Prédica: Atos 2.41a,42-47
Autor: Bertholdo Weber
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 13/07/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — Introdução
Nesta perícope o autor dos Atos dos Apóstolos focaliza os primórdios da comunidade de Jerusalém depois de Pentecostes, acontecimento que deu origem à igreja cristã (2.1-13): Cumprindo suas promessas Deus derramou o seu Espírito Santo sobre o povo reunido de todas as nações, raças e línguas, encetando-se, nesta ocasião, a obra da Missão Cristã mundial da qual Jesus incumbiu os seus discípulos. Imediatamente depois, os apóstolos, na pessoa de Pedro, começaram a proclamar publicamente e com franqueza as grandezas de Deus, realizadas na vida, morte e ressurreição de Cristo (2.14-36). Esta mensagem, anunciada no poder do Espírito, despertou nos ouvintes o arrependimento (compungiu-se-lhes o coração), aceitaram com fé a palavra e foram batizados. Foi este o começo maravilhoso da comunidade que encontramos reunida no templo de Jerusalém e cuja vida comunitária nos é relatada em nosso texto.
Quanto á sua forma literária, trata-se de um sumário da autoria de Lucas que, sem outros subsídios, compõe este relato sucinto da vida da comunidade primitiva, para inseri-lo habilmente entre os discursos de Pedro. O que neste resumo nos é narrado do convívio dos primeiros cristãos parece ser mais um ideal do que realidade histórica. O próprio Lucas, porém, não pretende pintar uma imagem romântica daqueles bons tempos do primeiro amor, de uma comunidade quase perfeita e sem máculas. Pois ele não deixa de mencionar eventos contrários a este ideal, p. ex. a fraude de Ananias e Safira (5.1ss) e o desentendimento entre cristãos helenistas e hebreus (6.1ss). — O amor não exclui a crítica. O objetivo de Lucas é manifestar a discrepância existente entre este modelo da vida comunitária da primeira cristandade e a realidade da comunidade para a qual escreve, apresentando a estes cristãos, neste sumário, um espelho de uma comunidade como o Senhor a quer.
Neste retraio da comunidade primitiva é destacada a comunhão cristã que merece este nome, em cuja vida não falta nenhum dos elementos essenciais mencionados no texto.
II — Considerações exegéticas
Os traços típicos e elementos básicos com que Lucas descreve este quadro generalizado da vida comunitária encontram-se enumerados no v. 42:
Doutrina dos apóstolos (pregação da palavra); comunhão; partir do pão e a oração. Nestes sinais é reconhecível a igreja cristã (Lutero).
Dos recém-batizados, integrados na comunhão dos fiéis, é dito que perseveraram na doutrina dos apóstolos.
Perseverar não significa simplesmente conservar a tradição recebida, mas sim, ocupar-se assiduamente com a Palavra anunciada pelos apóstolos e praticá-la na vida, porque a comunidade vive do ouvir e praticar deste testemunho vivo e atualizado do Evangelho, inserido em seu contexto vivencial. Toda sua vida está envolvida num processo de aprendizagem perseverante. A doutrina sem a vivência e a práxis concretas, por mais pura e ortodoxa que seja, fica vazia e infrutífera. A palavra insiste na ação e esta confirma a palavra. — Também a comunhão (KOINÕNIA) não consiste só em sentimentos religiosos e interesses individuais iguais. A KOINÕNIA caracteriza-se pela participação ativa de todos na solidariedade fraterna e se manifesta no serviço do amor e na partilha dos bens com os pobres e necessitados.
Esta união fraterna realiza-se, em primeiro lugar, na fração do pão, i.é., na comunhão eucarística com o Senhor presente, celebrada com gratidão e júbilo, já antecipando a celebração escatológica no Reino de Deus; e, ao mesmo tempo, no partir do pão com os famintos e necessitados. Naquele tempo ainda não se separava a refeição comum (para saciar a fome) da celebração da Santa Ceia. O pão eucarístico e o pão de cada dia que falta na mesa do pobre, são inseparáveis. O partir do pão na celebração da Santa Ceia implica o repartir do pão e de todos os bens com os necessitados e envolve a comunidade na luta por justiça e paz. O culto autêntico envia a comunidade para testemunhar esta comunhão de fé e amor em meio à realidade da vida do povo.
Estes primeiros cristãos participam do Culto tradicional no templo, cientes de representar o novo povo de Deus, herdeiro de suas promessas. Cantaram e oraram Salmos do AT, e formularam espontaneamente suas próprias orações, suas preocupações e anseios concretos, participando desta maneira da intercessão sacerdotal de Cristo perante o Pai.
Pregação da palavra — comunhão — partir do pão e oração são os elementos constitutivos do Culto cristão, no sentido amplo e dinâmico, com consequências concretas para a vida da comunidade e suas reuniões em casas (partiam pão de casa em casa).
Também os muitos prodígios e sinais que o autor menciona (43) e exemplifica nos próximos capítulos, não têm valor próprio, mas acompanham, confirmam e autenticam a pregação apostólica. Tudo acontece em temor e humildade perante Deus para testemunhar o poder do amor de Cristo que se compadece dos fracos; tudo é feito em seu nome e para sua glória e não para impressionar as massas através de um show sensacionalista de curas (seitas!)
Conforme já vimos, a comunhão não se esgota em pura espiritualidade mas esta se estende até os bens materiais e da propriedade particular: Tinham tudo em comum (44). Isto é algo diferente do que dar das sobras para a coleta ou pagar (de mau grado) a contribuição estipulada pela Igreja. O assim chamado comunismo caritativo da primeira Cristandade em Jerusalém não tem a ver com um sistema revolucionário que estabelece uma nova lei ou programa social ou que visa a abolição da propriedade privada nos meios de produção (comunismo), mas sim, é fruto e resposta espontânea à mensagem do amor de Cristo que veio para servir e dar sua vida em nosso resgate. Em face da necessidade e da fome de irmãos e irmãs não faltava quem voluntariamente vendia sua propriedade ou, de caso em caso, sacrificava bens e imóveis (cf. 4.36s) a fim de que o produto fosse distribuído àqueles que necessitavam de ajuda. A KOINÒNIA da fé implica e produz a diaconia do amor. Não se tratava de simplesmente abolir a propriedade particular, mas esta é subordinada e deve servir ao bem-estar comum de todos. Numa comunidade de fiéis na qual alguns sofrem penúria e privação enquanto outros vivem à farta, é negada esta comunhão de solidariedade fraterna. Porque nesta comunhão de amor e serviço tudo é comum a todos e as posses de um são também propriedade do outro e não exclusivamente sua (Lutero). Isto quer dizer que em cima de toda propriedade privada pesa uma hipoteca social. Ainda que não se possa exigir de nós a simples imitação legalista deste modelo comunitário, ele não deixa de ser um desafio à comunidade de hoje, especialmente em nosso contexto histórico onde os desníveis de classes sociais se fazem presentes na vida da própria igreja. A partilha dos dons e bens que temos recebido, com aqueles que hoje lutam pela sobrevivência, é critério para a autenticidade da nossa comunhão e espiritualidade. A disposição grata e espontânea de sacrificar bens e posses à medida que membros-irmãos têm necessidade caracteriza a KOINÕNIA dos primeiros cristãos e nos pergunta pela nossa atitude diante da fome e da miséria em que vive a maioria do nosso povo.
III — A Caminho para a prédica
Com estas últimas reflexões que encerram a parte exegética, já antecipamos parcialmente a meditação que conduz à prédica propriamente dita.
Pouco importa para a prédica se este relato dos Atos dos Apóstolos corresponde à realidade histórica ou se se trata de uma imagem ideal que Lucas apresenta os seus leitores sobre a vida da comunidade primitiva, embora também nela não faltassem tensões entre grupos antagónicos. Em todo caso não se pode tratar de copiar para a comunidade de hoje, que vive em circunstâncias sócio-históricas diferentes, nem de imitar esse modelo ideal de vida comunitária. Mais importante do que isso, é que vejamos sua origem na ação de Deus que por seu Espírito reuniu e uniu, através da pregação do Evangelho de Cristo, pessoas entre si diversas, numa comunhão vital de irmãos e irmãs. Já a comunhão do Jesus terrestre com seus discípulos era comunhão de vida total em todas as suas relações. Na comunidade a vida individual •desenrola-se na convivência dos discípulos. É vida nova, comunitária, regenerada pelo Espírito transformador de Deus, inteiramente à disposição e a serviço de outros, especificamente dos necessitados, fracos e pobres. E embora não fosse a igreja modelar e perfeita, havia entre os membros uma convergência central, a comunhão nos elementos essenciais para a vida, a fé e a missão de toda a comunidade de Cristo: Preservaram na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações.
O centro desta vida comunitária e a fonte de sua permanente renovação é o Culto cristão, no sentido mais amplo. Toda comunhão cristã se move entre Palavra e sacramento e a comunhão que tem tal origem é comunhão plena à qual devem subordinar-se também as coisas e bens dessa vida. Em liberdade, alegria e no poder do Espírito Santo formou-se uma comunhão na qual ninguém passava necessidade, porque se distribuía à medida que alguém tinha necessidade, comunhão na qual ninguém considerava exclusivamente sua nenhuma das coisas que possuía. Comunhão é participação que partilha espontaneamente, em liberdade evangélica, que não necessita de pressão de fora. Ela é reação à ação do amor de Cristo que se deu em favor de nós. Por isto ela contraria diametralmente o individualismo egoísta que, através de competição desenfreada às custas dos fracos e pobres, domina a vida da sociedade moderna. Diante das estruturas iníquas do sistema capitalista explorador não basta limitar-se ao serviço caritativo de assistência aos necessitados. Por mais necessário e indispensável que seja essa ajuda prestada por amor ao próximo necessitado, a responsabilidade social dos cristãos leva-os a engajar-se, inclusive, na luta por uma sociedade mais justa e humana. À luz do Evangelho o cristão vê não somente os sintomas, mas a raiz dos males: o poder do mal. Em face da injustiça social e violência institucional a nossa comunhão espiritual é desafiada para denunciar as causas, o pecado pessoal e estrutural, desta situação conflitiva que também afeta a comunidade, e buscar alternativas e modelos de vivência social diferentes.
O que houve na primeira cristandade era fruto do Espírito renovador e libertador de Cristo que cria e renova a comunidade que existe para os outros. Ela participa da missão do Senhor, de sua doação e paixão pelos irmãos sofredores e necessitados. Em consequência, o partir do pão na celebração da Santa Ceia implica em repartir o pão de cada dia que está faltando nas mesas de milhares de famílias, com crianças famintas e subnutridas e os pais lutando pela sobrevivência. Quando é dito que os primeiros cristãos tinham tudo em comum e alguns ofereceram um sacrifício de sua propriedade em favor dos necessitados, então não se trata de simplesmente abolir toda a propriedade particular mas uma ilustração do poder do amor, de solidariedade espontânea e de mútua aceitação fraterna. Em outras palavras: a comunhão em Cristo e entre os membros nunca é puramente espiritual, mas inclui também o corpo e os bens materiais. Quem concede ao irmão balizado o direito de participar da comunhão da Ceia e das dádivas da salvação, negando-lhe, porém, a comunhão diária e as dádivas terrenas, permitindo conscientemente que o irmão passe necessidade, esse tal torna-se culpado do corpo de Cristo. Cristãos deveriam saber que a terra se destina a todos e seus bens devem servir a todos e não apenas a uma minoria dominante (Problema da Reforma Agrária). O nosso engajamento pela justiça e paz, porém, necessita, para não se tornar ativismo superficial, do encontro com Deus, na meditação e oração. A ação de serviço ao irmão e de solidariedades com suas lutas de libertação nasce e haure forças deste encontro dialogal com Deus e os irmãos. Especialmente nos grupos comprometidos a reflexão da Palavra e a oração são essencialmente um compartilhar de experiências e práticas, à luz da fé e do Evangelho. Esta oração libertadora também serve de exame crítico das práticas e atitudes dos próprios membros da comunidade. Urge que a comunidade repense à luz do nosso texto e do nosso contexto, as prioridades de sua missão e acerte o desafio desta mensagem ao seu estilo de vida, tanto em nível comunitário como pessoal.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai: Perante ti podemos confessar a nossa culpa, nossas faltas e preocupações e todos os problemas que nos afligem. Confessamos a nossa falta de verdadeira comunhão fraterna, de amor ativo e de disposição para perdoar e repartir o que temos com aqueles que precisam do nosso amor e auxílio.
Confessamos que frequentemente reivindicamos justiça e compaixão para nós mesmos, mas raras vezes para outros. Deixamos de fazer o que deveríamos ter feito e mais ainda fizemos contra a tua vontade. Senhor, sinceramente arrependidos, pedimos-te por perdão. Concede-nos o teu Espírito Santo que pode renovar-nos e transformar o nosso egoísmo em gratidão e serviço ao próximo.
Tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Senhor, tu prometeste estar em meio à tua comunidade reunida em teu nome. Dá-nos da plenitude do teu Espírito vida renovada e cria entre nós a comunhão fraterna que vence nosso individualismo e nos abra as mãos e corações para com os irmãos necessitados e oprimidos. Confiamos no poder do teu amor. Amém.
3. Assuntos para a oração final: agradecer pela palavra anunciada e pela comunhão de fé experimentada; reconhecer e assumir a missão da comunidade de testemunhar o Evangelho do amor ao mundo e o compromisso de solidariedade com os necessitados e sofredores em nosso meio; conscientizar-se da corresponsabilidade ativa na luta por condições mais justas e mais humanas para todos; interceder por todos que sofrem pressão e penúria sem a possibilidade de participarem na distribuição justa dos bens da terra; mencionar setores sociais concretos de grande necessidade, p. ex. as crianças sem alimentação adequada, os idosos e solitários, os doentes e aflitos, dosam pregados e injustiçados; intercessão pela igreja, sua direção e missão; pela comunidade local, seus grupos e obreiros e seu trabalho comunitário e social; e por todos que, corajosos e responsavelmente, se empenham por justiça e paz no mundo; doxologia final. Pai nosso.
V — Bibliografia
– BOFF, L O caminhar da Igreja com os oprimidos. Rio de Janeiro, 1980.
– Cadernos do CEDI 12. Jesus Cristo, A Vida do Mundo. (Sexta Assembleia do CMl). Rio de Janeiro, 1984.
– GOLLWITZER, H. Meditação sobre Atos 2.41-47. In: FALKENROTH, A. HELD, H.J. ed. Hören und Fragen v. 4/2. Neukirchen-VIuyn, 1976.
– MARASCHIN, J. C. e outros. A vida em meio à morte num pais do Terceiro Mundo. São Paulo, 1983.
– VOIGT, G. Meditação sobre Atos 2.41a,42-47. In:____. Das heilige Volk. Göttingen, 1979.