Prédica: 1 Pedro 5.5c-11
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 15º.Domingo após Trindade
Data da Pregação: 07/09/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
Introdução
A carta de Pedro é um poço de surpresas! Como tudo o que é cheio de vida e encarnado na realidade local de seu tempo, a carta reflete as situações dos cristãos nos primeiros tempos, suas aflições, suas angústias, suas esperanças, suas propostas alternativas, subversivas. A carta reflete as contradições inerentes ao emaranhado re-criador da vida, e não evidencia um bloco monolítico, apologético de alguma doutrina, onde se priorizem a coerência e a lógica. Por isso é necessário evitar esses instrumentos na tentativa de compreensão e aproveitamento dessa riqueza em diversidade.
O presente auxílio homilético se compõe de: l – Considerações exegéticas, chegando, a partir da carta toda, ao texto; II – Meditação, partindo da carta toda, passando por algumas reflexões em excurso sobre eclesiologia, reestruturação, chegando ao texto; III – Indo para a prédica, me restrinjo ao texto e concluo com algumas proposições para orações litúrgicas.
I — Considerações exegéticas
Parece não haver dúvidas quanto ao endereço e ao lugar, onde foi escrita a 1a epístola de Pedro. O endereço são as várias comunidades dispersas na Ásia Menor (1 Pe 1.1), e o lugar, onde a carta foi escrita, é Babilônia (1 Pe 5.13), cognome dado na época para Roma.
Autor e data, no entanto, são incertos e interdependentes. 1 Pe 5.12 diz que a carta foi escrita por Silvano (abreviação Silas), fiol companheiro do apóstolo Paulo por vários anos. Dado ao bom grego e à presença de muitos pensamentos paulinos, grande parte dos exegetas admite que Silvano tenha redigido a carta livremente, e não por ditado. Supondo-se Pedro pelo menos como influente direto ou revisor de conteúdo, a carta deve ter sido escrita ainda antes de sua morto (64/65 d.C.).
Quanto ao conteúdo, a carta é um testemunho sublime do batismo. Já se pensou até que fosse uma alocução de batismo, um modelo de culto, uma espécie de carta circular. A carta não tem em vista uma comunidade com seus problemas e situações específicas, mas se refere aos cristãos em geral, dispersos no mundo como minoria que desaparece entre os pagãos, que se encontra no exílio face ao mundo, mas que deve cumprir a sua tarefa para com o mundo. Pedro não está escrevendo para judeu-cristãos, mas para cristãos também advindos do paganismo. Por isso a estranheza, a discriminação, o mundo ao redor, que pensa diferente e age diferente, não são conflitos meramente culturais ou étnicos, mas são marcos da nova vida em Cristo, que faz das pessoas subversivos em relação ao mundo e suas regras. Nas tribulações os cristãos se tornarão cônscios da sua condição de estranhos no mundo. Por sua essência, a igreja no mundo se encontra sempre no exílio e na minoria subordinada. Os cristãos estranhos, porque, como eleitos, foram tirados ao mundo. Os estrangeiros, peregrinos, não têm direitos de cidadania, lá onde moram. Apenas a consumação escatológica de transformação plena dará à Igreja a sua prerrogativa e realização.
Para todos tem um novo começo, o batismo, fundamento essencial da parênese de 1a Pedro: Fostes comprados com precioso sangue. Além disso, a epístola descreve o cristão nas ordens do mundo: obediência às autoridades, às leis, submissão dos escravos aos seus senhores (bons e maus), submissão das esposas aos seus maridos… A classe dos escravos é exortada de modo especial; a incorporação dos escravos na comunidade era uma tarefa importante. Cristo padecente é o modelo do escravo batido injustamente. Ao mesmo tempo uma lembrança da missão do servo sofredor (Is 53), é uma valorização ousada para a época: o sofrimento dos escravos, dos quais ninguém se importava até então, é unido com o que há de mais precioso, a paixão do Salvador. Muitas exortações se referem à prontidão para o sofrimento e a animação pastoral para a perseverança diante das adversidades; o sofrimento é uma provação, como a purificação do ouro pelo fogo, e está sendo suportado também pelos outros irmãos dispersos, e será só por pouco tempo. Ninguém sofra por merecê-lo como castigo justo por infração de leis justas; no entanto, felizes os que sofrem por causa de Cristo.
A carta é perpassada por muitas indicações para o AT no sentido de cumprimento das profecias. Outro fio vermelho que estigmatiza toda a carta é a expectativa pela volta imediata de Jesus, a escatologia iminente. Também pelas cartas de Paulo sabemos do peso fundamental que tinha essa esperança escatológica imediata na vida e organização dos primeiros cristãos. Até o conceito do que seja igreja ficou marcado pela escatologia iminente. Admitia-se uma missão passiva e uma ética individual de conduta, vida com tudo em comum com vistas ao breve fim. Penso ser essa questão fundamental para a compreensão reta da 1ª. carta de Pedro. Já na 2a carta de Pedro contra os enganadores e zombadores, se anima o povo cristão a esperar pela volta de Jesus Cristo que está demorada — se estima um espaço de até duas gerações entre as duas cartas.
O capítulo 5 se dirige principalmente aos presbíteros, mais velhos, de modo bem pastoral e fraternal, repartindo com toda humildade a tarefa de pastorear o rebanho; dirige-se também aos mais jovens, inquietos, afoitos, impacientes com a proposta de segurança, através da submissão aos mais velhos. O conteúdo do cap. 5 se poderia resumirem: Admoestações de conduta, aguentar a perseguição por pouco tempo, promessa de segurança definitiva que o próprio Cristo vai realizar. O que é dito em 5.5c-11 não é dito somente aos jovens, mas a todos (5b). O nosso texto de fato se parece muito com os votos de final de culto, as últimas dicas do oficiante, antes de despedir a comunidade: evitar a soberba e cultivar a humildade; confiar todas as preocupações a Deus que Ele tem cuidado; sobriedade e vigilância diante das tentações e do confundidor; (antídikos, traduzido no Almeida por 'adversário' tem também o sentido de acusador em processo jurídico; tanto as execuções espetaculares de cristãos nas arenas dos leões, como a perseguição pretensamente legítima dos processos judiciais são tentações que podem minar e enfraquecer a fé dos cristãos); por isso, resistência na fé, e sofrimento por pouco tempo, partilhado pelos irmãos dispersos; promessa de restauração plena pelo próprio Cristo que detém o domínio eterno.
II — Meditação
Para bem entender o conteúdo da 1a carta de Pedro, precisamos tirar da frente dos olhos as lentes embaciadas com leituras ideologicamente condicionadas ou subservientes, mesmo que a gente não as sinta como tais, a nível de consciência.
Ninguém de sã consciência, e tendo o evangelho libertador de Cristo como referencial, poderá ler a submissão às instituições humanas e governos, a submissão dos escravos a seus senhores, a submissão das esposas aos maridos… como prescrições eternas de conduta evangélica, senão como indicações de conduta, historicamente condicionadas com vistas ao imediato irrompimento da glória de Deus, do fim do mundo, da consumação escatológica; tudo isso vai terminar mesmo em seguida! Por isso não é mais preciso, nesse pouco tempo que ainda resta, transformar essa realidade social e política estruturalmente!
Assim como o apóstolo Paulo sugere que as pessoas guardem o seu estado civil de solteiros — mesmo na iminência do matrimônio —, que Filemom aceite o seu escravo Onésimo, como irmão em Cristo — mesmo sem exigir que Filemom o liberte e lute pela abolição da escravatura — para que diante do final glorioso iminente não se invistam mais energias inúteis em questões momentaneamente secundárias, assim também o apóstolo Pedro está sugerindo fortemente que diante da expectativa do fim iminente, não se mexa mais na ordem social e política e nas instituições humanas vigentes; tudo isso está por terminar logo em seguida! Pedro procura uma teologia encarnada e contextualizada na época, sob o peso primordial da expectativa escatológica iminente. Assim também nós precisamos teologizar encarnadamente sob o peso das nossas prioridades conjunturais. Se até Deus manifestou a sua eternidade, tornando-se perecível pessoa humana, dizendo sim à história em Jesus Cristo, porque nós pretenderíamos outro tipo de eternidade com as nossas elucubrações teóricas?
Os primeiros cristãos foram fazendo a dura experiência vivencial de não verem cumpridas as suas expectativas de volta imediata de Cristo (ainda nessa geração). Evidentemente foi necessário reciclar e reorganizar a tarefa dos cristãos no mundo, pensando numa demora imprevisível da parusia. Afirmo que ainda estamos nessa situação de imprevisível parusia. Ao lado disso constato que há vários movimentos que enfatizam a presença iminente da parusia. Descontando os ridículos matemáticos escatológicos, vejo que há basicamente duas motivações para essa promoção de neurose de final dos tempos: a) a motivação ideológica da qual se valem governos de dominação, para continuarem a explorar povos inteiros. Não é para menos que grande influência vem dos EUA; b) a motivação sócio-econômico-religiosa, como expressão de um povo arrastado para a miséria, que em meio a seu sofrimento se agarra a uma redentora perspectiva escatológica, como superação da sua opressão, sentida como insuperável, não por último, pela própria influência religiosa de dominação que sempre disse: Aguenta firme, que no céu vai ser melhor! O efeito é passividade. Dentro da nossa igreja existe uma certa coceira de ouvidos (2 Tm 4.3) por essa pregação de final dos tempos. Isso, aliado a uma compreensão pervertida da justificação pela fé somente, que isenta das obras, da prática da justiça, do serviço de amor, dá uma mistura religiosa fatal, resultante em passividade total.
Se hoje estamos numa situação de demora da parusia: 1) não nos deveria causar ansiedade uma perspectiva de volta repentina de Cristo, a não ser que estejamos de consciência suja em relação aos nossos comprometimentos. 2) Descobrimos que barbaridade se cometeu na igreja durante a história com a estratégia de evangelizar ou converter, incutindo medo do inferno de fogo ou da volta de Cristo ou do fim do mundo; cultivar o medo é um traço característico de dominação e não tem nada de evangélico. 3) Temos uma tarefa de evangelização também diante dos dominadores, governos, instituições, ricos… Se os cristãos passivamente baixarem a cabeça para tudo que é injustiça, qual é o serviço de amor e de evangelização que estarão prestando àqueles? Não estarão decretando, com a sua omissão, a irremediável condenação daqueles? Se os cristãos não chamarem a atenção deles, quem o fará? Permanece a pergunta pelo como fazê-lo; acho que devemos adotar também critério de eficiência! Com a pregação falada da Palavra de Deus? Com a pregação vivenciada através de atitudes da Palavra de Deus? Com o reforço a organizações populares (associações, sindicatos, partidos políticos…) que combatam a exploração e restrinjam a dominação, e assim vão mostrando aos opressores a necessidade de eles pararem com o mal que estão fazendo? Com violência individualizada, ou violência coletiva, organizada, para enfrentar a violência institucionalizada, a corrupção, os crimes do colarinho branco? Qual é um meio evangelicamente justificável e responsável, no compromisso único com o Reino de Deus e sua justiça, sob o senhorio exclusivo de Deus e não do nosso lugar social? Qual é, em vista do Reino, um meio mais eficaz de fazê-lo?
A 1ª. carta de Pedro evidencia uma eclesiologia marcada pela expectativa da iminente escatologia: a igreja é povo de Deus dos últimos tempos. Essa eclesiologia privilegia o sacerdócio real de todos os crentes, tem uma frágil estruturação de serviço, sua unidade se dá muito mais por sua vivência comum na dispersão, do que por alguma determinante institucional. Hoje temos um sacerdócio que não é nem real, nem de todos os crentes! Temos instituições fortes, multas vezes pesadas e pouco ágeis. O nosso relacionamento com os poderes constituídos, governos, instituições, classe dominante, ainda está marcado por evitar o choque.
Parece que a figura de pastores e ovelhas, expressa na carta, ainda está muito arraigada nas nossas comunidades. Evidencia uma sutil perversão que é interessante para pastores dominadores e para comunidades que querem evitar responsabilidades de cristãos adultos, além de ser uma cópia fiel das ordens do mundo. Entre ovelhas não tem democracia. Nessa figura os pastores estão sempre acima dela. Cristãos precisam se tornar adultos na fé, senão sempre teremos uma igreja fraca e mal preparada, para enfrentar os diabos confundidores, cujo rugir talvez nem é sentido como tão perigoso.
Ao mesmo tempo em que o estado busca por uma nova constituinte — e acho que as igrejas devem participar na escrita dessa carta de princípios e valores — dentro de nossa igreja procuramos por uma reestruturacão semelhante. Sintomático! Acho que a reestruturação não deve se restringir à ajeitamentos estruturais e administrativos, obviamente também necessários. No entanto, uma reestruturação precisa ir mais longe. Precisa considerar o lugar da igreja, redefinir a condição de membros, reavaliar as formas de funcionamento, também quanto à sua eficácia, considerar a essência de exílio, preparar para a tarefa de transformação, do serviço de amor dentro do mundo, do exercício de Reino de Deus traduzido em todos aqueles pequenos sinais Dele.
Existe uma diferença fundamental entre a mensagem dessa carta e, em especial, do nosso texto, para as comunidades de então e de agora: lá a espiritualidade advinha de uma forma subversiva de vida: obediência exclusiva a Deus! Aqui nos propomos a ajudar Deus a criar fé que venha pela pregação da Palavra. Lá a pregação, o consolo, a admoestação, o estimulo, o encorajamento vem no momento segundo, a partir de uma vivência comprometida, e por isso também perseguida. Aqui o propomos como momento primeiro, criador de compromisso, para comunidades/ajuntamentos que vivem a sua religiosidade socialmente e vivem a sua fé abstraída individualmente. Para que animar comunidades a aguentar perseguição, se não são perseguidas? Para que encorajar comunidades a resistirem firmes na fé? Que fé? Aquela do eu também acredito num ser superior, em Deus, ou Deus é um só ou igreja tem que ter, todas as igrejas são boas? Para que consolar nos sofrimentos, se eles como específico cristão inexistem? Evidentemente Pedro não pensa aqui nos doi-doizinhos particulares. Não é verdade que o Estado antigamente perseguia e hoje não persegue mais os cristãos! A experiência latino-americana está mostrando que o Estado só não persegue a fé que se ajusta aos seus interesses; nesse sentido a tal liberdade de fé é só uma meia verdade! Cristãos de verdade dificilmente se encontrarão vivendo na sombra; em todos os tempos sempre estavam e estarão no calor da luta, da evangelização transformadora, do fogo ardente (4.12), da perseguição.
III — Indo para a prédica
Estamos na semana da pátria. 7 de setembro, dia da Independência, é o dia de pregar sobre esse texto. Parece claro, mas nunca é demais enfatizar, que não somos um país independente. Estamos integrados dentro do sistema capitalista dependente. Até há pouco não podíamos escolher os nossos governantes internos. Continuamos na situação de depender de governantes externos que outros povos escolhem, e de negociações transnacionais sem vantagens para um país subdesenvolvido, condenado ao subdesenvolvimento, estoque de matéria prima, quintal das potências que a rigor fazem a história mundial. Precisamos lutar por nossa independência e autodeterminação; e o nosso texto fala em humilhar-se e em submissão!
Me parece que não será difícil demonstrar que humilhar-se sob a poderosa mão de Deus é conceder-lhe exclusividade na condução da história, e negar esse poder para quem quer que seja, interna ou externamente. A única submissão aceitável é ao próprio Deus e à sua vontade. Precisamos constantemente analisar nossas pequenas e grandes subserviências, para confrontá-las com esse imperativo de submissão incondicional a Deus. Com a auto-crítica é necessário acabar com nossas projeções interesseiras de Deus. Quem se deixa cair nas mãos de Deus, se sabe amparado e sustentado, parte para a luta, para o enfrentamento com todas as formas de demonização da criação de Deus. Desse enfrentamento vão resultar as situações nas quais a animação e o encorajamento do apóstolo Pedro vão ter vida em nós. O Estado não vai gostar, mas não é a ele que devemos submissão!
Se somos um recipiente cheio de próprias obras, merecimentos, capacidades, sabedoria, não tem mais lugar para Deus colocar sua graça! E por conseguinte não poderão resultar frutos dessa graça! Por isso Deus resiste aos soberbos.
Vários pequenos grupos de cristãos, mundo a fora, vários não ligados à alguma igreja, outros nem cristãos, estão dando sou testemunho com toda sorte de adversidades. Para eles as palavras do 110:1 só texto são consolo e animação.
IV — Subsídios Litúrgicos
1. Confissão de pecados: Deus, Todo Poderoso, querido Pai! Nesse momento queremos trazer para diante do Ti todo o nosso pecado. Não os enumeramos, pois não queremos correr o risco de esquecermos algum. Confessamos-Te a nossa imperfeição, a nossa corrupção. Queremos nos lembrar hoje em especial do pecado de não termos ajudado a fermentara nossa nação com a Tua transformadora Palavra; que não nos humilhamos perante Ti e não nos submetemos à Tua santa vontade. Somos como sal que perdeu seu sabor, sua capacidade de temperar; na verdade só servimos mesmo para sermos jogados fora. Mas a Tua infinita bondade e graça nos ampara. Perdoa-nos todo o nosso pecado, e dispõe-nos a irmos ao mundo com a Tua demolidora Palavra, a lutarmos pela dignidade das pessoas humanas, pela independência de nossa nação. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Querido Pai Celeste! Teu é o poder sobre todas as pessoas e sobre todas as coisas! Pedimos que estejas entre nós agora com a Tua santa Palavra. Abre-nos a boca e os ouvidos, concede-nos entendimento sobre a Tua santa vontade. Encoraja-nos a superarmos os nossos medos e receios, e a nos jogarmos de corpo e alma nas Tuas mãos, realizando com a forca que Tu nos dás, as tarefas com que nos tornas dignos. Amém.
3. Assunto para oração final: Invocação. Agradecimento pelo culto. Pensamentos extraídos da prédica. Intercessão em favor daqueles que estão sofrendo por causa da fé. Pedido de que a Constituinte não seja somente mais um arranjo dos poderosos; coragem para lutar pela independência. Glorificação.
V — Bibliografia
– La Nueva Bíblia Latino-Americana. 38.ed. Ediciones Paulinas/ Verbo Divino, 1981.
– SCHELKE, K.H. Teologia do Novo Testamento. São Paulo, 1977.
– VOIGT, G. Meditação sobre 1 Pedro 5.5c-11. In: — Das heilige Volk. Göttingen, 1979.