Prédica: Êxodo 3.1-14
Autor: Milton Schwantes
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação:08/02/1987
Proclamar Libertação – Volume: XII
l – Considerações introdutórias
Na Bíblia, existem livros e textos gue têm o dom da síntese. Neles, o todo está presente de um modo bem especial. Ex 3-4 pertence aos textos com dom de síntese. Nele confluem diferentes tradições. Pode-se observar que seus primeiros versículos retomam o livro de Gênesis: A manifestação de Deus que se dá em meio à sarça ardente lembra Abraão que ia aos carvalhais de Mamre para prestar seu culto a Deus. O conteúdo de Êx 3-4 antecipa o que os demais livros de Moisés esmiuçam em detalhes. Portanto, nossos dois capítulos assemelham-se a um lago: para ele, confluem diferentes tradições e conteúdos.
Acrescente-se a isso mais outro dado: Êx 3-4 é parte daquela temática e daqueles textos que são centrais no Antigo Testamento. Ó êxodo é um dos eixos vitais da própria Escritura. No Antigo Testamento, constitui-se no evento fundante. É o próprio coração do conteúdo vétero-testamentário. Esta não só é a conclusão da teologia bíblica latino-americana, se bem que, por aqui, cultivemos, com especial esmero, a centralidade do evento libertador para a trajetória do povo de Deus. Esta também é a tese da teologia bíblica em outras partes (cf. G. von Rad!). Por-tanto, nosso texto de prédica localiza-se no coração do Antigo Testamento. Ao anunciar o evangelho de Jesus Cristo a partir de Êx 3, havemos de tomar em conta o papel especial deste nosso texto.
Aliás, neste contexto maior do Antigo Testamento, Êx 3-4 assume mais outra dimensão toda particular. Estes dois capítulos têm uma só temática: Deus. Respondem à pergunta: Quem é nosso Deus? Fazem-no a partir de diversos enfoques, como logo veremos. Não existem muitos textos na Escritura que dão tamanha atenção à sistematização do falar de Deus. Lógico, todas as páginas da Bíblia dizem respeito a Deus e dele testemunham. Mas, não são muitas as passagens que se põem a organizar e sistematizar o testemunho sobre Deus. Êx 3-4 é uma delas, ao meu ver uma das mais significativas.
A pregação a partir deste texto assume, pois, de saída, contornos especiais. Parte de uma perícope deveras densa, cujo interesse é teológico.
II – O texto
Nossa perícope somente prevê, para o sermão, alguns versículos dentre os caps. 3-4. Ao caracterizar agora o conteúdo desta nossa parcela de texto, devo estar atento também para suas vinculações com seu contexto literário.
1. Verifiquemos inicialmente algumas peculiaridades literárias de nossa perícope. Encontra-se naquele conjunto de capítulos que preparam a saída, a libertação. Os caps. 7-15 descrevem o evento da libertação, preparado pelas pragas e consumado no cântico de Moisés e Miriã, no cap. 15. Os caps. 1-6 delineiam a situação de opressão (caps. 1 +5), as tentativas e impasses para a libertação (caps. 2) e, em especial, a preparação do líder Moisés (caps. 2+3-4+6). Como se vê, há muito interesse em ressaltar a pessoa de Moisés. Contudo, os textos de jeito nenhum o isolam. Vêem-se no contexto da resistência das parteiras e mães (caps. 1 e 2). Apresentam-no como resposta ao clamor do povo (2.23-25).
Os caps. 3-4 tematizam a vocação de Moisés. Enfatizam dois aspectos: a superação das dúvidas de Moisés e o conteúdo da missão mosaica. Esta temá¬tica vocacional é retomada no cap. 6, onde, após os primeiros insucessos narrados no cap. 5, o comissionamento é reafirmado. Nossa perícope (3.1-14) encontra-se, pois, no contexto do que se poderia chamar de diálogo vocacional.
Internamente estes caps. 3-4 têm uma estrutura complexa, que aqui não poderá ser desdobrada. Ainda assim, não é difícil de perceber que no v. 15 inicia nova sub-unidade. Acontece que no v. 14 é levado ao ápice e encerrada a temática iniciada no v. 1. Além disso, no início do v. 15 aparece um ainda, o que evidencia estarmos no começo de nova sub-unidade. É, pois, justo que se conclua nossa perfcope no v. 14.
Nestes v. 1-4 percebo duas partes. Numa o assunto é a sarça. Na outra, o envio de Moisés para a libertação dos hebreus. O tema de sarça predomina nos v. 1-6. O da libertação nos v. 7-14.
Os v. 1-6 obedecem a uma sequência evidente. Moisés observa um fenômeno que, inicialmente, lhe é incompreensível. Os versículos narram como Moisés gradativamente passa a entender o que se passa: esconde o rosto (v. 6).
Os v. 7-14 diferem dos v. 1-6. Não se enquadram numa sequência narrativa como aqueles. Sua lógica é mais bem discursiva do que narrativa. Os v. 7-8 são repetidos nos v. 9-10. Nos dois conjuntos, Javé começa por afirmar haver visto e ouvido o clamor dos hebreus (v. 7 e v. 9) e conclui com o anúncio da libertação (v. 8 e v. 10). Os v. 11-14 constituem igualmente dois conjuntos, ambos iniciados por perguntas. No primeiro (v. 11-12), Moisés põe em dúvida sua capacidade para a tarefa. No segundo (v. 13-14), a pergunta tem o nome de Deus por conteúdo. A resposta (v. 14) perfaz o auge destes v. 1-14. Nele é constatado que Javé, aquele que verdadeiramente age na história, envia Moisés para libertar os hebreus oprimidos.
2. É difícil determinar a origem destes nossos versículos, o que, aliás, vale para o todo dos caps. 3-4. Os pesquisadores que adotam a teoria das fontes (cf. por exemplo M. Noth e W. H. Schmidt) costumam atribuir os v. 1-14 ao javista e ao eloísta. Tratar-se-ia de uma mescla de ambas as fontes. Na medida em que esta teoria, mais e mais, deixa de ser consenso na ciência vétero-testamentária (cf. R. Rendtorff) a definição da origem de nossos versículos ou, em geral, dos caps. 3-4, teria que ser buscada sem o pressuposto da existência do javista ou do eoísta.
Constato que nosso próprio texto fornece algumas valiosas indicações para a determinação de sua origem. Concentro-me em duas. Por um lado, este trecho representa a junção de diferentes tradições. Para ele confluem conteúdos oriundos das tradições dos patriarcas e do êxodo, da profecia e da criação. Preserva memória histórica e interpretação posterior. Uma passagem com tamanha multiplicidade de acentos e tradições não deve ser muito antiga. Foi forjada quando as diferentes tradições do povo de Deus se haviam amalgamado e interrelacionado. – Por outro lado, é patente que a vocação de Moisés é como a de um profeta. Não só a dúvida do vocacionado se encontra em Jr 1, como até mesmo a terminologia tem seu paralelo entre os profetas (observe o uso do verbo enviar e compare com Is 6.8). Inclusive é provável que Os 1.9 aluda à famosa fórmula aconteço como aquele que acontece (eu sou o que sou, em Almeida) de nosso v. 14.
Portanto, parece-me provável que a origem do atual texto dos caps. 3-4 esteja entre grupos proféticos. Há de se tratar dos círculos proféticos do 85 século, a época dos grandes profetas (Amos, Oséias, Isaías e Miquéias).
3. Nossos v. 1-14 tematizam a vocação de Moisés. Contudo, nesta vocação o interesse principal não recai sobre aquele que é vocacionado. Recai sobre o que vocaciona. Nossos versículos não nos apresentam Moisés. Explicam, isso sim, quem é Deus, aquele que vocaciona Moisés. O conteúdo de nossa perícope é, pois, primordialmente teológico.
São três seus acentos teológicos. Testemunham sobre Deus sob três distintos enfoques.
Primeiro: A manifestação de Javé está conectada a uma planta. Esta transforma-se num lugar sagrado, pois com a sarça ocorrem dois fenômenos extraordinários. Por um lado, queima sem se consumir. Por isto Moisés vai verificar o que está sucedendo. Por outro lado, Deus fala com Moisés desde dentro da sarça. É evidente que nosso texto está interessado nesta fala divina. Sua atenção primordial não é a sarça em chamas. Esta tão-somente é preparatória para aquela.
Tais epifanias divinas a partir de fenômenos da natureza também são mencionadas em outros textos bíblicos. Penso, por exemplo, em Gn 28.10ss e 32.22ss. Aliás, relatos semelhantes existem, até hoje, em outras religiões. Celebra-se aí que certos lugares ou fenômenos da natureza são transparentes e propícios para o divino. Nestes casos, busca-se entender Deus a partir do natural.
No Antigo Testamento, esta maneira de testemunhar de Deus não é rejeitada. A natureza e a criação estão correlacionadas com Deus; não estão ã parte de Javé. É o que lemos em Gn 1-2 ou em Dêutero-lsaías. Contudo, a criação de modo algum tem um sentido teológico suficiente. Ainda não diz o principal sobre Javé. Portanto, a cena da sarça diz algo importante, mas não diz tudo.
Segundo: Ao falar a partir da sarça, Deus se apresenta a Moisés como Deus do teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó. É muito evidente que através desta fórmula são retomadas as histórias de Gênesis. Nelas, nosso Deus nos vai sendo apresentado através da conexão a certas pessoas.
Em comparação à manifestação de Deus a partir de um fenômeno da natureza (no caso a sarça), sua correlação a pessoas representa uma valiosa novidade. Esta consiste em que se passa a compreender Deus à luz de sua relação com pessoas. A fé bíblica justamente é este testemunho da atuação de Deus na vida das pessoas e a partir delas.
A partir das histórias do livro de Gênesis, sabemos que o agir de Deus junto a Abraão, Isaque e Jacó tem duas marcas principais. Por um lado, Deus acompanha sua gente. Ele está onde estão os seus. Nosso Deus não está preso a um lugar geográfico. Por outro lado, ele sustenta a vida. Ele abençoa. Sua proximidade é salvífica. A vida obtém futuro.
Por mais valioso que seja este testemunho sobre o Deus pessoal, companheiro de jornada e mantenedor da vida, ele ainda não diz tudo. Ainda não diz o mais significativo sobre nosso Deus. Moisés ainda se esconde (v. 6) e fica sem saber o nome. Portanto, a referência ao Deus dos Pais diz algo importante, mas ainda não diz o decisivo.
Terceiro: O testemunho decisivo sobre nosso Deus está, em termos vétero-testamentários, nos v. 7-14. Aí está o que verdadeiramente importa. Seu nome é Javé (v. 14). Caracteriza-se por: ouvir e ver o clamor de seu povo, libertá-lo da escravidão, conduzi-lo para uma terra boa. Além de agir no âmbito da natureza (sarça ardente), no nível das pessoas (Deus dos Pais), nosso Deus atua no contexto da história, transformando opressão em libertação. Esta última é sua característica decisiva. Nela estão englobadas as duas anteriores, i.e., como Deus histórico e libertador, Javé é Deus pessoal e é criador.
Moisés é vocacionado para concretizar uma tarefa histórica. A presença de Javé é, pois, medida por uma pessoa. Em Êx 3-4, esta pessoa tem as marcas de um profeta. Aqui a profecia aparece como mediadora privilegiada do Javé libertador.
4. O testemunho, dado por Êx 3-4 sobre Deus, por certo-ainda não alcança a plenitude do testemunho neotestamentário. Em Cristo, há uma radicalização de nossa perícope. Em Jesus, nosso Deus não só transforma a dor em terra prometida, não só liberta da opressão, ele mesmo assume dor e opressão. Supera-as desde dentro. Antecipa, em definitivo, a derrota de dor e opressão. Nossa perícope ainda não alcança tamanha radicalidade. Para ela, a superação da opressão visivelmente só se dá no nível da promessa, na vida nova em terra nova. Ainda não chega a pensar numa vida nova nas terras do faraó, em meio à opressão. Neste ponto, por exemplo, se percebe que nossa perícope ainda não é neotestamentária. Necessita da crítica e da complementação em Cristo.
Contudo, não se pode deixar de ver a continuidade entre nossa perícope e o Novo Testamento. Isso vale de modo muito especial na medida em que nos tivermos habituado a restringir a ação salvífica em Cristo à pessoa, a seu coração e a suas dores individuais. Um texto como Êx 3-4 ajuda-nos a perceber a dimensão pública, popular e coletiva da ação salvífica. Este acento não está ausente no Novo Testamento, mas na história teológica dos últimos tempos tem sido bastante negligenciado. Proponho, pois, que não se vá contrapor, de modo simplista e inadequado, a libertação do indivíduo do Novo Testamento à libertação do povo de Êx 3-4, mas que vejamos em nossa perícope e sua teologia, tão preocupada com o social, um auxílio decisivo para o testemunho de Cristo nos dias atuais. Portanto, recomendo que o pregador insista junto a esta nossa passagem, evitando substi¬tuí-la por outros conteúdos bíblicos eventualmente mais correntes.
Ill – Indicações para a prédica
A prédica poderia ser desenvolvida nos seguintes três itens:
1. Início com a localização do texto, na situação dos hebreus escravizados no Egito e no contexto da perícope. Aí se deveria ressaltar a opressão faraônica e as tentativas de resistência das parteiras, das mães e do jovem Moisés. Contudo, todas estas iniciativas a nada levaram. Moisés acabara de fugir para terras distantes. Esta situação desesperadora de contínua opressão muda de perspectivas, quando Javé se lembrou de sua aliança (Êx 2.24). Começa o caminho 'da libertação. A vocação de Moisés está no início.
2. Acentuo, depois, a teologia de nossa perícope. Nela obtemos um testemunho sobre a característica de nosso Deus. Quem é nosso Deus? Este assunto – por certo, nada fácil! – proponho desenvolver a partir da temática da libertação, central em nossos versículos. Sem negar que Deus também se pode tornar transparente através de fenômenos da natureza. Sem negar que Deus também se empenha por cada pessoa, de modo direto e até individual. Sem negar estas ou outras dimensões, a prédica deveria concentrar-se na proposta teológica de Êx 3.1-14: a trajetória histórica da opressão à libertação constitui um dos espaços particularmente privilegiados por Deus!
3. Este sermão não poderá descuidar-se da concretização. Na segunda parte aparecerão conteúdos mais complexos e difíceis. Justamente por isso esta última parte deverá ser concreta. Esta concreticidade evidentemente precisará corresponder ao mundo da comunidade reunida. À luz de Êx 3-4 importa estar atento para a história do povo e de suas lutas específicas. Nossa perfcope nos convida a uma interpretação teológica das dores coletivas.
IV – Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Reina o Senhor. Regojize-se a terra, alegrem-se todas as ilhas. Alegrai-vos no Senhor, ó justos, e dai louvores ao seu santo nome.
2. Confissão de pecados: Senhor Deus, nosso juiz e amigo. Confesso diante de ti e de nossos irmãos que em meio a meu trabalho atuo como se tu não existisses. Olho para o mundo com meus olhos. Confio integralmente neles. Restrinjo tua ação, Senhor, à hora de culto, à igreja. Esqueci que és o criador. Não me lembro, em meu dia-a-dia, que a história está em tuas mãos. Tem piedade de mim e de nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus: damos-te graças por essa nossa reunião. Louvamos-te por podermos estar congregados. Reúne-nos, agora, em torno de tua palavra. Ajuda-nos a ouvi-la. Permite que ela germine e cresça em nossos corações e em nossa vida. Nós Te invocamos em nome de teu Filho, Jesus Cristo, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo, um só Deus, pelos séculos dos séculos. Amém.
4. Leituras bíblicas: Salmo 76 e Mateus 17.1-9.
5. Assuntos para a intercessão na oração final: pelas diversas formas de organização de pessoas dentro da própria comunidade; pelos grupos de estudo bíblico; pela organização das mulheres; pela organização dos jovens e das crianças; pelas associações de vizinhos e de moradores; pelos sindicatos no campo e na cidade; pela organização política e partidária; pelos movimentos populares; pelo dom divino para sermos capacitados a testemunhar que nosso Deus atua na história.
V – Bibliografia
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– CROATTO, J. S. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. In: Libertação e Teologia, v. 12. São Paulo, 1981.
– GERSTENBERGER, E. Deus Libertador, Teologia e Sociedade no Antigo Israel e Hoje. In: Deus no Antigo Testamento. São Paulo, 1981.
– PIXLEY, J. V. Êxodo, una Lectura Evangélica y Popular. México, 1983.
– NOTH, M. Das Zweite Buch Mose, Exodus. In: Das Alte Testament Deutsch. v. 5 Göttingen, 1968.
– RAD, G. von. El Problema Morfogenético del Hexateuco. In: Estúdios sobre el Antiguo Testamento. Salamanca, 1976.
– RENDTORFF, R. Das überlieferungsgeschichtliche Problem dês Pentateuch. In: Beiheft zur Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft. v. 147. Berlin, 1977.
-SCHMIDT, W. H. Exodus. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. v. 2. Neukirchen, 1974.