Prédica: Romanos 14.10-13
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 22/06/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — Situação: uma palavra inicial
Sob o ponto de vista da unidade comunitária e eclesial, a antiga Comunidade cristã, em Roma, não se difere em nada da realidade atual na IECLB e nas Igrejas co-irmãs, dentro ou fora das nossas fronteiras. Os fortes e fracos na fé em Roma andam de mãos dadas com os convertidos e não convertidos, os evangelicais e os sócio-políticos, os conservadores e progressistas, os encontristas e os acampistas, os comprometidos e os descomprometidos, os liturgos e não-liturgos, os mais confessionais e os menos confessionais, os ecumênicos e os anti-ecumênicos.
A mensagem do Apóstolo Paulo não perdeu em nada da sua atualidade.
O processo histórico que permeia toda a realidade humana como uma roda viva, não é um processo acabado, mas repete-se a cada instante, em todos os lugares. A realidade da comunidade cristã torna-se uma sequência viva de contingências históricas.
Essas breves colocações sugerem aproximar-nos, ainda mais, do texto previsto, analisando em primeiro plano o seu contexto.
II — Contexto
1) A convivência dos fortes e fracos na fé — um caminho paralelo ou caminho de comunhão?
O apóstolo aborda um assunto relacionado à comunidade em Roma, assunto este que transtornou a convivência de diferentes grupos naquela comunidade. Difícil tornara-se a coexistência da facção que proibia o consumo de carne (14.21) bem como do vinho, qualificado de bebida impura (14.14,21) e do grupo de cristãos, aos quais comida e bebida não representavam problema algum.
A ascese era conhecida e praticada, sobretudo a ascese em dias previamente determinados; no mundo judaico esta prática não constituía novidade. Supõem os exegetas que se tratava, em Roma, de um grupo de ascetas que se dispunha ao sacrifício, em favor de Cristo, deixando de consumir determinados alimentos. A convivência entre ascetas e não ascetas parece ter-se tornado difícil. Em consequência disto, toda a solidez e unidade da comunidade estava ameaçada.
2) O apóstolo Paulo — seu posicionamento
De que forma o apóstolo reage diante da tensão existente em Roma? Paulo procura manter o campo aberto a fim de que ambos os grupos, os fortes e os fracos encontrem espaço suficiente para a sua coexistência. Lembra os seus leitores que Deus repartiu a fé na medida em que competia a cada um, individualmente (Rm 12.3). Os fracos na fé ainda não experimentaram a liberdade que Cristo conferiu aos fortes na fé. A partir desta colocação o próprio apóstolo parece situar-se ao lado dos fortes: Rm 14.14,20ss; 15.1 disposto porém, a abdicar em favor dos fracos.
Paulo não pretende desfazer as diferenças existentes entre os grupos em conflito, procura, isto sim, levá-los à convivência fraterna e à tolerância mútua. Fundamental é que a consciência do outro, mesmo alicerçada sobre postulados dúbios, permaneça incólume. O caminho de uma liberdade cristã plena jamais deixará de considerar a consciência do próximo. A consideração para com o irmão não leva, automaticamente, a sua dependência (Rm 14.5; 1 Co 10.29b). O apóstolo sabe que tanto os fortes como os fracos correm o perigo de se tornarem tiranos. Paulo, o autor, não estabelece um programa cristão para a comunidade. Ele aponta para o senhorio de Cristo (Vv 7-9).
O reino de Deus não depende de comida ou bebida, de volaa o liturgia, ritos e vestimentas, mas torna-se visível ali, onde discípulos assumem a sua filiação em relação a Deus, o Pai.
III — O texto — Considerações Exegéticas
Julgar — Não! — todos pertencem a Cristo
Com relação à delimitação da perícope, seria importante que o pregador levasse em consideração também os versículos 7 a 9; aos ou¬vintes a perícope prevista ficaria mais clara e transparente.
No v.10 Paulo retorna o conteúdo de um assunto já abordado no v.4. Admoesta os fortes por não terem o direito de menosprezar os fracos na fé. O próximo não pode ser objeto do meu julgamento. Deus é o último juiz, todo juízo está em suas mãos. O julgamento do irmão não corresponde à vontade do Senhor.
O apóstolo está consciente de que nada é impuro diante de Deus. Frente ao último juiz, cada qual responderá por si e não pelo outro. Permanece preservada perante Deus a responsabilidade individual. Não há quem possa arrogar-se o direito de julgar o próximo — Vv 10.12. V11: Uma citação do profeta Isaías (45.23) dá reforço ao posicionamento do apóstolo.
Fazendo uso do texto vetero-testamentário (Is 45.23), o apóstolo o aplica ora para Deus (Fp 2.10s, Rm 14.11) ora para Jesus Cristo (2 Co 5.10). Paulo não difere, qualitativamente, entre o poder de Deus e de Jesus Cristo. Jesus é o Senhor, através do qual Deus exerce o seu poder. O juízo de Cristo é o juízo de Deus. A liberdade que provém de Cristo conduz ao louvor a Deus (1 Co 4.4s). No v.13, o apóstolo amplia e aprofunda o conteúdo de sua exortação. Não cabe a ninguém o direito de julgar a seu próximo. Paulo, o apóstolo, ressalta, isto sim, o dever de considerar o irmão a fim de não pôr escândalo ou tropeço ao vosso irmão.
Se o apóstolo tem diferenciado o desprezar e o julgar dos fortes em relação aos fracos na comunidade, ele agora desmascara a tentação de ambos os grupos de se julgarem mutuamente. Os fortes acusam os débeis na fé de tentarem tolhera liberdade conferida por Jesus Cristo, ao passo que os fracos consideram os fortes levianos em sua vida de fé. A ambos falta o desafio do amor.
Paulo estimula e exorta os fortes a serem tolerantes em relação aos fracos e que não agradem a si mesmos (15.1).
A igreja, na qualidade de Corpo de Cristo, encoraja seus membros, apesar de todas as suas particularidades e tensões, à solidariedade mútua.
IV — A caminho da prédica
1) O discípulo não pertence a si mesmo
O discípulo de Jesus Cristo entrega-se à graça e ao senhorio de seu mestre, ele tem consciência de ser propriedade de Deus e vive, em primeiro lugar, para o seu Senhor. Aquele que passou a existir sob os raios da graça de Cristo não mais sentirá necessidade de desprezar e julgar a seu irmão, passará a focalizá-lo com outros óculos. Os fortes na fé vivem a sua força, não a partir da imposição dos seus conceitos próprios; programas e critérios próprios cerceiam a graça divina. A força dos discípulos se materializa através da liberdade de renúncia; a tolerância, para a qual o apóstolo conclama e exorta pressupõe liberdade de renúncia e abre o caminho à diaconia.
Onde prevalecerem programas e princípios humanos próprios, a diaconia e a renúncia, facilmente, serão substituídas pela opressão e exclusão do próximo e a unidade da comunidade passa a ser ameaçada.
Jesus não nos legou um código moral com leis e receitas prontas a orientarem a convivência humana, fato este que, em nossa realidade de Igreja e sociedade, tornou-se uma dificuldade.
Jesus Cristo não nos legou leis, mas, a partir da sua própria vida, desafia os homens, diferentes entre si, a auxiliarem na construção da sua comunidade, em busca de um mundo novo. Grupos que, na Igreja, se rivalizam a partir de frentes organizadas e excludentes, não mais se sujeitam ao poder de Cristo. O apóstolo Paulo prega aquela liberdade, na comunidade, que reside no respeito do irmão como servo alheio (Rm 14.4). É na pessoa do próximo que devo respeitar aquele Senhor que fundamenta a minha própria liberdade.
Sob o senhorio de Cristo o próximo passa de objeto dos meus próprios princípios a parceiro de caminhada. Entre parceiros existe diálogo, lealdade e respeito mútuo. A nova realidade inaugurada com a obra salvífica de Jesus Cristo encoraja a novas formas de convivência. A unidade da comunidade já foi estabelecida por Cristo; por este motivo, toda tentativa de desintegrá-la a partir de critérios próprios, representa infidelidade ao Senhor da Igreja.
Nas considerações, até agora expostas, ativemo-nos quase que exclusivamente, à realidade da Igreja, onde posicionamentos divergentes podem levar a tensões e a conflitos. É evidente, que além das fronteiras eclesiásticas, na realidade social e política, há pessoas, movimentos e grupos cuja atuação excludente e opressora conduz a situações de desintegração e separação. Os conflitos de raças, de famílias, entre colegas e partidos são reflexos desta realidade social.
A critério de cada pregador, deixaria a liberdade de dar acento e peso em áreas que julgar necessárias e atuais.
2 — Estrutura de prédica
O apóstolo admoesta os cristãos, em Roma, a buscarem a coexistência responsável; apesar das suas diferenças e divergências não lhes cabe o julgamento mútuo. Tendo este pano de fundo, poder-se-ia observar na elaboração da prédica o seguinte:
a) A unidade dos cristãos está fundamentada em Jesus Cristo. Esta unidade não precisa ser semeada ou colhida; ela é realidade! Esta convicção nos liberta do medo da desintegração da Igreja. Os fracos e os fortes na fé já foram reconciliados por Cristo.
b) A vida na Comunidade não é produto de postura humana, senão estaríamos relativizando o poder do Espírito Santo. A vivacidade da Igreja nasce a partir da obediência ao senhorio de Jesus Cristo; essa obediência fará nascer frutos do Espírito sem atropelos e correrias seja da direita ou esquerda, de conservadores ou progressistas, de comprometidos ou descomprometidos.
c) Nesta caminhada sob o senhorio de Cristo, a comunidade está ciente de que o objetivo maior, o reino de Deus, já foi inaugurado em Jesus Cristo. Deus mesmo, nem o ativismo social nem a piedade introvertida, garante o futuro. Dentro desta perspectiva vivemos a liberdade maravilhosa dos filhos de Deus que não sentem a necessidade de excluir ou oprimir o irmão.
V — Subsídios litúrgicos
1. Lema bíblico: Ora, tudo provém de Deus que nos reconciliou consigo mesmo, por meio de Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação. (2 Co 5.18).
2. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai! A tua palavra e o teu perdão nos fazem descobrir a própria culpa. A nossa tendência é conservar-te distante da nossa vida. Senhor, rogamos-te por novas forças, que nos animam a uma nova vida. Concede-nos o espírito de tolerância e de compreensão para com os outros, assim podemos amá-los como tu nos tens amado. Liberta-nos do medo; será, desta forma, que teremos coragem para colocar-nos ao lado daqueles que vivem à margem da vida. Afasta de nós toda a ansiedade e preocupação que nos fazem girar em torno de nós mesmos, é assim que teremos olhos abertos, capazes de enxergar o próximo, a fim de amá-lo como irmão. Perdoa-nos, Senhor, que a desesperança seja maior do que a esperança. Que a falta de amor seja maior do que nossa compreensão. Tem piedade de nós!
3. Oração de coleta: Senhor, através da tua palavra tu rompes os horizontes da vida. Começamos a enxergar-te e a considerar os outros com olhos diferentes. O teu Evangelho nos enche de esperança. Obrigado pela esperança. Sem ela a vida seria impossível. Tu abres para nós um novo futuro, quando nós estamos no fim, tu não estás no fim. Ajuda-nos, Senhor, em nossa falta de fé. Abre os nossos olhos para a tua presença em nosso mundo. Jesus Cristo é o maior sinal de que estás conosco agora, nesta hora de culto, e em todas as situações da nossa vida. Os nossos ouvidos estão abertos à tua palavra. Vem, Senhor, e fala a nós! Amém.
Oração final: Senhor, nosso Deus. Tu nos chamaste para sermos colaboradores da tua seara. Com o nosso auxílio queres construir a cidade da paz e da fraternidade. Se tu habitares em nossos corações e te tornares Senhor das nossas vidas, teremos condições de derrubar muros que nos separam dos irmãos! Dá-nos a paciência e a perseverança para lutarmos por tua causa. Falta-nos, por vezes, a coragem e ânimo. Sentimos quão presos estamos à falta de compreensão e de tolerância; isto pode acontecer na família, com os colegas de trabalho e também na Comunidade. Ó Senhor, concede-nos a Tua paz, para que possamos ser pacíficos. Lembramo-nos diante de Ti de que o nosso país necessita de paz e de justiça; afasta a ambição e o egoísmo, tão maléficos para o bem-estar de todos. Orienta os responsáveis deste mundo, indicando que os povos desta terra necessitam de mais alimentos, de mais saúde, paz e educação do que de armas. Semeia no coração dos homens a sede pela vida e não pela morte. Torna-nos com tua Igreja um instrumento da tolerância, da fé e da convivência fraterna. Em nome de Teu Filho, nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo.
VI — Bibliografia
– ALTHAUS, P. Der Brief an die Roemer. In: Das Neue Testament Deutsch, v. 6, Goettingen, 1966.
– BULTMANN, R. Theologle des Neuen Testaments, 4a. ed.,Tübingen, 1961.
– HAHN, H.O. Meditação sobre Rm 14,7-13. In: Deutsches Pfarrerblatt, Março de 1972.
– SURKAU, H.W. Meditação sobre Rm 14,7-13. In: Göttinger Predigt – Meditationen, v. 5, Göttingen, 1972.
– WEBER, O. Meditação sobre Rm 14,7-9. In: Göttinger Predigt – Meditationen, Göttingen, 1967.