Prédica: Romanos 13.8-10 (13-14)
Autor: Erni Drehmer
Data Litúrgica: 1º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 1/12/1985
Proclamar Libertação – Volume: XI
Tema: Advento
I — Sobre o texto no contexto
A perícope faz parte de um bloco de orientações parenéticas que engloba os capítulos 12-14. A base dessas orientações é dada já em 12.1: o culto racional a Deus, representado na postura física e moral de sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.
II — Tensões na delimitação
Por que 13.8-12 (13-14)? Alguns comentaristas manifestam sua surpresa por essa novidade, já que a delimitação tradicional da perícope seria 8-10. Além disso, por que os v. 13-14 citados entre parênteses? Devem ou não ser incluídos? Também neste sentido pode-se levantar hipóteses. Os dois versículos prestam-se muito bem a uma prédica bem moralinizante (sic) tipo viu? eu não disse? ou comporte-se!. Como falar de coisas tão corriqueiras (lamentavelmente) sem incorrer em fogo cerrado contras as vergonhas deste mundo, melhor é relativizar a inclusão dos versículos 13 e 14.
Mas existe também a possibilidade de incluí-los, dando, com isso, nome aos bois. É importante que não só os grandes pecados da violência internacional, da guerra nuclear, da exploração em massa, do genocídio, etc., sejam detectados. Precisam, também, ser identificados aqueles que desmoronam personalidades para empurrar pessoas à busca de sensações cada vez mais extravagantes. Diante disso, nesta reflexão, os versículos 13 e 14 entram em consideração como integrantes plenos da perícope.
III — Estrutura
v. 8-10 — Parênese
v. 11-12a — descrição do tempo (o KAIRÓS chegou)
v. 12b-14 — parênese
V. 8-10—Paulo, como bom judeu, parte da Tora. Nos versículos 8-10 encontramos referências claras aos 10 Mandamentos (especialmente v. 9). O grande mandamento do amor encontra sua referência no AT em Lv 19. Inicialmente o próximo é referendado como o compatriota (v. 18 …contra os filhos do teu povo). Mas, se considerarmos que Lv 19.15-18 não quer ser simples orientação geral de comportamento moral, e sim comportamento diante de um julgamento, vamos descobrir que o conceito do próximo é sensivelmente ampliado. Não se trata de simples convenção social de comportamento, mas de lei. E a lei diz claramente (Lv 19.34): …amá-lo-eis (ao estrangeiro) como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito…. Se Jesus conta a parábola do bom samaritano, não está contando uma grande novidade, mas exigindo o cumprimento da Tora.
Amor e lei (v. 10) não se excluem, mas concluem. No v. 8 Paulo admoesta a não se dever nada, a não ser o amor. A dívida de amor nunca se consegue pagar. A lei, esta sim, pode ser cumprida, desde que se respeite os seus enunciados. Esta diferença entre ambos — amor e lei — porém, não os distanciam, mas complementam. A lei, limitada, é tornada plena no amor, ilimitado.
V. 11-12a — Gattwinkel (p. 2) diz que iniciaria a pregação pelos v. 11 e 12. Para ele o cerne está justamente aí: no KAIRÓS. O KAIRÓS seria o momento em que o eterno irrompe no temporal, e o temporal está preparado para recebê-lo (Paul Tillich, citado em Gattwinkel). O despertar do sono significa normalmente acordar para um novo (talvez velho e repetitivo!) dia. Mas se o KAIRÓS é o momento único em que o eterno irrompe no material…, o despertar do sono no v. 11 não representa a continuidade da velha rotina de acordar após uma noite bem (ou mal) dormida. Trata-se, isso sim, de reconhecer o tempo, identificar a hora certa do novo tempo. O novo tempo que se anuncia com a noite que chega ao fim, e o dia que mostra seus primeiros sinais.
Paulo vê uma nova manhã que não se encaixa na rotina das outras manhãs. Não é uma manhã que antecede uma tarde, que se faz seguir de uma noite, que antecede um novo dia. Paulo fala do tempo de após o nascimento de Cristo. E não só do seu nascimento, mas também, e principalmente, da sua morte e ressurreição. O fundamento do novo tempo, de Cristo é o amor. O amor revelado na morte e ressurreição de Cristo, e no envio do Espírito Santo (Rm 5,5s). O ES produz frutos (Gl 5.22). Esse tempo é tão marcado pelo amor, que nada pode nos separar dele (cf. Rm 8.39).
V. 12b-14 — Por causa deste tempo de amor revelado em Cristo, é perfeitamente possível iniciar-se a revisão de postura e comportamento. Não é decisivo que o cristão faça algo, mas é decisivo que ele tire consequências do que Deus fez em Cristo. O amor revelado em Cristo não encaminha para o enfadonho repetir-se das alegrias e tristezas desta vida, mas caminha em direção ao alvo: o dia da revelação plena, definitiva.
Paulo não se dirige ao indivíduo, mas fala em nós (v. 13) e vós (v. 14). Portanto, fala de comunidade. A esperança do raiar do novo dia não pode ser vivida (suportada) individualmente, e sim em comunidade. O uso da escatologia, da esperança voltada para a redenção (cf. v. 11 b), reforça consideravelmente a orientação parenética. Não simplesmente comportamento moralmente digno para preservação da imagem, mas comportamento digno de quem espera o novo dia chegar plenamente, por isso coloca sinais desse dia que aponta nas decisões diárias.
IV — Meditando sobre o texto
Estou concluindo as reflexões sobre o texto exatamente no dia em que reiniciam as aulas nas escolas da rede estadual, após uma paralisação de 62 dias. O desfecho da greve não foi triunfal. As reivindicações colocadas pelo movimento paredista não lograram êxito. É verdade que leves sinais no que diz respeito aos salários foram colocados. Mas foram tão fracos diante das exigências dos grevistas, que os líderes conseguem argumentar apenas com frases do tipo: não conseguimos bem o que queríamos, mas a classe se uniu e se tornou mais forte. Na boca de muitos professores está o gosto amargo de triste e melancólico fim de festa. A sensação de que, na verdade, o movimento não surtiu efeito. Na opinião de alguns professores, a velha rotina, suspensa com a greve, reinicia.
Como falar de esperança a um país frustrado? A Nova República, esperança de milhões de brasileiros, começa a mostrar os primeiros sinais de que, na essência, não é tão nova assim. Corrupções, mentiras, mordomias, manobras políticas, continuam acontecendo impunemente. Diz-se, em tom de brincadeira, que o único que saiu foi o presidente anterior, mas que a linha política continua a mesma.
Agora é a hora soa como um grito de guerra, ou, num linguagem menos belicista , soa como uma campainha que anuncia algo novo. Este novo é o KAIRÓS, o momento da irrupção de uma nova era, de um novo tempo. O apóstolo Paulo fala deste momento com muita convicção. Não se trata de um novo conhecido (já conheço este filme), mas de um tempo novo, anunciado e criado após a ressurreição de Cristo. É um tempo novo, vindo de uma força transformadora que não se encontra nos palácios governamentais ou nas manobras políticas. É um tempo novo gerado pela força transformadora do amor.
Acorda do teu desespero, de tua indiferença, para assumir a vida que está mais próxima do que imaginamos. A ideia cabe como uma luva para uma chamada de Advento. É certo que a chamada pode ser interpretada como mais um alarme falso. Afinal, quantas chamadas já fizemos, em quantos Adventos? E quantas transformações ocorreram na vida das comunidades eclesial e civil? Quando falamos no poder transformador do amor, encontramos de imediato uma barreira muito incômoda: atitudes de amor não podem simplesmente ser exigidas. Quando exigidas, deixam de ser atitudes tomadas com alegria e pensando no outro, para serem simplesmente atitudes cumpridoras de leis criadas por uma sociedade.
Atitudes de amor podem simplesmente ser apontadas como caminho em que a vida se realiza. Entre os tantos direitos humanos (exigíveis por força de leis definidas na Declaração dos Direitos Humanos da ONU), existe um direito ao amor, exigível com a mesma força de lei? Dar amor é uma atitude acima de qualquer lei. A lei, uma vez cumprid, é satisfeita. O amor jamais pode ser cumprido, por não se realizar com uma só atitude, mas em posturas diárias. Dar amor é o oposto de exigir amor para si próprio.
Qual é o indicativo do amor em nosso mundo? Não há lei que especifique a exata proporcionalidade ou intensidade de amor a ser manifesto, para que se saiba medir existência ou não de amor. O indicativo mais claro é indiscutível é de que o amor existe. Pode estar abalado, mas existe!
O tempo novo demonstra seu indicativo justamente no fato de acontecer como um tempo novo. Não é preciso procurar a vida, a esperança, onde ela não está: nas festas deslumbrantes, no falso esplendor dos chás de caridade (?), nos discursos inflamados dos amantes do povo simples e trabalhador que gastam fortunas em viagens para simularem procura de soluções. No tempo novo é preciso procurar a vida, a esperança, onde elas estão: nas atitudes honestas, na vida simples, no colocar-se ao lado de quem sempre está por baixo, sem lhe darem chances de se erguer. No tempo novo, surgido com Cristo, não é mais preciso cantar tão alto nas igrejas para abafar o gemido de dor dos miseráveis que estão do lado de fora. Talvez melhor seria parar o canto para abrir-lhes as portas, para que participem e experimentem também o conforto de receberem salários, moradias, atendimento médico, educação, etc…, dignos de filhos do mesmo Deus em quem cremos.
Advento é tempo de preparação da vinda de Cristo ao mundo. Por isso é o melhor tempo para que a comunidade comece a praticar a vivência do amor. Não um tempo de enlevo espiritual, anunciando um amor que faz chorar de emoção, mas desafio a acordar para o amor que transforma abandonados e desesperados em pessoas participantes da alegria do Reino de Deus. O Reino que não se realizou em sua plenitude, mas que mostra sinais claros e inequívocos de que vai raiar. A noite, a rotina vazia, a repetição de mentiras, enganos e opressões, não vão continuar para sempre. O amor é possível e existe: eis a poderosa força transformadora do amor revelado em Jesus Cristo. Eis a difícil e desafiante alegria do novo tempo no Advento.
V — Sobre a prédica
Tarefa árdua, parece-me sempre, pregar sobre um texto óbvio. Mais árdua ainda se torna a tarefa, quando o texto oferece oportunidades para a pregação moralizante. A perícope ofereceria chances incríveis de abrir fogo pesado contras as imoralidades do nosso tempo, em especial da preparação de Advento. Amparado no texto o pregador poderia desferir ataques violentos contra as compras de Natal, os gastos com as decorações de lojas, o consumismo de presentes, enquanto outros catam seu alimento diário do lixo. Uma tal enumeração de fatos, na verdade, não é absurda, mas muito real. Porém creio que tal saraivada de tiros contra o demônio não acertaria o objetivo do texto.
Aos ouvintes da prédica não deveria ser, mais uma vez, destinado o papel de receptores do código de leis proibitivas para a época de Advento. O texto quer chamar à esperança. Mais do que isso, o texto quer convidar a quebrar uma rotina de tempos que simplesmente se repetem, para perceber que com Cristo o novo tempo começa. E começa não com belas pregações sobre a hora do amor. Começa, isso sim, com os sinais que se colocam, agora, do Reino que há de vir em plenitude.
É claro que o pregador deverá saber identificar os sinais de desamor em sua comunidade (civil, eclesial), para saber onde o amor deve começar a ser vivido.
Uma possível estrutura da prédica poderia ser:
1) Iniciar a leitura do texto com os vv. 11 e 12, seguidos de 8-10 e 13-14.
2) Atualizar as situações locais e nacionais onde o novo tempo anunciado não passou de alarme falso.
3) O apóstolo Paulo fala do despertar para um novo dia cujos sinais foram colocados em Jesus Cristo.
4) O amor é a dívida que nunca se salda, por isso sempre há algo a pagar.
5) Encerrar o culto com a prédica, desafiando a comunidade a visitar alguém que vive em esquecimento (velho, miserável, morador do casebre, preso, prostituta, etc…). A visita não resolverá os problemas destas pessoas, mas poderá dar algum sinal de largada para mais ações em amor durante o Advento.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, Deus da misericórdia e compaixão. No tempo de preparação ao Natal que se inicia, temos que confessar nossa frieza diante da novidade da tua vinda. Estamos tão acostumados a dizer que o amor não existe, que a mudança é tão difícil. Senhor, temos tantas dificuldades em praticar uma vida nova, voltada para o amor e a compreensão. Sentimos, diante de tua grandeza, que isso nos torna culpados por tantas pessoas continuarem a celebrar o Advento e o Natal com festas e presentes, enquanto outros dependem das migalhas para poderem ao menos comer. Senhor misericordioso, não nos deixes sucumbir sob nossa culpa. Perdoa nossa fraqueza e omissão. Por amor de teu Filho, Jesus Cristo, nos humilhamos diante de ti, e suplicamos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, nosso Pai. Tua comunidade se reúne neste início de Advento. Cada um de nós tem suas expectativas para este Natal. Para que nosso culto não seja uma simples manifestação de vontades egoístas, envia o teu Espírito Conselheiro. Que ele nos ajude a reconhecer o tempo novo em Cristo. Que os desejos pessoais de cada um aqui presente se transformem em vontade da tua comunidade. Vontade de todos em anunciar e viver um tempo novo neste Advento. Que possamos despertar para a alegria de contar com a presença de teu amor neste mundo. Amor, que Jesus Cristo, nosso Senhor, não só ensinou em palavras, mas com sua própria vida. Amém.
3. Oração de intercessão: (Visto que a sugestão das reflexões é de que se encerre o culto com a prédica, enviando a comunidade a visitar alguém em esquecimento não teríamos um espaço específico para a oração de intercessão. As sugestões abaixo podem ser usadas para uma oração após a prédica, antes da bênção do púlpito e do hino final).
Louvor e gratidão por mais um tempo de esperança; pedir pela orientação do Espírito Santo na proposta de visitar alguém após o culto; interceder pelo verdadeiro espírito de amor, para não dar a impressão ao visitado de que está sendo procurado por um espírito artificial de piedade; interceder pela comunidade, para que ela coloque sinais visíveis do novo tempo de amor surgido com Cristo neste Advento e Natal; interceder pelas situações bem concretas do lugar onde pessoas esperam ansiosamente a manifestação de esperança.
V — Bibliografia
– GATTWINKEL, K.-W. Meditação sobre Romanos 13.8-12 (13s). IN: Homiletische Monatshefte, Göttingen, 1980.
— SCHMITTEN-HANS, F. Meditação sobre Romanos 13.8-12 (13-14). In: Hören und Fragen, Neukirchen, 1979.
— WIESE, W. Das Gebot der Stunde.In:Predigtstudien, Berlin, 1979.
Proclamar Libertação 11
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia