio da comunidade de Corinto, Paulo não fala com amargura, nem sentimento de vingança. Ele não adota a atitude típica do pai espiritual de uma ou outra corrente. Ele é, antes de tudo, um pedagogo amoroso que se preocupa com o crescimento daqueles que lhe foram confiados, mas que não são seus. Ele mesmo se sabe amado e amparado em suas aflições.
Paulo deixa muito claro que não há como escapar por atalhos sedutores para contornar conflitos, perseguições e a cruz que antecedem a ressurreição. Não há como conciliar o velho com o novo (5.6), a conversão implica na disposição de tomar outra direção e aprender as práticas da igualdade entre irmãos, filhos de um mesmo Pai que tudo provê.
IV — Meditação e pistas para a prédica
Evidentemente não estamos mais com aquela pressa missionária que caracterizou o empenho do apóstolo que também acreditava na volta imediata do Senhor. A invasão de valores helenísticos para dentro da instituição eclesial ainda hoje é visível. Com o imperador Constantino a Igreja da periferia e das catacumbas ascende para um status social de prestigio e poder.
Observando a trajetória das comunidades de confissão luterana dentro da sociedade brasileira, desde o período do império até hoje, também podemos verificar consideráveis mudanças. Se as raízes da IECLB estão nas comunidades fraternas de ajuda mútua em torno do Evangelho, dos membros desprezados e perseguidos pela sociedade envolvente, hoje o quadro é bem diferente. A maioria dos representantes das comunidades de hoje também conseguiram ascender na pirâ-mide social, pelo menos até a classe média. Aqueles que continuam na base da pirâmide também já não encontram mais acolhida dentro das comunidades, isto é, tanto na sociedade como na igreja permanecem sem vez e sem voz. Alguns presbitérios tentam camuflar a divisão de classes sob camuflagem de assistencialismos, levando os restos dos mais ricos para o banquete dos mais pobres. Criou-se também o slogan: unidade na pluralidade. Mas Paulo não fala de uma união de fachada, ele fala de união no mesmo espírito e no mesmo modo de pensar. Entre irmãos a prática tem que ser a da igualdade; não há como colocar união no mesmo espírito e no mesmo modo de pensar. Entre irmãos a prática tem que ser a da igualdade; não há como colocar num mesmo balaio raposas e coelhos, recomendando-lhes que vivam em paz.
A comunidade é nova massa (5.7) da qual resultará novo fermento para o resto da sociedade. A velha massa tem que ser afastada mesmo quando contrói grandes obras e paga boas contribuições para sustentar outras obras e manter a instituição. A fidelidade ao Evangelho implica em radicalidade e esta traz conflitos e perseguições. Esta radicalidade, porém, não pode ser reduzida ao entusiasmo por ideias alheias ao Evangelho. Também os partidos representam apenas uma visão parcial, dentro de um espaço físico e histórico de cada povo. O plano salvífico é muito mais amplo e abrangente. A luta partidária, com ou sem coligações, é sempre uma luta pelo poder.
Neste momento Tancredo ainda está no hospital, Sarney é presidente em exercício e a Igreja está sendo encantada para ser aliada da Nova República em nome da união e da paz. União de quem e paz para quem?
Os discursos dos ministros das três Forças Armadas para o dia 31 de março são o exemplo de uma idolatria gritante dos nossos dias. Membros de prestígio das nossas comunidades também pretendem conciliar Escola Superior de guerra, Rotary, Lions e outros clubes com a fé cristã.
A igreja de Cristo se caracteriza pelo serviço e, para ser fiel ao Evangelho, ela não pode ser submissa aos ídolos do atual império, nem serviçal dos seus representantes, nem aliada do Estado mantenedor desta ordem injusta e excludente da maioria deste povo para o qual Jesus deu a vida.
Se a Igreja é administradora, então ela tem que estar informada do que acontece para registrar, divulgar, analisar, avaliar, selecionar, contabilizar e expurgar tudo o que for corrosivo. O critério, como sabemos, é determinado pelos valores inversos dos da sociedade.
Quando os administradores não têm clareza sobre quem, em última instância, se beneficia de sua atuação, pode ocorrer que, mesmo bem intencionados, acabem servindo aos ídolos, repartindo com estes a carne sacrificada e os despojos dos vencidos na guerra de saque.
Entre irmãos não se dá esmola, mas reparte-se com igualdade.
O que acontece nas comunidades hoje que ousam levar isto a sério?
O que espera os apóstolos de hoje que são rejeitados pelos membros de comunidades petrificadas e, à semelhança de Paulo, vão para a periferia atuar entre os marginalizados?
As instituições eclesiásticas de hoje de fato preocupam-se com a formação de apóstolos (agentes multiplicadores da mensagem de redenção) ou sua prioridade está em formar funcionários que não causem problemas à própria instituição nem entrem em conflito com os aparelhos do Estado?
Quais são os mecanismos com os quais se procura hoje destruir os instrumentos que Deus quer utilizar para anunciar o Senhorio de Cristo?
Talvez possamos fazer um esboço de quadro, que cada comunidade poderá completar e adaptar de acordo com sua percepção local, distrital, regional e de IECLB.
COMUNIDADES SEGUNDO O ESPÍRITO (De acordo com a pedagogia paulina) |
COMUNIDADES DA IECLB
(De acordo com o que se vê (hoje) |
– Contra a estima e supervalorização dos chefes cristãos |
– Centralismo de pastores e lideranças |
– Evangelho ensina valores diferentes da sabedoria humana |
– adaptação aos métodos empresariais e ideologia vigente |
– revelação de Deus através do Jesus crucificado = universalidade |
– pretensão de ser dona da verdade = prática bitolada e unilateral |
– insignificância do pregador |
– hierarquia eclesiástica = status |
– provação sem proteção |
– segurança, carreira, prestígio |
– marginalização |
– projeção |
– prioridade: missão = desprendimento e riscos |
– estabilidade institucional, omissão diante dos conflitos, assistencialismo |
– rejeição dos valores da sociedade idólatra, resistência ao poder |
– conivência, alianças, pactos; adesão às ideias ditatoriais ou reformistas |
– os conflitos entre membros se resolvem no meio da comunidade |
– utilização dos meios repressivos para intimidar os mais fracos |
– comunhão dos fiéis |
– exclusão dos menos favorecidos |
– doações como sinal de gratidão |
– contribuições obrigatórias ou como garantia de prestígio e poder |
– adaptação do missionário ao estilo de vida dos que Deus lhe confiou = identificação com o fraco |
– imposição de valores culturais alienígenas = discurso intelectualizado e dominador |
– vigilância para não se deixar influenciar pela idolatria (restos trazidos do tempo de escravo) |
– manutenção dos vícios da organização ocidental em detrimento do fermento de transformação contínua |
– o Reino de Deus já iniciado, porém ainda não completo |
– satisfação com a etiqueta Convertido, ocupação individualista, acomodação sob pretexto de não ser tarefa da Igreja o engajamento na mudança das estruturas desumanas |
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, o anúncio da tua soberania sobre tudo e todos é muito forte e mexe com o íntimo do nosso coração. Estamos sempre à procura de segurança, conforto, tranquilidade e comodidade.
Todos: Senhor, tem compaixão de nós!
Não conseguimos ainda arrancar de nós, nem exterminar de nosso meio, os vícios do individualismo competitivo, egoísta e destruidor. Por covardia deixamos de ser coerentes para sermos convenientes.
Todos: Senhor…
Jogamos fora a oferta que tu nos fazes de sermos teus colaboradores para tornar-nos escravos e idólatras do dinheiro e do poder a fim de sermos bem vistos pelos senhores deste mundo.
Todos: Senhor…
Tornamo-nos infiéis e, conseqüentemente, não prestamos para administradores
Todos: Senhor, tem compaixão de nós! Por Jesus Cristo, teu Filho! Amém!
2. Oração de coleta: Senhor, ajuda-nos a desamarrarmos as mãos uns dos outros antes que se atrofiem de todo. Tira tu o véu que cobre nossos olhos, desentope os nossos ouvidos e move os nossos pés.
Abre o nosso coração, anima-nos e sacode-nos para que não sejamos lastro morto, mas tripulantes responsáveis no barco guiado por ti, através das águas tumultuadas, enfrentando piratas, recolhendo náufragos, jogando fora os parasitas, repartindo o pão e dividindo as tarefas.
Dá-nos discernimento para chegarmos com lotação completa ao único porto seguro, teu Reino de amor. Amém.
VI — Bibliografia
– COTHENET, E. São Paulo e o seu tempo. São Paulo, 1985.
– CULLMANN.O. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo, 1982.
– KUEMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, 1982.
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.
– MARÍAS, J. História da Filosofia. Porto, 1973.