Prédica: 1 João 5.1-5
Autor: Hermann Mühlhäusser
Data Litúrgica: Domingo Jubilate
Data da Pregação: 20/04/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — Introdução
É mais uma circular pastoral em defesa da pura e autêntica fé cristã do que uma carta entre dois correspondentes, esta 1ª. carta de João. Para ser carta lhe faltam dedicatória inicial como também saudações finais. São incógnitos tanto o seu remetente como também o destinatário, se bem que deve ter tido laços fortes e amigáveis que ligaram o autor aos recebedores da carta, pois o tom da mensagem é bem cordial (filhinhos) e o remetente demonstra sentir grande res-ponsabilidade por aqueles a quem dirige o seu apelo.
Provável é que o escrito data de tempo pós-apostólico, época que docetas sectários aproveitaram para penetrar nas comunidades cristãs com a sua sedutora doutrina gnóstica que separa o culto do cotidiano, o conhecimento teórico da ação prática, a fé transcendental e sublime da vida simples e ordinária. Estes sectários viviam na ilusão de uma fé mística e individualista que desprezava qualquer dimensão e compromisso sociais. Por isso o autor da carta convida as comunidades atingidas para um posicionamento bem decidido e rigoroso frente aos falsos irmãos e profetas, e por meio de uma eloquência que não deixa margem a dúvidas tenta desmantelá-los como mentirosos e anticristos da última hora (2.18 e 22). É essa a situação polémica que caracteriza a 1ª. carta de João e que é o pano de fundo em que devemos compreender o presente texto bíblico a ser interpretado no que segue.
II —O texto
No convite para a presente colaboração a perícope foi limitada aos vv. 1-4, fazendo com que ela terminasse com a afirmação vitoriosa: Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. Optei, no entanto, pela inclusão do v. 5 no texto da prédica. E isso não por querer seguir, simplesmente, o exemplo dos comentários a minha disposição, e sim, porque o v. 5 me parece indispensável como fechamento da questão.
Ora, a questão primária foi menos a fé vitoriosa. Com ela os heréticos ainda se poderiam identificar. O que foi posto em dúvida é a Identidade de Jesus. Os sectários duvidam e negam que o Cristo ressurreto e glorioso seja idêntico ao Jesus de Nazaré. Para eles é inaceitável um Deus que se apresenta em trapos humildes e que se abaixa ao ponto de ser cuspido e maltratado e de sofrer injúria e infâmia e, finalmente, a morte na cruz.
No entanto para o autor esse é o articulus stantis et cadentis, só quem reconhece e confessa Jesus, o homem de Nazaré, como Cristo e Filho de Deus, Deus está nele e ele em Deus. (1 Jo 4.15)
Na demonstração desta verdade não pode faltar o v. 5, que conclui a prova teológica assim como o quod erat demonstrandum a prova de uma operação matemática.
A tradução de Almeida é clara e correta. Na exegese tentamos mostrar que o texto, à primeira vista um tanto seco e teórico, tem muito mais vida e dinâmica que aparenta.
III — Exegese
V. 1 — Chama a minha atenção a insistente e estereotípica formulação: Todo aquele que crê… — e seria bom ouvir entre as linhas: só aquele que crê inabalavelmente… — que pode ser encontrada desde o cap. 2. Ela me diz que na fé cristã há questões indiscutíveis, princípios que não permitem interpretações alternativas, verdades das quais a Igreja não pode abrir mão. E esta é uma tal verdade: que Jesus, homem verdadeiro, nascido da virgem Maria é ao mesmo tempo verdadeiro Deus, gerado do Pai desde a eternidade (Lutero). Ele, o homem por excelência e Deus Emanuel é o último e insuperável recado de Deus para este mundo desumano e afastado de Deus, é amor encarnado por todos nós. Exclui-se da Igreja quem neste ponto duvida. Faz parte dos filhos de Deus quem confessa as duas naturezas de Jesus.
V. 2 — De sorte que já não há mais dúvida — assim gostaria de ver traduzido o grego EN TOUTO de que há uma unidade concludente entre esta confissão cristológica (verdadeiro Deus e verdadeiro homem), o amor a Deus e o amor ao próximo. Onde uma parte desta unidade for posta em dúvida ou negligenciada, toda a fé não passa de uma grande farsa.
V. 3 — Certo, o amor a Deus é a questão chave, o ponto cardeal. No entanto, este amor impele e empurra para a sua concretização prática no amor aos irmãos, por sinal exigência possível e fácil de se cumprir (veja também Mt 11.30!).
V. 4 — Só onde há tal harmonia entre confissão cristológica, amor a Deus e amor ao próximo, a saber numa existência tanto voltada a Deus como voltada ao irmão, pode-se falar que alguém nasceu de Deus, que se realizou o mistério de uma nova criatura. Aí dá para falar, também, que há fé. Pois fé é muito mais do que aquela sensação espiritual e estática de, pessoalmente, estarem sintonia com Deus. Fé tem caráter de partida e de estar a caminho. Fé é iniciativa e ação inspiradas pelo Espírito Santo. Fé é força que vem de Deus e que, unindo-me no caminho aos irmãos, faz de minha vida um testemunho crível e convincente.
V. 5 — Quem endossa e garante isso é Jesus, o Nazareno e Filho de Deus. Por Cristo, em Cristo e com Cristo somos vitoriosos!
IV — Meditação
O domingo Jubilate recebeu o seu nome do Salmo 66 com o seu apelo eufórico: Aclamai, jubilai, bendizei, ó povos, o nosso Deus! Vinde e vede as obras dele! Converteu o mar em terra seca. Atravessaram o rio a pé. Preserva com vida a nossa alma…. E o povo do NT, nós, vindo da Páscoa, necessariamente acrescentamos de suas obras a maior: que no Cristo ressurreto venceu o mal, o medo e a morte.
E tanto faz, se o texto for pregado no domingo Quasimodogeniti, onde teve seu lugar, ou no domingo Jubilate. Nos dois domingos so¬mos lembrados da singular possibilidade de em Cristo poder renascer.
Nele podemos tornar-nos criatura nova. Criatura nova que apesar de ser estrangeira e forasteira (cf. a antiga epístola de 1 Pedro 2.11-20), não deixa de cumprir a sua tarefa neste mundo. A partir desta visão o cantus firmus da prédica deve ser a alegria e o júbilo sobre estes fatos eloquentes: Deus é Senhor sobre culpa, sofrimento e morte do homem. Na morte de Jesus Ele fez prevalecer o seu amor para com a sua criatura desgarrada, e na ressurreição dele manifestou, uma vez por todas, sua autoridade e o seu poder, forças vitoriosas, das quais podemos participar, tornando-nos criatura nova, filhos nascidos de Deus. A partir da Páscoa minha alma jubilosa não pode triste estar… (Hinos do povo de Deus 160). A nossa fé, escutem bem: a fé que leva para dentro da communio sanctorum, para dentro da comunidade dos redimidos, é a vitória que vence o mundo. Outra fé já não resolve mais nada. Só essa fé que tem a sua base em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, tem força renovadora. Pode parecer um entusiasmo exagerado, pois depois de dois mil anos o mundo ainda continua nas estruturas da violência, do ódio e da morte — e uma olhada no jornal da manhã nos certifica disso com detalhes mais ou menos cruéis. No entanto, ninguém mais precisa andar amarrado a estas estruturas, pois Cristo venceu a morte. Bendita a nossa sorte! Um novo dia nos alumia. Para quem ama a Deus, pois, é imperativo da hora amarrar a sua vida a Cristo e seguir o seu exemplo. Urge amar contra a correnteza do egoísmo maciço. Urge amar apesar de tudo. Mesmo angustiados não somos dominados, pois Cristo fala e o mal se cala.
Só assim participamos da conquista de Cristo. Damos continuidade à sua vitória pascal. E a nossa fé torna-se aquele acontecimento singular que trabalha em nós, que molda as pessoas, proporcionando novo começo, nova visão, nova esperança. E uma vez renovado o homem, inicia-se a renovação do mundo, que doravante será um mundo onde o amor prevalece e vai tomando conta, movimento que jamais poderá ser freado. Pois sempre haverá alguém que lê a história do Bom Samaritano e se sente coagido a proceder de igual modo (trazer exemplos!). Sempre haverá aqueles que, seguindo a Jesus, assumem a sua cruz e tomam a sério a sua oração em favor dos inimigos e a sua promessa feita ao malfeitor. A partir deste exemplo o amor não poderá mais morrer, ao contrário, tomará formas novas, transformando, assim, este mundo tão amado pelo Pai e Criador.
O acontecimento mais marcante, porém, será que esta fé incutirá uma nova visão: a visão que somos irmãos, e que é um absurdo manter aquele maldito esquema que divide os homens em diferentes raças, grupos e classes. Na comunidade dos por Cristo transformados Deus é o Pai de todos e nós somos irmãos. Fica claro que, já que ele, o mestre, em sua encarnação rompeu todas as camadas de cima para baixo, chegando ao coxo, à cruz e ao inferno para se irmanar com todos, sem distinção, também em sua comunidade não pode mais haver discriminação ou preconceitos quaisquer.
É esta a visão da fé. A sua implicação. O seu compromisso. Onde tiramos este caráter provocativo do Evangelho morre a fé, morre o amor, morre tudo, pois fé é amor concretizado, amor praticado no irmão.
Está mais do que na hora de alertar as nossas comunidades no sentido de que até hoje não conseguimos superar esta lastimável situação que caracteriza a 1ª. carta de João. Também nós temos tamanha dificuldade de sairmos da penumbra comodista de nossas igrejas e solenidades e da vaidade ineficaz e inerte de uma religiosidade que, Insensível frente à problemática gritante que nos cerca, cruza os braços, tornando-se culpada, mil vezes culpada, com a sua pergunta tola: Acaso sou eu tutor de meu irmão? Auxílio para uma fé vivida e contagiante no sentido do texto, oferecem os mandamentos que nos acompanham para dentro do mundo da família, da propriedade, da política, enfim, para dentro do mundo de nosso dia-a-dia, orientando-nos nas decisões de cada nova situação. Pois é aqui e em nenhum outro lugar que se realiza o amor.
E a nossa liberdade?
Ela é garantida pela possibilidade de nossa opção. Liberdade seria p. ex. o nosso reconhecimento de que os mandamentos de Deus não são uma imposição pesada, e sim, uma oferta amigável de ajuda e auxilio.
Liberdade seria também o nosso raciocínio pelo qual todas as metas e finalidades, todos os objetivos e propósitos hão de sujeitar-se a um único critério: certo é o que favorece o meu irmão.
Raciocinar assim não é mais uma hipótese, uma ideia afastada. É uma vivência assumida por milhões de cristãos espalhados pelo mundo. É um fato. Desde a paixão de Cristo e a sua ressurreição na Páscoa o amor tem o seu lugar bem firme neste mundo questionado por ciência e egoísmo, por poder e cinismo. Pela intervenção de Deus o homem permanece voltado ao homem, e será impossível querer apagar a força e a chama deste amor semeado e vivido por Cristo entre nós.
Assim sendo a nossa fé é a continuação desta vitória que vence o mundo. Temos motivo de estarmos jubilosos: Crentes, pois, prossigamos, as trevas não temamos! Não vacilemos — a luz vero mós.
V — Prédica
Quem, ao longo dos anos de meu pastorado, me ajudou multo em minha maneira de pregar foi Gottfried Voigt com os seus comentários. A subdivisão para a prédica aceitei muitas vezes assim como ele a sugeriu. Desta prédica, porém, para o domingo Jubilate, eu faria uma prédica temática, a ser apresentada de um só fôlego, para transmitir também desta forma o júbilo e o entusiasmo vibrantes daquele que foi tomado de alegria, daquele que está aí diante da comunidade e que não pode falar diferente (veja Lutero na dieta de Worms, ou os apóstolos Pedro e João perante o sinédrio, Atos 4.20). Os temas poderiam ser assim: Chamados para viver a vida de criatura nova!; Fé que vence o mundo em nome de Cristo; Ninguém mais consegue barrar a corrente do amor e de vida nova iniciada pôr Cristo ou, finalmente: Graças a Deus que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo! (1 Cor 15.57).
Em todo caso deve transparecer que Páscoa é mais do que um marco na vida de Jesus. Páscoa continua acontecendo. E nós somos chamados a testemunhar que Jesus Cristo não ressurgiu em vão.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Salmo 66.1-9. Leitura alternada. Fazer dos w. 1 e 2 um refrão a ser lido por toda a comunidade no início e depois dos w. 4.7 e 9: Aclamai a Deus, toda a terra, jubilai, dai glória ao seu nome!
2. Confissão: Senhor, tu queres o nosso louvor. Esperas por uma resposta a teus tremendos feitos em nossa vida. Mas muitas vezes, Senhor, esperas em vão. Aí está o outro, com o qual não me entendo. É teu filho. Tu o tens criado. Tu o aceitas como ele é. E se Tu o aceitas e suportas, eu também o quero aceitar e suportar, lembrando-me sempre de que todos somos filhos aceitos, perdoados e amados por Ti, chamados a vivermos como irmãos em teu nome. Tem piedade de nós, Senhor!
3. Absolvição: Assim diz o Senhor: Quem ama a Deus, ama também a seu irmão. Pois com amor eterno eu te amei, com benignidade te atraí, ou: Quem está em Cristo, criatura nova é, criatura nova! (a ser cantado).
4. Coleta: Senhor, aqui estamos como tua comunidade e rogamos que fales a nós. Fala a cada um justamente assim como ele o precisa, consolando, exortando ou também julgando. Não deixes voltar ninguém para casa, sem que ele sinta o que pretendes e exiges dele; mas faze-o também sentir como agracias, animas e perdoas. Proporciona-nos o teu Espírito para que sejamos unidos na adoração do teu nome. Amém. (Prontuário liturg. l).
5. Evangelho: João 16.16-23a.
6. Ideias para a oração final: Senhor, Pai meu, Deus meu. Quero orientar-me em tua promessa que queres fazer novas todas as coisas. Fazer criatura nova também de mim. Sobre isso quero dialogar com os outros. Isto quero testemunhar aos meus irmãos, principalmente àqueles que duvidam e negam a tua presença, mas sofrem sob as velhas estruturas, sentindo ainda saudade por algo novo que há de vir. Senhor, como posso indicar-lhes o caminho para Ti? Devo tornar-me novo primeiro. Devo contar mais contigo, escutar e obedecer melhor a ti. Devo arriscar a minha vida confiando mais em ti e em tua Palavra. Creio, Senhor, em tua Palavra. Sei que é boa palavra para mim, boa palavra para cada dia e para cada situação. Sei que tem toda a força para renovar a mim e o mundo inteiro rumo a um mundo mais feliz e mais irmão. … (incluir preces concretas). Rompe as barreiras e distâncias que me separam de ti e do irmão! Disseste: Eis que faço novas todas as coisas. Começa comigo! Amém.
7. Hino: No. 67- 170 – 259.
Quem está em Cristo — cri a-tu-ra no-va é,
cri – a – tu – ra no – va.
VII — Bibliografia
– HAUCK, F. Der erste Brief des Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch, v. 10, Goettingen, 1935.
– JETTER, H. Meditação sobre 1 João 5.1-5. In: BREIT, H. GOPPELT, L, ed. Calwer Predigthilfen, v. 12, Stuttgart, 1973.
– MAURER.C. Meditação sobre 1 João 5.1-5. In: EICHHOLZ, G., ed. Herr tue meine Lippen auf, v. 2, Wuppertal-Barmen, 1959.
– NOVUM TESTAMENTUM GRAECE, ed. por K. ALAND et alil, 26a ed., Stuttgart, 1979.
– VOIGT, G. Meditação sobre 1 João 5.1-4. In: ___. Das heilige Volk, Göttingen, 1979.