Prédica: Atos 2.1-13
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação:18/05/1986
Proclamar Libertação – Volume XI
l — Considerações introdutórias
O relato de Pentecostes é central para a história da fundação da Igreja. Ele é decisivo para a orientação das comunidades cristãs de todos os tempos e para a função inspiradora e criadora delas no mundo. Mesmo assim, este texto causa embaraço ao leitor. Há quem o considere um dos textos mais enigmáticos do Novo Testamento. Realmente, é difícil e complexo. Mas nem por isso precisa ser desconcertante. Veremos, mais adiante, como pode ser situado e qual sua mensagem.
Quanto à delimitação da perícope, é necessário ver que o v. 13, de fato, sugere uma cisão. Do contrário teríamos que ir até o v. 21 ou mesmo até o v. 41. A perícope tornar-se-ia demasiadamente extensa. Mas com essa delimitação, com a qual concordamos, corre-se o perigo de se fixar a atenção nos fenómenos aí descritos. Poderia acontecer que a palavra viesse a ser relegada a um segundo plano. Em outros termos: corre-se o risco de destacar o miraculoso como se fosse possível falar do Espírito Santo sem a proclamação da palavra.
A relação Espírito-Palavra foi decisiva para os reformadores. Lutero refere-se a Atos 2 assim: Nessa santa e alegre festa de pentecostes comemoramos agradecidos a nosso amado Senhor Deus o grande e infinito benefício que nos demonstrou na terra, ao revelar a nós, pobres homens, desde o céu, sua santa e querida palavra — não uma palavra qualquer, mas uma palavra especial e diferente, contrária à lei de Moisés. Pois nesse dia começou o reino de Cristo por intermédio dos apóstolos, e foi revelado a todo mundo por meio do evangelho. (Castelo Forte, 1983 Meditação para o dia 22 de maio).
Gostaria de acrescentar ainda uma terceira observação intro¬dutória. Para quem se preocupa com uma reconstrução histórica dos acontecimentos de Pentecostes nos moldes de reportagem teríamos que dizer o seguinte:
O relato de Atos 2.1-13 não quer ser uma reportagem, não quer ser um relato histórico. Temos a nossa frente um belíssimo documento de fé. Lucas expressa o que significa tanto para os apóstolos como para as comunidades primitivas o fato de terem recebido o Poder do Altíssimo, o Espírito Santo. No todo da teologia de Lucas, começa um novo tempo, o tempo da Igreja! (cf. H. Conzelmann. Die Mitte der Zeit). A existência cristã atual e a missão da Igreja no mundo receberam do próprio Deus consistência e sentido.
II – Pano de Fundo
1. Alguns elementos centrais da esperança judaica.
O mundo judaico no tempo de Jesus vivia na esperança de uma profunda renovação. Esperava-se que a partir desta renovação fosse colocado fim à iniquidade do homem. Este passaria a viver para sempre na santidade, na fidelidade e na verdade. Esta esperança vem de longe e está muito bem expressa em Ezequiel 36.24-28. Tomar-vos-ei de entre as nações e vos congregarei de todos os países, e vos trarei para a vossa terra. Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todos as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo, e porei em vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro em vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis. Habitareis na terra que eu dei a vossos pais; vós sereis o meu povo, e eu serei o vosso Deus.
Junto com a esperança pela renovação do homem, nos fins dos tempos, vai a expectativa do grande ajuntamento escatológico sobre a montanha de Sião. Desde Isaías até Zacarias esse tema está presente. O povo judaico espalhado em terras estrangeiras deverá voltar a Jerusalém.
Fala-se em uma subida para uma terra nova na qual Deus firmaria aliança eterna de paz com o seu povo.
Neste quadro havia lugar também para o futuro das nações.
Nos últimos dias acontecerá que o monte da casa do Senhor será estabelecido no cume dos montes, e se elevará sobre os outeiros, e para ele afluirão todos os povos. Irão muitas nações, e dirão: Vinde, e subamos ao monte do Senhor, e à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei e a palavra do Senhor de Jerusalém. Ele julgará entre os povos, e corrigirá muitas nações; estes converterão as suas espadas em relhas de arado, e suas lanças em podadeiras: uma nação não levantará a espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerra. (Is 2.2-4) ,
À vista de todos os povos serão proclamadas a lei e a palavra do Senhor. Recordamos a partir daí, a teofania no monte do Sinai quando Deus promulgou a sua primeira lei. Toda idolatria terá fim. O homem não criará ídolos, nem se colocará ele mesmo no lugar de Deus. Parece haver referência à lenda da Torre de Bebei e ao orgulho humano.
Espera-se a vinda de um Messias e o derramamento do Espírito. A missão do Messias seria a renovação da pessoa humana. Por isso receberia o Espírito Criador. Só no âmbito da renovação Deus seria confessado na verdade.
2. A festa de pentecostes
Pentecostes designa a Festa das Semanas (Lv. 23.15) Celebrava-se a ceifa de trigo. Expressava-se o agradecimento pela colheita. Chamava-se também de Assembleia de Encerramento (ASERET), pois era celebrada sete semanas (50 dias) após o início da colheita. Vê-se, pois, que era uma festa essencialmente agrícola. A esse significado original juntou-se, no decorrer do tempo, um segundo sentido. A Festa das Semanas foi relacionada à história da Salvação. Concretamente foi ligada à outorga da Lei no Sinai. Este significado é de particular importância para a interpretação de Atos 2!
Assim, Pentecostes era a festa da Aliança que Deus firmara e que está expressa na TORA.
III — Interpretação de Atos 2,1-13
V. 1-4: Quando é celebrado o Pentecostes cristão então se testemunha o cumprimento do que se expressava na esperança judaica. Cumpre-se o pentecostes do Antigo Testamento: Temos o início da grande seara (Lc 10.2), louvor a Deus por suas dádivas, a proclamação da Nova Aliança em Jesus Cristo, e a existência da comunidade escatológica; chamada a espalhar-se pelo mundo inteiro.
Para descrever este evento, Lucas utiliza uma linguagem cheia de simbologia. O simbolismo relembra as teofanias do Antigo Testamento. (2 Sm 22.16; Jó 37 s; Ez 13.13).
O vento é um sinal da presença de Deus como espírito. Outro símbolo é o fogo. Também na teofania no Sinai temos o fogo a acompanhar a manifestação de Deus. Todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele como fogo; a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente”. (Ex 19.18). Veio do céu um som, como de um vento impetuoso…. e apareceram, distribuídas entre eles, línguas de fogo…
Lucas fala da vinda do Espírito de maneira muito concreta. Descreve-o como sendo quase palpável quando afirma que encheu toda a casa. Mas isso tudo está a serviço da palavra de Deus. O que deve ocorrer é o testemunho intrépido e corajoso a respeito de Deus perante o mundo inteiro. Aqui bem como também nos outros evangelhos os sinais estão a serviço da palavra.
O lugar onde estiverem reunidos (não só os Apóstolos, mas talvez uma pequena multidão entre Lc 1.13 e 1.15) o autor entende como novo Sinai, a partir do qual a palavra de Deus se manifesta poderosa. Também a Tora era entendida como poderosa e universal. Quanto aos efeitos, uns afirmavam dela que aterrorizou os gentios e mesmo os aniquilou. Outros, porém, defendiam que a Tora concedeu vida às nações. A segunda interpretação está na linha do nosso texto e das expectativas judaicas quanto às nações. A outorga da lei sobre o Sinai, em todo o caso, foi entendida como ato divino de alcance universal. Tradições rabínicas posteriores ao primeiro século, diziam que a lei tinha sido promulgada em setenta línguas a fim de que todos os povos da terra pudessem ouvir a voz de Deus. A única voz tinha se dividido em sete vezes e essas, por suas vez, em setenta línguas (Strack Billerbeck, II p. 604-605). Com isso se acentua o alcance universal da voz de Deus.
Se observarmos esta intenção, então algumas dificuldades, comumente levantadas, se desfazem. Perde, por exemplo, sua relevância a pergunta se o evento de Pentecostes se deu nos que passaram a falar ou nos que ouviram. Resolve-se, também, a difícil questão do falarem outros línguas. Muitos intérpretes vêem aqui a capacidade de falar em línguas não-humanas. Surge a pergunta: Trata-se dum falarem língua não humanas (dos anjos 1 Co 13.1) ou em línguas humanas? Há estudiosos que sustentam a partir de análises linguísticas modernas das línguas faladas nos movimentos pentecostais atuais, que se trata, de fato, de línguas não-humanas. Mesmo assim, pessoas que as ouvem podem chegar a ouvir suas próprias línguas faladas por aqueles que têm o dom de línguas. (Marshall, p. 70).
Mas quanto a isso, deve-se constatar que a glossolalia nunca tem sido método missionário na comunidade primitiva. Foi, antes, um entre os frutos da prédica missionária! O que o nosso texto destaca é a universalidade da mensagem do evangelho! Através da soberana iniciativa de Deus a comunidade primitiva é arrancada do seu silencioso Isolamento como de um exílio espiritual. Ela pode e deve voltar a falar e testemunhar Jesus de tal forma que o mundo inteiro seja atingido. (Casalis, p. 266). A comunidade torna-se o lugar do Espírito. Torna-se o lugar da abertura e da vida, do reconhecimento e do despertar, da libertação originada do amor. (Samain, p. 355).
No mesmo sentido da universalidade da palavra aponta também a enumeração das nações.
Nos v. 9-11 é curiosa essa lista das nacionalidades representadas. É surpreendente a inclusão de pessoas de Creta e da Arábia. Uma explicação satisfatória sobre o porquê dessa seleção específica de países e por que exatamente esta ordem não se tem conseguido. O que se pode dizer é que havia uma população judaica considerável em cada uma das áreas mencionadas. Casalis aceita a teoria de uma lista antioquena que relaciona as diversas sinagogas existentes na Antioquia com a finalidade de mostrar a extensão da diáspora e que os judeus dispersos estariam representando toda humanidade (p. 267).
Outros concluem simplesmente que a enumeração vem a ser uma indicação de que estavam presentes pessoas de todas as partes do mundo conhecido na época. O sentido é que com o evento de Pentecostes todos sem distinção, são atingidos existencialmente, isto é, todos são atingidos no centro da sua existência.
Aí se impõe como o termo de comparação a narrativa da Torre de Babel. Através de seu juízo gracioso (confusão das línguas) Deus Impediu uma unidade que se baseasse na soberba humana. Agora se anuncia no poder do Espírito: Por intermédio de Jesus, o nazareno que foi crucificado (cf At 2.22,23) as divisões são superadas! Querer tornar célebre o próprio nome (Gn 11.4) leva à catástrofe. Mas o poder do amor que se doa põe um novo início. Em vez de divisão temos a comunhão dos crentes, criada pelo Espírito Santo.
V. 12-13: A primeira reação era de incompreensão. Todos, atônitos e perplexos, interpelavam uns aos outros: Que quer isso dizer? Essa reação não se dá por causa do ruído do vento, nem por causa de uma suposta glossolalia, mas por causa do conteúdo da palavra! Por causa da loucura da palavra da cruz (1 Co 1.18). Alguns, zombando, diziam estarem os pregadores embriagados.
No ouvir da mensagem da cruz se dá Pentecoste também hoje.
IV — Sugestões para a prédica
1.Posso imaginar para o início uma descrição da nossa situação. Vivemos tão separados!
Vê a desunião, Senhor!
Tua grei, ó Bom Pastor,
separada, em dispersão,
só em ti terá união!
Ó vem, Senhor!
Eis os povos, a clamar,
por teu Reino a esperar;
toda a terra em trevas jaz,
aguardando a tua paz.
Ó vem, Senhor (Hinos do Povo de Deus, n. 92).
Podemos apontar para nossa fraqueza, para nossa pequenez como comunidade. Apesar de realizações em nosso meio, não deixa¬mos de ser mendigos.
2. É graça de Deus se ele faz de nós seus instrumentos no mundo. O Espírito Santo vem a nós. Ele é a presença de Deus não só com o punhado de gente de Atos 2, mas com os fiéis de todos os tempos. Desde o céu revela a nós pobres homens, a sua palavra. Temos a tarefa do testemunho e da missão. Mas não somos donos da palavra. Não somos nós que determinamos sua ação! É o Espírito que vivifica! Mas ai de nós se deixamos de testemunhar! Precisamos falar dos grandes feitos de Deus!
Cabe-nos procurar linguagem adequada e compreensível. De nada adianta falarmos em categorias que não dizem mais nada a ninguém. Além disso, deixemos valer o verdadeiro escândalo, a palavra da cruz, e não justifiquemos os escândalos que nós mesmos causamos.
Somente o Espírito Santo nos dá entendimento dessa palavra. Por isso, nossa oração, por excelência, deve ser: Vem, Espírito Criador! Só então serão vencidas barreiras e eliminadas as divisões. Só as¬sim seremos o lugar da abertura e da vida. Só assim seremos a comunidade chamada a espalhar-se pelo mundo inteiro!
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissões de pecados: Senhor, tantas vezes temos mostrado indiferença quanto à promoção de vida verdadeira. Temos deixado injustiça acontecer ao nosso redor. Temos promovido injustiça. Não andamos no teu Espírito. Não temos buscado a tua presença. Não temos orado pela vinda do Espírito Santo, para que ele vivifique a comunidade. Pensamos que podemos construir amor, justiça e fraternidade a partir do nosso poder.
Pedimos-te humildemente: Derrama sobre nós o teu Espírito e tem piedade de nós!
2. Oração de coleta: Senhor, Santo e eterno Deus.
Dá-nos o poder do Espírito Santo.
Faze de nós mensageiros da paz
e testemunhas da verdade.
Ouve-nos através de Jesus Cristo que
contigo e o Espírito Santo reina
de eternidade e eternidade.
3. Assuntos para a oração final: Pedir para que Deus dê a sua comunidade a capacidade de discernir os espíritos. Em nosso tempo há tantos espíritos querendo se colocar como o Espírito da verdade: que a comunidade tenha clareza em que espirito é conduzida a política do nosso país. Por todos os que sofrem: doentes, moribundos, pobres, desprezados e marginalizados — pela paz no mundo, pela vinda do Espirito Criador.
VI. Bibliografia:
– CASALIS, G. Meditação sobre Atos 2.1-14a, 22-23,36. In: Göttinger Predigt-Meditationen. Göttingen, 22(2):264-270, 1968.
– HAENCHEN, E. Die Apostelgeschichte. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 6. ed. Göttingen, 1968.
– MARSHALL, l. H. Atos dos Apóstolos. São Paulo, Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1980.
– SAMAIN, E. A Igreja, uma Comunidade Libertadora e Criadora? In: Revista Eclesiástica Brasileira, São Paulo, 35 (138): 326-62,1975.