Tema: Futebol: lazer ou instrumento de alienação?
Explicação do tema:
Vivemos num país onde o futebol é o esporte das massas, comandado por ricos empresários. Por isso mesmo se presta a uma grande instrumentalização em favor dos interesses sócio-político-econômicos das classes dominantes.
O grito que é dado no anonimato de um estádio lotado ajuda a compensar a necessidade de participação e possibilidade de protesto que são negadas no dia-a-dia. Em casa, no estádio ou na roda de amigos, defendendo o seu time, o torcedor consome a mercadoria preparada para fazer esquecer suas dores.
Um esporte que, por ser popular, poderia servir como meio de lazer e de saúde física e mental, é transformado em máquina a serviço do circo num país onde falta o pão.
Texto para a prédica: Juízes 2.11-15
Autor: João Artur Müller da Silva
I — O futebol nosso de cada dia
1. Para início de conversa
O comentário de Paulo Santana, cronista esportivo, publicado em 18 de maio de 1981 no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, registra a mentalidade do futebol profissional, empresarial e de outro lado, a velha mentalidade que separa claramente fé e vida. Com este comentário ingressamos num assunto muito discutido, muito polêmico, muito apaixonante. Vamos ao comentário de Paulo Santana:
Ouvi várias pessoas intrigadas com o Baltazar: não compreendem como um rapaz tão religioso esteja a pedir tanto dinheiro para renovar seu contrato. Para mim, esse é um raciocínio errado. De nada tem a ver a fé religiosa com a realização profissional, na qual está também incluído o sucesso financeiro. Se não me engano, a religião de Baltazar, presbiteriana, é um ramo do Protestantismo. E à luz dos ensinamentos de Lutero o homem é tão melhor visto por Deus quanto mais sólida for a sua situação econômico-financeira. Se alguém duvida disso, dê uma olhada na Bíblia Protestante e lá encontrará essa passagem, magnificamente explorada pelo escritor Viana Moog no livro Bandeirantes e Pioneiros, quando o literato gaúcho aborda as diferenças entre a colonização norte-americana e brasileira.
Entre as causas do desnível entre o desenvolvimento americano e o brasileiro, o autor da obra afirma que está fundamentalmente a religião dos colonizadores. Enquanto que os ingleses do Mayflower professavam o protestantismo, religião que insere em sua doutrina como aconselhável e meritória a fortuna material, os portugueses eram católicos, cuja Bíblia chega ao exagero de trazer em seu interior uma intrigante máxima: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que o rico entrar no reino dos céus.
Não há nada, portanto, de incompatível entre a fé de Baltazar e o seu direito de chegar a um contrato financeiramente razoável. Até mesmo porque a Bíblia diz que deve se dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Baltazar, no contrato, está vivendo o lado de César.
A ligação de Baltazar com Deus será útil, como até agora tem sido, nos títulos a serem conquistados pelo Grémio. Por sinal, em matéria mística, o Grémio está bem amparado: o nome completo do Tiziu é Paulo Isidoro de Jesus.
Para início de conversa sobre o futebol este comentário nos deixa claro: qualquer brasileiro pode opinar sobre o futebol. Até mesmo aqueles que aparecem com desinformações, com deturpações. Futebol é assunto para todos. Falam que o Brasil é o pais do samba, do carnaval e do futebol. E nós nos orgulhamos disso. Até certo ponto podemos nos orgulhar de nossas expressões culturais. No entanto, precisamos conhecer melhor como o samba, o carnaval e o futebol influenciam a vida do brasileiro. Até agora são poucas as pesquisas e estudos que nos ajudam a compreender como o futebol, por exemplo, serve para o encanto das massas, como o futebol saiu dos campos de peladas e ingressou nos estádios, arrastando consigo uma multidão de torcedores. Este ensaio pretende ser uma humilde contribuição para despertar em nós a consciência de que precisamos melhor conhecer a cultura, os valores e a sociedade na qual vivemos. Como ensaio, muitos assuntos referentes ao mundo do futebol ficarão para trás, e outros serão apenas mencionados. Continuando, vamos conhecer um pouco da historia do futebol.
2. Tudo começou em outubro de 1894…
Dizem os historiadores que as origens do futebol estão na Chi¬na. Num jogo qualquer de bola. Passando pela Grécia, Itália, Inglaterra, o relacionamento do homem com a bola foi adquirindo as características, regras e instituições que definem o foot-ball, o futebol de hoje. A história do futebol apresenta lances pitorescos como este, narrado por Cid Pinheiro Cabral em seu livro História do Mundial de Futebol.
A 17 de fevereiro de 1529, cinquenta e quatro jogadores (27 de cada lado) concordaram em resolver no Cálcio suas discordâncias políticas, na Piazza Santa Croce. O jogo durou várias horas, foi disputado com bravura e violência, diz a história. Mas não fala nem em vencidos, nem em vencedores, daí porque firma-se, entre a grande maioria, a convicção de que, batidos os disputantes pela exaustão, teria acontecido aí, também, um solene empate, ou uma simples desistência por falta de fôlego… Alguns anos depois, em 1580, Giovanni di Bardi estabeleceu regras para o Cálcio, que não chegaram até nós, mas se sabe terem por objetivo maior diminuir a selvageria e ordenar um pouco o que era praticado com demasiada violência e recursos ao sabor de cada um. Em consequência, os jogadores começaram a ter posições definidas, os pontapés e empurrões escandalosos eram proibidos e nada menos de dez árbitros funcionavam ao redor do cenário dos jogos, marcando as infrações! (Cid Pinheiro Cabral, História do Mundial de Futebol, p. 7).
No Brasil o futebol entrou de mansinho. O futebol desembarcou no Brasil na bagagem de um estrangeiro. Um inglês, apreciador do foot-ball, trouxe duas bolas de couro em sua bagagem. Ele gostava deste esporte, assim como outros jovens gostavam de surf, handball, tênis, ou qualquer outro esporte. (1) Isto aconteceu em outubro de 1984, quando Charles Miller desembarcou em São Paulo. O que Charles estava trazendo era um esporte novo, com uma regulamentação oficializada em 1863. Ele não tinha maiores pretensões. E nem podia imaginar que as duas bolas de couro trazidas em sua bagagem dariam início ao esporte que 130 milhões de brasileiros praticam, direta ou indiretamente. Sua intenção era apenas continuar aqui, um esporte que era praticado em sua pátria. De início foi um jogo universitário, burguês. Era um esporte de gentleman, exatamente cpmo são o ténis e o golfe de hoje (2). A partir daí se explica porque até pouco tempo ainda se falava em: full-back, corner, inside-right, team… E também porque os nomes de alguns times brasileiros são compostos com palavras inglesas: Sport Club Internacional, Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, São Paulo Athletic Club.
Na época de Charles Miller o jogo era para gente fina. Damas da sociedade, cavaleiros, intelectuais eram a plateia que aplaudia o chute forte do empresário, ou amigo, aficcionado a este jogo. Todos eram amadores. Os pobres, conforme Joel Rufino dos Santos, espiavam por cima do muro (3). Pois, não tinham dinheiro para o ingresso, e muito menos para praticar o esporte. Era preciso comprar bola, uniforme… E tudo isto custava dinheiro. No entanto, não levou muito tempo para que aparecessem times de futebol entre o pessoal pobre. Aos poucos, o futebol deixou de ser um esporte aristocrático, tornando-se um esporte do povo. As madames, os cavaleiros, os intelectuais foram deixando as arquibancadas dando lugar ao povão que vinha chegando. Os assim chamados times do povo foram enfrentando os times de gente rica, nobre. Não é por acaso que em todas as capitais do país existem, até hoje, times do povo: o Vasco, o Internacional, o Atlético, o Santa Cruz… Luta de Classes da boa. (4).
O futebol foi crescendo na preferência do povo, na medida em que a repressão à capoeira era impedia a prática deste esporte. A capoeira era praticada por gente do povo, era um esporte nascido aqui com jeito, graça e música da nossa terra. No entanto, a polícia, órgão repressor do sistema, perseguia os grupos de capoeiristas. As maltas, grupos que praticavam a capoeira, foram se transformando em times de pelada, times de futebol de bairro, de ruas.
Em rápidas pinceladas podemos dividir a história do futebol em três fases: de 1894 a 1920 — o futebol apareceu e conquistou o gosto popular; de 1920 a 1940 — o futebol amador começou a se profissionalizar; de 1940 a 1960 — o futebol atingiu seu apogeu conquistando títulos no exterior e criando verdadeiros ídolos para a torcida. De 1960 para cá, conforme observadores, o futebol brasileiro entrou em crise.
Mesmo em crise, o futebol no Brasil continuou a ser o esporte de massas, o esporte das multidões.
3. Futebol — Instrumento de alienação
Um dos fios que compõem a trajetória do futebol na vida brasileira está ligado ao governo. Já nos idos de 1917 quando a mobilização dos operários reinvindicava jornada de trabalho de 8 horas, proteção às mulheres e outras reinvindicações, o governo aliado aos industriais percebeu que o povo precisava de uma válvula de escape. E esta válvula era o futebol que vinha conquistando o gosto da gente simples. Por isso, o futebol começou a ser estimulado. De certa forma, o futebol poderia servir como agente de desmobilização dos operários e trabalhadores. Este gesto do governo, dos industriais, no entanto, não passou desapercebido de alguns críticos da época. Entre eles, Afonso Henriques de Leiva Barreto, escritor, compreendeu logo que as oligarquias iam usar a bola como ópio do povo. (5)
A imprensa da época, os jornais, abriam espaço cada vez maior para os torneios, para os jogos entre os times rivais. Desta forma a imprensa contribuía com sua parcela para a difusão do futebol como assunto de cada dia.
Até 1927 o governo não influencia diretamente no futebol. No entanto, com a consolidação do Estado Novo em 1938 a CBD, Confederação Brasileira de Desportos, se transformou numa agência de poder (6). Quando o Brasil participou da Copa do Mundo em o Ministro das Relações Exteriores determinou ao embaixador brasileiro na França que oferecesse apoio e conforto à Seleção Brasileira de Futebol.
Quando Getúlio Vargas voltou ao poder em 1950 projetou seu governo sobre três pilares: industrialização, nacionalismo e trabalhismo. Tanto o nacionalismo como o trabalhismo eram políticas de massa. Era preciso mexer com o povo, com a massa. Era preciso, pois, de uma ligação com o povo. E o futebol foi usado para servir de veiculo para a difusão destas duas ideias governamentais. Getúlio Vargas, a exemplo dos demais governantes posteriores, ia ao campo de futebol para se encontrar com o povo.
O modelo brasileiro de desenvolvimento começou com o governo de Juscelino Kubitschek, e teve sua continuidade com os governos pós 1964. E o futebol entrou numa nova fase, pois foi usado como instrumento ideológico de acomodação do povo. O caráter empresarial que tomou conta dos times e jogadores foi se ampliando ao ponto de o futebol, em época de Copa de Mundo, se tornar um verdadeiro símbolo da unidade nacional. Ao povo restou uma participação aparente nas arquibancadas dos estádios e na discussão da escalação dos times. Desta forma o povo foi afastado da verdadeira participação nos problemas nacionais para febrilmente defender as cores de seu time, da seleção canarinho. O governo percebeu, em tempo, a crescente paixão do povo pelos torneios, e abriu o leque de participação nos lucros que o futebol vinha oferecendo, criando a loteria esportiva. Desta forma, o governo tem em suas mãos mais um elemento de alienação do povo. A remota possibilidade de proporcionar riqueza ao povo foi entregue à sorte de acertar os trezes pontos da loteria esportiva. E os times embarcaram neste esquema, pois o retorno maior desta riqueza volta para seus cofres. Tanto os grandes times como os pequenos começaram a atrair suas torcidas com a venda de carnes, sorteio de prêmios. E assim, está organizado o esporte que arrasta as milhares de pessoas a jogar semanalmente na loteria. E a participação política do povo permanece a um nível mínimo, ao gosto daqueles que querem ver o povo afastado das maiores e principais decisões da vida pública brasileira.
Um aspecto ainda a ser considerado neste ensaio é o fenômeno das torcidas de futebol.
Todos nós sabemos que a torcida é considerada o camisa 12. Ou seja, ela é parte integrante do time. Um time sem torcida não é time. Hoje, as torcidas estão organizadas. Evoluíram. Não se contentam mais apenas em acompanhar seu time nos jogos realizados em casa. Estão mobilizadas a viajar com o time. Algumas torcidas se dão nome, levam junto com a bandeira de seu time a faixa de seu nome. Tem-se notícias que, às vezes, ocorre verdadeira guerra entre as torcidas. Os narradores das partidas, através do microfone, inflamam, empurram, animam a torcida. E elas por sua vez, exercem pressão em cima do seu time, em cima do adversário, em cima do juiz. Ninguém escapa. Na torcida qualquer um pode berrar, botar para fora. Exercer a cidadania como afirma Ricardo Benzaquem de Araújo: Dessa forma a torcida parece constituir-se numa categoria social dotada de extrema independência, capaz de pensar e agir, livremente, dentro do mundo fo futebol. (7). Na torcida, unidos pela mesma paixão, cada torcedor tem o mesmo direito. Ele é livre. Ele vive a liberdade na arquibancada que lhe é negada na sociedade. Ele exerce o seu direito que lhe é negado na Previdência, na urna, nas decisões da fábrica. Ele participa com palavrões, foguetes, buzina, não comparecimento, queimando camisa, jogando saquinho com urina, enfim, participa com vontade, pois sua participação social é castrada. O brilhantismo dos craques, a colocação na tabela do campeonato, o técnico, o estádio são elementos que fascinam a torcida, a massa. Na opinião de Ricardo B. de Araújo a chance de mobilidade, oferecida pelo futebol, não só reafirma seu caráter individualista e democratizante como também parece ser uma das principais responsáveis pela atração que ele consegue despertar. (8)
Dois depoimentos de torcedores ajudam-nos a avaliar a força da torcida, o que significa pertencer a uma torcida.
O Corinthias é um pedaço de mim (Márcio Martins Lacerda, 13 anos, 5a série, morador da Vila Mariana, SP — membro da torcida dos Gaviões da Fiel). (9)
O Corínthians é como uma coisa nova; como uma crença; como uma religião. Numa religião, não fica todo o mundo concentrado? É num jogo, não fica todo mundo junto, concentrado? (Jorge Souza Bonfim, 16 anos, morador do Cangaíba/SP, vendedor ambulante). (10)
Existem pessoas que compram o jornal diariamente apenas para leitura das páginas esportivas (futebol). Ligam o rádio só para a transmissão de futebol e noticiários de esporte. São telespectadores apenas dos Gois do Fantástico, transmissões de partidas e programas especiais sobre o futebol. Diante deste quadro pergunta o jornalista Rivaldo Chinem: Que pode ter o mundo de mais importante para quem já sabe a escalação do Corinthians? (11)
O Estado, o sistema, explora esta ignorância popular para manipular. Os MCS são instrumentos a serviço, portanto, do Estado, quando acriticamente se deixam envolver pela paixão do futebol e fazem contratos comerciais bilionários para transportar sua equipe de esportes até o local da partida. Seja lá onde for. Em Los Angeles, Tóquio , Buenos Aires, Pelotas. O importante é não deixar a multidão de torcedores sem a notícia, a informação do seu time, dos seus craques. Da popularidade do futebol se aproveitam todos: torcedores, Estado, empresários, MCS… A manipulação do futebol pelo Estado ou qualquer outra entidade política, aparece como consequência da sua prévia importância e não como fonte de seu prestígio. (12)
Na opinião do psiquiatra Paulo Gaudêncio o futebol é o único lazer da massa, por isso a identificação da torcida com seu time, com seu craque, com o futebol. (13)
Pois, quem integra a torcida? Pessoal da classe alta? Não, estes já saíram fora dos estádios nos idos de 1900. Gente da classe média? Não, estes não se misturam. Então, só resta aquele pessoal que, é a maioria do nosso povo: trabalhadores, operários, desempregados, favelados… E para estes o futebol é o único lazer. Pois de resto, não lhe sobra mais nada em nossa sociedade. Paremos por aqui e vamos dar uma olhada na questão do lazer.
4. Futebol — lazer para todos
Um dado assustador Em menos de um ano, São Paulo perdeu cerca de 70 campos; o Rio, nos últimos 20, perdeu cerca de 10 mil. (14) E poderíamos perguntar: como está a situação em Porto Alegre, Caxias, Florianópolis, Joinville? Os campos de pelada estão desaparecendo. E por quê? Não será fácil responder. Muitas são as razões. Eis algumas: a profissionalização e comercialização do futebol concentrou a prática deste esporte nos estádios dos times. O pessoal se contenta em assistir aos treinos de sua equipe; a urbanização das cidades está em desenvolvimento, ocupando os espaços vazios, os terrenos baldios. Prédios, conjuntos residenciais, centros comerciais vão se instalando nos campinhos de futebol. E em troca? Nada! Outras razões ainda: na sociedade de consumo, o lazer também é de consumo. A indústria de brinquedos está com lucros admiráveis: brinquedos eletrônicos, brinquedos didáticos, brinquedos e mais brinquedos automáticos. Chegamos ao cúmulo de constatar: os brinquedos brincam pelas crianças; a televisão prende e desmobiliza a atitude lúdica das pessoas. Em seu lugar, cresce e se desenvolve a passividade, o conformismo, o consumismo, a apatia geral.
Assim sendo, o futebol, que poderia ser um lazer para reunir moradores, amigos, companheiros de firma e escritório, torna-se um lazer popular nos estádios. O futebol nas mãos dos empresários e nos interesses do Estado servirá sempre como instrumento de alienação.
5. Chegando ao fim
O torcedor para participar deste lazer, paga. Paga o ingresso. Paga a loteria esportiva. Paga o carne. Paga o foguete. Paga a bandeira. Paga a camiseta do seu time. Enfim, ele paga tudo. Recebe apenas de graça a sensação de liberdade, de participação, de expressar sua opinião, de projetar seu sonho, de ver seu direito exercido. O futebol, esporte das massas, é movido a dinheiro. Ele, o torcedor, é explorado pelos empresários que anunciam seus produtos nos jornais, revistas, TV e rádio, e manipulado pelos interesses do Estado em manter a população afastada da verdadeira participação social de todos os cidadãos. Futebol-lazer não existe mais. Futebol-instrumento de alienação é o que vivemos no dia-a-dia.
II — Quem é o nosso Deus?
1 – O texto
V. 11 — Então os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do Senhor, e serviram aos baals.
V. 12 — Deixaram ao Senhor, o Deus de seus pais, que os tinha feito sair da terra do Egito, e serviram a outros deuses dentre os dos povos ao seu redor. Renderam-lhes adoração e irritaram ao Senhor.
V. 13 — Deixaram o Senhor para servir a Baal e às astartes.
V. 14 — Então a ira do Senhor se acendeu contra Israel. E os abandonou aos saqueadores que os roubaram, e os entregou aos inimigos que os cercavam, e não mais puderam lhes oferecer resistência.
V. 15 — Em tudo o que empreendiam, a mão do Senhor era contra eles para lhes fazer mal, como o Senhor lhes tinha dito e jurado. E a sua aflição era extrema.
A versão deste texto acompanha a redação de A Bíblia de Jerusalém, com pequenas alterações.
2 — O livro
O livro de Juízes é composto por 21 capítulos. Podemos estruturá-lo em três partes:
1 — Cap. 1.1-2-5 — Introdução: relata a tomada da terra prometida pelas tribos do Sul e da casa de José. É uma descrição paralela ao livro de Josué.
2 — Cap. 2.6-16.31 — Parte central: relata a história dos Grandes Juizes e Juizes Menores. É uma pequena dissertação teológico-histórica. As narrativas não seguem uma cronologia.
3 — Cap. 17 – 21 — Adições: relatam a formação do santuário de Da, a guerra anfictiônica contra Benjamim.
Conforme exegetas, a redação do livro de Juízes vem do punho do deuteronomista. Por isto entende-se a constante repetição da deslealdade do povo de Israel que resulta em idolatria, irritação divina, julgamento, libertação. Neste compasso se movimentam os juízes que Deus envia ao seu povo. A época dos juízes compreende o período entre a morte de Josué e o início do reinado. (15)
3 — Comentário teológico
Para o povo de Israel a libertação do Egito é uma experiência de fé no Deus que age na história. É o próprio Deus que ouve o clamor do seu povo e o conduz com mão poderosa à libertação. Na caminhada do povo de Israel pelo deserto, acontece o pacto de Deus com seu povo. Neste pacto está assegurado o culto exclusivo a Deus: Ex 20.1-6. De início fica estabelecido que a idolatria, ou seja, adoração de outros ídolos, é pecado diante do Deus único. Exclusividade de adoração, culto e serviço é o que Deus exige do seu povo. Neste caminho deve andar o povo. No entanto, a história do povo de Israel nos dá um testemunho diferente. Em Juízes 2.11-15 encontramos um pequeno discurso onde nos é relatado que o povo se afastou deste caminho quando ocupou a terra prometida. A vizinhança com outros povos, filisteus, midianitas, amalequitas, cananeus, suscitou entre o povo o abandono do culto a Deus, aquele que os tirou do Egito. Como também experimentaram o domínio, a exploração. Os descendentes da geração de Josué voltaram as costas à tradição e ensino constantes na Tora. Por isto, o texto apresenta uma estrutura muito clara:
— pecado: fizeram o que era mau diante do Senhor
— apostasia: abandono e desobediência, causando a ira do Senhor
— adoração: aos deuses estranhos (baal e astartes) adoraram e serviram
— castigo: o Senhor se afasta deles, permitindo que o povo seja saqueado e dominado
— sofrimento: nada dá certo e a aflição toma conta do povo.
A conquista da terra prometida se transforma pois, em constante conflito de adoração a Deus e adoração aos ídolos e deuses de outros povos. Internamente o povo vive o drama da idolatria e externamente a ameaça dos outros povos. O livro de Juizes condena esta dupla ameaça: a idolatria israelita provocava a ira divina através dos povos invasores. (16)
Entre os povos vizinhos de Israel a religião era politeísta. Muitos deuses estavam à disposição do povo. Eram deuses naturalistas, como o afirma Croatto. (17) Assim sendo, Baal, chamado também o senhor era o princípio divino masculino, conhecido como o senhor do sol. Astarte, por sua vez, é o príncipe divino feminino, conhecida como a deusa do amor e da fecundidade. Para os povos opressores também era importante que o povo oprimido rendesse culto aos seus deuses. Pois, assim enfraqueciam a resistência do povo de Israel. O culto aos mesmos deuses dava a impressão de serem todos iguais, opressores e oprimidos. No entanto, o Deus de Israel não se enquadrava dentro deste leque de deuses. O Deus de Israel é um Deus vivo, atuante, que não se deixa manipular por mãos humanas. Sabemos que os (dolos e deuses dos dominantes eram apresentados de forma popular, agradáveis aos olhos e simpáticos aos sentimentos. Eram deuses fabricados por mãos humanas interessadas no domínio, na exploração e escravização. (18)
A adoração ao único e verdadeiro Deus significa ameaça ao sistema de dominação. Por isto, a mensagem do deuteronomista é clara: Para enfrentar os ídolos urge enfrentar o estado dominado pelos latifundiários e pelos grandes comerciantes. (19) Pelo nosso texto podemos averiguar que Deus se afasta da vida do seu povo, entregando-o na mão dos dominadores. É bem provável que o povo no exílio experimentou o abandono dos ídolos estrangeiros. E diante do sofrimento e da angústia lembraram-se do seu Deus. Os credos exerceram um papel importante durante o exílio, como podemos perceber nos salmos 44 e 78. Desta forma cada geração experimentou a idolatria, a apostasia e a libertação. Cada geração experimentou que apostasia significava opressão e crise. E libertação significava tranquilidade e paz.
Sem Deus nada podia fazer o povo de Israel. A força para superação das crises e tensões vem da fé em Deus. Muito facilmente o povo se esquecia desta verdade. Pois, a fé em Deus trazia consigo compromisso e constante fidelidade. Esta religião não exercia tantos atrativos como a religião dos ídolos. Por vezes, ilusão e charme são mais agradáveis e simpáticos do que a conversão e a revolução. (20)
Em Juízes 2.11-15 temos concentrado o esquema da quebra da fidelidade a Deus que se repetiu ao longo de muitos anos.
4 — Meditação
O capitalismo moderno torna-se um sistema cada dia mais religioso e piedoso. A elevada produção científica e técnica se faz acompanhar de uma produção ainda maior de deuses, cultos, templos, símbolos religiosos e teologia. (21)
Diante deste pano de fundo nos confrontamos com o futebol dos dias atuais. Ele se assemelha a uma religião a serviço do sistema dominante Interessado na passividade do povo. Encontramos no futebol elementos religiosos que fundamentam nosso ponto de vista. Os craques de bola são os ídolos das torcidas. A camiseta do ídolo é trajada pelo torcedor. A Imprensa se encarrega de informar ao público o máximo sobre a vida destes jogadores consagrados ídolos da torcida. A obtenção de um autógrafo tem um significado semelhante a um graça alcançada. Fala-se também em conversão. Muitos torcedores fazem questão de afirmar que sua conversão a este ou aquele time aconteceu em determinada época. Os estádios são verdadeiros templos que reúnem as torcidas. Neles todos são sacerdotes. Todos comungam as dores do time e as alegrias das vitórias. E não medem esforços para contribuírem financeiramente para a construção do estádio do seu time. As torcidas submetem-se a verdadeiras peregrinações para acompanharem seus times.
Enquanto o povo está envolvido nesta verdadeira atividade religiosa, não consegue se aperceber de sua própria realidade social. Perde também as condições de avaliar a situação social mais abrangente, mais global, na qual o futebol é instrumento de alienação. De ópio. A sua participação democrática se restringe ao apoio ou vaia, à escalação do time, ou ainda a uma aparente participação nos lucros que o futebol possibilita.
Diante deste quadro, o cristão é chamado a se perguntar pela verdadeira adoração a Deus e as consequências da fidelidade ao único Deus. E o conflito se estabelece, pois o verdadeiro culto a Deus tem suas consequências na vida cotidiana. E a primeira delas é o reconhecimento de que os ídolos são fabricados pelas mãos humanas. Eles, de fato, não existem. São fabricados para serem consumidos, comprados. O reconhecimento deste fato leva a uma crítica contundente ao futebol como instrumento de alienação. Pois, a vida cotidiana das torcidas é mascarada por sofrimento, exploração, miséria e fome. A fim de não haver mobilização do povo, é preciso oferecer-lhe algo bonito, atraente, que satisfaz, que o leva a esquecer seus problemas. Enquanto isto, a classe dominante continua a realizar seus projetos desenvolvimentistas, acentuando cada vez mais o abismo entre pobres e ricos. A política, o exercício em favor do bem comum, continua a ser instrumento na mão daqueles que são poderosos. E o resultado é a realidade social atual em que vivemos. Ou seja, a grande maioria do povo brasileiro está vivendo com um salário irreal, precisa suportar um modelo de ensino ultrapassado, enfrenta uma inflação que lhe causa terror a cada ida ao supermercado ou à farmácia, assiste a invasão de valores culturais de outros países, enfim, o povo está à margem da história do seu próprio país. É um povo alienado. É um povo escravizado a um sistema opressor que planeja e decide em seu nome.
Neste contexto, o testemunho dos cristãos é ameaçador e perigoso ao sistema. Pois, ao acentuarmos a exclusividade de adoração e serviço ao Deus único, estamos promovendo o desmascaramento dos falsos deuses e ídolos. A fé no único Deus que ama a humanidade, nos conduz a um caminho de conflito e tensões com o modelo atual da nossa sociedade. Vamos encontrar oposição tanto entre os poderosos como entre o povo que se sente confortável na posição de simples expectadores de arquibancada ou de poltrona diante do vídeo.
Nosso testemunho nos leva a proclamar que o lazer é um direito de todos. E principalmente, precisamos reafirmar que o lazer não pode ser programado e tutelado pelo sistema.
A sociedade de consumo não deixa espaço para a prática do lazer no qual o indivíduo participa, brinca e se expande. O que estamos assistindo a todos os dias é a imposição de atividades programadas, e a crescente falta de tempo para o indivíduo se dedicar ao lazer. Neste sentido, percebo que urge promovermos uma reavaliação de nossa maneira de encarar trabalho e descanso. A discussão em torno deste assunto precisa ser possibilitada a todos. Pois, não podemos compactuar com uma sociedade que utiliza o futebol para acalmar e afastar a população da condução da vida nacional.
Nosso Deus é aquele que ama a humanidade e deseja vê-la no caminho da justiça e da paz. Não há, pois, como conformar-se com a manipulação que se exerce sobre nosso povo.
5 — A prédica
Ao pregador que se ocupará com este assunto num culto dominical, convém cuidar para não permanecer apenas na análise do futebol em nossos dias. Ó mais importante, pois, creio ser oferecer à comunidade um auxílio para compreender que a fé em Deus, o Criador e Pai, nos ajuda a desmascarar os ídolos fabricados para alienação do povo. Neste sentido, vejo que os seguintes passos poderiam auxiliar na elaboração de uma prédica sobre o tema:
— os ídolos do futebol, como são patrocinados, os interesses em sua adoração (com exemplos)
— a situação do povo: sofrimento — achatamento salarial — sem lazer
— relato da situação do povo de Israel na terra prometida (breve)
— leitura do texto
— relacionar a fidelidade a Deus com o compromisso com a vida
— breve resumo: apontando para o desmascaramento dos ídolos e para a verdadeira religião que quer participação de todos na história.
Entendo também que a reflexão do pregador, conhecendo sua realidade, possa conduzi-lo a uma outra estrutura de prédica. Pois vai depender também do enfoque que se quer dar a um assunto tão amplo como este.
6 — Auxílios litúrgicos
1. Leitura de salmo: Sl 115.
2. Confissão de pecados: Quando olhamos ao nosso redor, Senhor, percebemos nossa infidelidade a ti, nossa fraqueza e nossa quebra de compromisso em render-te louvor e adoração. Deixamo-nos atrair por ídolos e deuses fabricados por mãos humanas. Tornamo-nos assim cúmplices daqueles que nos querem explorar e escravizar. Por nossa desobediência ao teu Evangelho, pessoas sofrem e são marginalizadas. Custa-nos reconhecer isto. Mas, é este o nosso pecado que queremos confessar-te. Ouve-nos, Senhor, e perdoa-nos para reconduzir-nos ao caminho da obediência e do compromisso com teu Evangelho. Suplicamos-te: Tem piedade de nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Reunidos em culto, sentimo-nos como irmãos diante de ti. Vem, Senhor, e ajuda-nos a render-te culto também na vida cotidiana. Que a tua palavra nos encoraje a sermos testemunhas da vida que tu queres para todos. Por Jesus Cristo, nosso único Senhor, amém.
Leituras: 2 Rs 17.7-15 e 1 Co 8.1-6.
Oração final: Deverá ser orientada pela prédica.
III — Bibliografia
– ARAÚJO, R.B. de. Força estranha. Ciência Hoje, ano 1, n.° 1, julho/agosto de 1982, p. 32-37.
– BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento, v. 2, São Paulo, 1982.
– CABRAL, C. P. História do Mundial de Futebol, Símbolo Propaganda, 1978.
– CHINEM, R. Morrer pelo Corínthians. In: Psicologia Atual, ano 3, n.° 4, p. 48-50.
– CROATTO, J.S. História da Salvação, Caxias do Sul, 1968.
– RAD. G. von. Teologia do Antigo Testamento, v. 1, São Paulo, 1973.
– SANTOS, J.R. dos. História política do futebol brasileiro. In: Coleção Tudo é História, v. 20, São Paulo, 1981.
– SCHWANTES, M. Teologia do AT, Polígrafo, São Leopoldo.
– Literatura especialmente recomendada: VV.AA. A luta dos deuses. Os ídolos da opressão e a busca do Deus libertador. In: Libertação e Teologia 9, São Paulo, 1982.