Prédica: Filipenses 3.17-21
Autor: Vítor Westhelle
Data Litúrgica: 23º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 02/11/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — O texto
Estamos defrontados com um texto parenético. Trata-se de uma exortação do apóstolo Paulo à comunidade de Filipos. Paulo encontra-se preso. Sua admonição deve ser compreendida como uma busca por definir o caráter evangélico de uma comunidade ameaçada por distenções internas e ataques externos. A configuração do perigo que o apóstolo crê encontrar no contexto da comunidade de Filipos pode apenas ser determinada através de conjeturas. Nas perícopes que precedem o texto a ser aqui discutido reconhece-se um esboço de caracterização dos desvios teológicos que afetam a comunidade. Em 3.2 fala-se de cães, que logo são identificados como um grupo judaizante que através do corpo das cartas paulinas caracterizam-se como um dos grandes inimigos teológicos do apóstolo. Contra estes, Paulo recorre à sua clássica distinção entre carne e espírito, classificando a religiosidade destes como sendo baseada na circuncisão da carne, na justificação pela lei mosaica, e não na graça divina.
Um segundo grupo passa então a ser o alvo de ataque. Em 3.12-16 encontra-se uma polêmica dirigida em tom indireto e já menos frenético que a anterior a uma tendência teológica dentro da comunidade que se caracteriza por possuir uma auto-consciência da perfeição alcançada através de Cristo. A descrição desse grupo carece de maiores definições. É de plausível suposição que os assim chamados perfeitos sejam cristãos que se assemelham em sua teologia e prática cúltica aos carismáticos da comunidade de Corinto aos quais o apóstolo dedicou extensas admoestações. Aqui Paulo enfatiza que a verdadeira perfeição não é a perfeição de uma imagem, de algo já alcançado, de uma salvação já possuída. Pode-se falar em perfeição apenas como a perfeição de uma caminhada a um alvo ainda a ser atingido, a perfeição da esperança, a perfeição do ato e não do resultado, do labutar e não da obra.
Isso nos traz à perícope de que tratamos. Há uma clara ruptura estrutural no discurso que é introduzido com um imperativo no v.17.
No entanto, não se trata de um texto desconexo da perícope anterior. Na verdade, o v.16 já sugere a transição para a nova categoria teológica que Paulo emprega como catalizadora da temática que se segue, i.e., o problema da mimese, ou seja, da imitação ou representação.
Mas a quem se dirige a polêmica dos vv.17-21? Qual é o grupo que se encontra na linha de tiro? Este não é de fácil caracterização. Poucos elementos são os que nos permitem elaborar um esboço. Vejamos os mais importantes.
1) Paulo declara que são muitos e que a consequência de sua postura (inimigos da cruz de Cristo) afeta-o tão pessoalmente a ponto de chorar. Isso permite concluir que estes de quem aqui o apóstolo fala não devem ser confundidos com aqueles a quem acima chamara cães tratando-os com despeito apenas. Por esses agora chora. Com isso pode-se inferir que se trata de um grupo que emergiu do seio da comunidade e que tende a se confundir com os nossos do apóstolo. São joio no meio do trigo. Contudo, também não são os perfeitos da perícope anterior a quem a exortação visava corrigir e não condenar. Aqui as palavras de Paulo são duras e condenatórias, embora sentidas.
2) São inimigos da cruz de Cristo e assim recebem o peremptório veredito: seu fim é a perdição. A expressão cruz de Cristo é qualificadora. Paulo deixa entrever que se declaram cristãos, mas que na verdade traem a cruz. A densidade teológica dessa expressão não pode ser deduzida em abstrato como, por exemplo, assumir que se trate de gnósticos com uma cristologia docética. Tal caracterização não corresponderia aos erros descritos no v.19.
3) Seu Deus é o ventre e sua glória está na sua vergonha (Almeida: confusão) e só pensam em coisas terrenas. Essa descrição no v.19 permite deduzir que são pessoas preocupadas com seu bem-estar físico (o que é indiscutivelmente reconhecido pela metáfora empregada: ventre) e cuja glória está na infâmia. Essas expressões precisam ser contrastadas com a formulação cruz de Cristo. Este paralelismo deve ser enfatizado, pois só assim percebe-se as nuanças semânticas do texto paulino. Paulo opõe a glória da cruz, a qual se manifesta oculta no seu oposto, à glória medida por valores terrenos. Aqui se apresenta um esquema de pensamento regido por elementos apocalípticos, pelo qual se contrastam os valores deste mundo aos valores do Reino já manifestados às avessas na cruz e cuja revelação expressa ainda se espera. Só assim entendem-se também os versículos seguintes, em que se atesta a esperança na inversão escatológica dos valores. A cidade de Deus é esperada, mas aqui só se apresenta mascarada na realidade da cruz. A cidade de Deus só se encontra aqui oculta nas favelas do mundo. O corpo a ser glorioso é aqui o corpo abatido, torturado e aprisionado.
4) Muito plausível é a hipótese de que Paulo esteja atacando membros da comunidade de Filipos que, além de uma postura social que os leva a estimar valores terrenos, sejam também devotos do Império Romano com suas características político-teológicas (como o culto ao imperador). Essa hipótese é corroborada pela ênfase na expressão nossa cidade (ou nossa república, nosso estado), em que o jargão político POLYTEUM A é usado em um paralelismo que sugere anteposição ao estado romano. Sendo essa hipótese plausível, vemos que no pensamento escatológico de Paulo confrontam-se, antes do julgamento divino, a glória terrena com realidade da cruz. Esse paralelismo então é invertido com a vinda do esperado salvador, quando a aparente infâmia da cruz manifestará a sua verdadeira glória e a glória terrena revelar-se-á como a grande infâmia.
Esquematicamente, a estrutura escatológica do texto pode ser assim representada:
Julgamento
(revelação)
cidade (Reino
glória de Deus)
segundo o cidade
mundo terrena
cidade
do diabo
cruz favela (Reino dos
terrena mortos)
II — O tema
Ante essa explicação inicial cabe voltar ao início de nossa parênese com seu surpreendente imperativo: Sede também meus imitadores. Ao texto caberia também a seguinte paráfrase: Segui a representação que tendes em mim. Presunção paulina? Assim o seria se não considerássemos que quem a faz é um Paulo prisioneiro, perseguido e abatido. Trata-se de um condenado e não de um cidadão exemplar de acordo com os mores da sociedade vigente. Mas o que ó então que Paulo e os seus representam para que sejam tidos como exemplos a serem imitados? Com base no texto, duas coisas há que enfatizar. Sua glória não está na aparência gloriosa desse mundo, mas na infâmia da cruz em que vivem. Por outro lado, também não são masoquistas resignados, mas ativos combatentes pela causa do Reino. Esperam ativamente pela insurreição do Reino daquele que, morto na cruz e radicalmente imerso na história, já ressuscitou.
O chamado à imitação é a conclamação para andar nos caminhos da esperança pelos quais, embora abatido, o apóstolo se aventura. Não se trata, portanto, de imitar o ser de Paulo como se fora uma imagem de perfeição a ser reproduzida, mas o seu tornar-se, o seu vir-a-ser nos atos de esperança, avançando pelos trilhos que o Reino já desvenda. E só podem acompanhá-lo aqueles que conhecem a cruz do mundo, aqueles que, alienados dos méritos desse mundo, esperam na graça divina, aqueles que, envoltos por injustiça, são sensíveis ao que é justo, aqueles que, como Jacó ou Martin Luther King Jr., só tendo uma pedra onde reclinar a cabeça, ousam proclamar: Tenho um sonho.
O chamado dos evangelhos ao discipulado. Não é nada menos que um chamado a seguir o tipo, o modelo, o paradigma do ser humano que se assume na sua condição mínima e por isso mais integral. Emergindo do chão, do pó e do barro, erguido pela corda da esperança, o humano acha a sua maior estatura, encontra sua verdadeira dimensão, a sua glória já anunciada nos sonhos e nas bandeiras da esperada redenção, embora ainda oculta na aparência da infâmia.
Num livro já clássico (dos anos quarenta deste século) sobre o problema da mimese ou representação na literatura ocidental, Erich Auerbach defendeu uma tese que só agora na teologia latino americana recebe a devida consideração (embora o nome do Auerbach não seja mencionado). Na sua discussão, que abarca dos clássicos gregos à literatura contemporânea, o autor demonstra quo é apenas com a literatura bíblica que as classes subalternas da sociedade começam a fornecer os personagens principais, rompendo assim com o modelo clássico da época e da tragédia, cujos personagens eram oriundos dos altos substratos sociais, políticos e econômicos. Na literatura bíblica, por primeira vez, surgem como regentes da narrativa nômades errantes, profetas perseguidos, pescadores, enfermos, prostitutas, operários e marginalizados em geral. Quer pela espiritualização, quer pela domesticação do texto bíblico, já se perdeu muito do choque inerente a esta subversão do que é o humano incorporado aos desígnios divinos. E é novamente essa subversão de valores que caracteriza o pensamento paulino nesta perícope. Os inimigos da cruz cuja glória é a vergonha, cujo deus é o ventre são aqueles cuja estrutura de valo-, rés se acha organizada pelo sistema de poder e méritos vigente. São esses que só pensam nas coisas terrenas. A vinda do Reino lhes é uma ameaça. A esperança por este Reino só a têm aqueles que esperam contra toda esperança.
Ernst Bloch, o filósofo da esperança, tinha razão quando, comentando sobre a narrativa do nascimento de Jesus, disse que se tratava de um texto autêntico, pois nenhum seguidor de Jesus de Nazaré recorreria a uma ficção tão cheia de indignidade, pobreza e infâmia para enaltecer o nome do messias esperado. E para que isso possa ser percebido, uma reorientação radical de vida e uma subversão nos sistemas de valores e pensamento são necessárias. É na manjedoura, na carpintaria, nos caminhos, nos barcos que se encontra a representação do Deus humano a ser imitado. É com base nela que Paulo se arroga o direito de conclamar os filipenses à imitação, visto que ousou reconhecer a cruz e a esperança do Reino no contexto em que vivia. Este é o mandato que o texto nos lega.
III — Subsídios litúrgicos
1. Confissão dos pecados: Deus da misericórdia. Chegamos à tua glória com a nossa infâmia que mais temos estimado. Entrincheirados em nossas cidadelas, prontos a defendê-las, temos lutado contra a vinda do teu Reino. Mesmo quando em palavras confessamos teu santo nome, na prática de nossas vidas fizemo-nos inimigos da Cruz. Olhamos a imagem que nos deste para ser seguida e ela nos parece muito indigna; o caminho a ser seguido é muito pedregoso. Liberta-nos, ó Deus, para sonhar o sonho da esperança maior. Renova em nós a tua imagem. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus do amor, juntos glorificamos o teu nome e em teus desígnios esperamos o Salvador. Torna-nos no barro que se dá ao oleiro que o forma e transforma. Abre os olhos, ouvidos e corações para que vejamos no mundo os sinais de tua glória envolta no manto da humildade e do desprezo. E que no chão do mundo ergamos nossos corações e mentes na espera ativa por tua salvação. Em nome de Jesus Cristo Salvador, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Amém.
3. Assuntos para oração final: Agradecer a Deus pela obra da criação em que fomos feitos à sua imagem. Interceder por todos quo exercem poder para que o façam em nome daqueles que no chão do mundo esperam por justiça e salvação. Interceder por aqueles que, do fendendo a cidade terrena, militam contra a vinda do Reino e por aqueles que desolados, solitários e marginalizados cederam ao desespero, que neles se renove a ousadia da espera ativa pelo salvador conforta dos pelos sinais da libertação que insurge.
IV — Bibliografia
– BETZ, H.D. Nachfolge und Nachahmung Jesu Christi im Neuen Testament, Tübingen, 1967.
– DIBELIUS, M. An die Thessalonicher lll, An die Philipper, 2a ed.,Tübingen, 1925.
– LOHMEYER, E. Der Brief an die Philipper, 9a ed., Göttingen, 1953.
– MICHAELIS. Artigo MIMEOMAl. In: Theologisches Wörterbuch zum NT, v. 4, Stuttgart, 1935.
– STRACK, H.L. et BILLERBECK, P. Kommentar zur NT, 2a ed., v. 3, Mün chen, 1954.