Prédica: Lucas 17.7-10
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: Domingo Septuagesimae
Data da Pregação: 15/02/1987
Proclamar Libertação – Volume: XII
I – À guisa de introdução
Uma das características do ser humano é a necessidade de ser reconhecido naquilo que é e naquilo que faz. As grandes festas na casa real inglesa, por exemplo, servem muito bem de ilustração, pois é através delas que se procura granjear o reconhecimento (e a admiração!) do próprio povo e do mundo todo. Do quanto isso pesa nos dão conta os meios de comunicação. Ficam neste contexto as festas dos ricaços, festas estrondosas com a presença dos meios de comunicação de massa, que servem para ostentar o que se tem e o que se faz porque se tem. Entretanto, este espírito de ostentação bem como a necessidade de ser reconhecido em seus méritos, marca também o esporte profissional e amador, marca até as relações mais simples entre pessoas. A ascendência, o estudo, qualquer coisa serve para mostrar o que a gente é.
Mais do que mostrar o que se é por ascendência, por posição social, por dinheiro ou fortuna que se tem, se gosta de mostrar o que se consegue. Dentro de um mundo de produção isso é muito importante. Os meios de comunicação se encarregam de trazer até nós e de levar a todos os cantos do planeta, por exemplo, os grandes recordes. E quem não gostaria de poder constar no livro dos recordes? Quem não sente a necessidade de ser reconhecido (e louvado!) pelo que fez, por menor que seja o feito? A gente se orgulha de ter conseguido um lugar ao sol na vida, de ter filhos mais ou menos bem educados, de exercer a profissão com responsabilidade, de realizar aquilo a que se propõe!
Esta característica está em todos os lugares e se manifesta em todos os lugares justamente por sua condição de característica humana. E dentro de um mundo marcado pela competição esta característica se aguça mais ainda. Ela pode ter efeitos colaterais funestos para os outros: Para valer mais, muitas vezes, é necessário fazer com que o outro valha menos; para que a própria imagem cresça é preciso que a imagem do outro seja denegrida e pisoteada. Campanhas políticas são o material mais ilustrativo (e por vezes mais trágico) de como isso acontece.
Este fenômeno não é apenas uma coisa mundana ou profana, coisa de descrentes, coisa dos outros. Ao menos não foi isso que Jesus estava sugerindo quando tematizou a questão com e para os seus discípulos mais achegados bem como para outros.
II – O texto
O trecho é matéria exclusiva de Lucas e o texto em sua forma e estrutura não oferece maiores dificuldades. Como costuma fazer, Jesus parte de urna realidade dada e a usa como material, como instrumento para a sua pregação. Não resta dúvida de que especialmente neste texto causa espécie o fato de Jesus não mexer na estrutura escravagista, uma estrutura sabidamente desumana. Na verdade Jesus muitas vezes parte da realidade ou de acontecimentos concretos sem emitir qualquer juízo sobre as mesmas naquele momento. É bom lembrar que ele usa até o ladrão que entra sorrateiramente na casa de alguém para roubar, e o usa como paradigma para o Reino de Deus (Lc 12.35-48). Seria errôneo concluir que Jesus acha que o ladrão está agindo legitimamente. Da mesma forma seria errôneo deduzir do nosso texto que Jesus sanciona a escravidão como tal. Por isso mesmo parece teologicamente incorreto o que Voigt (p. 124) faz, afirmando que, afinal, Jesus estava trazendo o Reino de Deus, um reino que não é deste mundo e que, por sua natureza, nada tem a ver com a situação do escravo e da escravidão, valendo-se de Jo 18.36. Aliás, também o título que a passagem recebe na Bíblia em Linguagem de Hoje é uma interpretação capciosa, quando diz: O dever do empregado. O quanto o Reino de Deus que não é deste mundo tem a ver com este mundo deve ser procurado e conferido em outras passagens do Novo Testamento e não cabe discutir neste momento e lugar. Jesus se vale de uma realidade para tornar a sua fala mais concreta – nada mais.
O escravo (que via de regra era estrangeiro) não passava de um objeto na mão de seu dono, o que, sem dúvida, vale para qualquer tipo de escravidão em qualquer lugar do mundo. O escravo era comprado no mercado e só tinha que fazer, sem discutir e sem pestanejar, aquilo que seu dono desejava. Isso fica muito claro na descrição de Jesus: Depois de o escravo trabalhar o dia inteiro na roça ou cuidando dos animais, o dono não lhe pergunta se está ou não cansado. Muito pelo contrário, ainda se esperava do escravo que ele zelasse especialmente pelo bem-estar de seu dono. Mais ainda: depois de feito tudo isso da melhor forma possível, o escravo não tinha o direito de sequer esperar por uma palavra de gratidão, pois ele estava fazendo apenas aquilo para que fora comprado pelo seu dono. Esta é a realidade que Jesus toma como exemplo, uma realidade que tanto ele como seus interlocutores conheciam muito bem.
Mas, quem são os seus interlocutores? O texto não é explícito. Há diversas possibilidades. Poder-se-ia tratar dos discípulos mais chegados apenas, poderiam ser os fariseus e os escribas, poderia ser uma multidão maior de pessoas. Sabe-se que os discípulos disputavam o lugar de destaque no reino de seu Senhor (Mc 10.36-44), que os fariseus, não raro, se consideravam melhores porque faziam um esforço muito grande para cumprir todas as leis (e leizinhas) estabelecidas pela religião (Lc 18.9-14; Mt 15.1-20 e outros) e que no mundo a disputa pelos lugares de destaque era natural (Mc 10.42; Lc 14.7-14). É muito provável que, om nosso texto, o objetivo primeiro de Jesus tenham sido os fariseus porque se orgulhavam e ufanavam pelo cumprimento rigoroso da lei. Isso entretanto não significa que os discípulos estejam excluídos ou até imunes à crítica de Jesus, afinal também eles faziam a pergunta utilitarista pelo ganho por terem deixado tudo para trás a fim de seguir a Jesus (Mt 19.27).
O conceito servo marcava uma relação de obediência incondicional om que este não tinha o que pedir ou reclamar. Deve ser lembrado, porém, quo Jesus tem ainda outro motivo para escolher justamente esta realidade a fim do ilustrar suas palavras. Ocorre que a designação servo podia ser usada também como uma designação da qual alguém se podia orgulhar, uma designação que quase correspondia a um título honorário. É Paulo quem, por exemplo, usa o termo para si mesmo em suas cartas, designando-se de servo de Cristo Jesus (Rm 1.1), ou junto com Timóteo de servos de Cristo Jesus (Fp 1.1) ou ainda de servo de Deus (Tt 1.1). Aliás, Paulo relaciona muito o crente com servo de Deus (Rm 6.22 e outros). E, quando se fala em servo de Deus, quem não se lembra logo dos Cânticos do Servo de Deus de Isaías? (Is 42.1-9; 49.1-6; 50.4-9; 52.13-53.12). Em outra parábola Jesus sabe elogiar o servo que é fiel (Mt 24.45-51). Mas, no rigor de uma definição do termo servo, nem ao menos há espaço para adjetivos, pois faz parte da essência do servo que ele sirva, tanto que a designação servo inútil é uma espécie de redundância (cf. Bauer, o verbete AXREIOS e também a Bíblia de Jerusalém na p. 1962, nota i). Ao que tudo indica é esse rigor da definição que se esconde por detrás do último versículo (v. 10) do nosso texto: Depois de ter feito tudo da melhor forma possível, o servo só pode confessar que é inútil, isto é, que nem ao menos serve ou se presta para fazer qualquer coisa que não seja servir como ele o está fazendo.
Vista sob este pano de fundo, a crítica de Jesus se torna mais radical: ele simplesmente tira toda e qualquer legitimidade da característica muito humana de lutar para conseguir reconhecimento pelo que fez ou faz. Dessa tendência não escapam os fariseus, por mais correios que eles de fato e efetivamente procurem ser, disso não escapam os discípulos. Em jogo está o valor próprio que cada um empresta a si mesmo a partir daquilo que faz ou deixa de fazer (afinal o fariseu apresentado em Lc 18.9-14, por assim dizer, tenta cobrar também aquilo que ele não faz).
Em relação a Deus não há ser humano, por mais crente e piedoso que ele seja, por mais obras que ele realize em nome de Deus, ainda que dedique toda a sua vida ao serviço de Deus, com direito a exigir ou cobrar qualquer coisa. Vida de fé é vida em serviço ou não é vida de fé. Aqui reside toda a profundidade e radicalidade da crítica de Jesus. O último versículo do texto sugere que o serviço é voluntário e sem expectativa por qualquer recompensa. A radicalidade desta afirmação pode ser expressa com outra palavra de Jesus, segundo a qual uma mão não deve saber o que a outra faz (Mt 6.3).
É neste contexto que talvez valha lembrar aquilo que é articulas stantis et cadentis ecclesiae (o artigo com o qual a igreja permanece ou cai) para as igrejas da Reforma, a saber, a justificação pela fé (cf. G. Münderlein, p. 138). O serviço para o qual o cristão é convocado e que ele presta não acontece com o objetivo de alcançar uma graça especial, um favor especial da parte de Deus, mas acontece porque Deus justifica, perdoa e ama a sua criatura já muito antes de ela dizer ou fazer qualquer coisa. Este traço aparece fortemente no Evangelho de Lucas, pois os fatos que aconteceram entre nós (Lc 1.1) não são outra coisa do que o imenso e extremo amor de Deus pela humanidade, amor este que se tornou visível e palpável como nunca em Jesus Cristo. Este amor de Deus sempre é anterior a qualquer ação e por isso o servir só pode ser serviço radical ou serviço nenhum.
Ill – Meditação
– Depois de uma festa da comunidade o pastor (ou o presbitério) esquece de agradecer a uma determinada pessoa que, sem tirar nem pôr, trabalhou mesmo. Foi um lapso, mas aconteceu. Segue-se um escândalo, pessoas se ofendem solidariamente com a esquecida, ameaçam até sair da comunidade. Acontecem as desculpas, a dedicação da referida pessoa é destacada no culto seguinte e tudo volta ao normal.
– Em muitas comunidades nossas (e das igrejas irmãs também) existem inscrições e até placas dando conta quem são os doadores de janelas de igrejas, bancos de igreja, poltronas de salões de comunidade. Aliás, colocar inscrições ou placas é um expediente usado para convencer os doadores a doar!
– No lançamento da pedra fundamental de uma igreja o presbitério resolveu publicar a relação dos doadores bem como a relação das doações. Um membro aparece furioso: Se eu soubesse que isso aconteceria eu teria doado um boi em lugar de alguns cruzeiros.
– Pastores muitas vezes se lamentam do trabalho que têm. O que mais pesa, porém, é que o trabalho não traz (supostamente!) mais segurança e mais reconhecimento, quer por parte de comunidade, quer por parte da direção da igreja. De repente se ouve falar em direitos adquiridos pelos quais é necessário lutar e da garantia de certos privilégios.
– Professores evangélicos se reúnem e discutem o seu papel. No meio do diálogo se faz ouvir com muita clareza uma frase: Chega de dizer que o magistério cristão é um sacerdócio. Queremos o merecido reconhecimento traduzido em valores pecuniários.
São apenas alguns exemplos que procuram ilustrar o nosso texto. Não restam dúvidas de que não é difícil encontrar outros tantos exemplos de pessoas abnegadas cujos nomes jamais aparecem. Os exemplos tentam retratar o ser humano como ele é: no fundo um caçador de prémios, honrarias, reconhecimentos, lucros. Disso não escapam cristãos nem de direita e nem de esquerda, pois enquanto uns não perdem oportunidade de louvar a sua própria fé inabalável, os outros fazem o possível de dizer de suas obras e atividades em favor dos marginalizados. Nem a fé está errada e nem está errado o empenho em favor dos menos favorecidos, em favor de um mundo mais humano e mais justo. Errado tudo fica no momento em que se procura tirar proveito próprio diante de Deus e, provavelmente, na comunidade em que se está. Isso somos nós e temos que nos expor à crítica cáustica de Jesus: Qualquer ação a partir da fé, como servo de Deus, tem como objetivo a pessoa ou causa beneficiada e não a si mesmo.
Lutero em seu leito de morte ainda balbuciou: Somos mendigos, isso é verdade. Certamente mendigos convocados para o serviço no Reino de Deus e em seu favor, mas sempre mendigos que dependem totalmente do amor do próprio Deus, mendigos que são colocados no serviço em favor dos mais fracos não apenas da comunidade cristã, mas da comunidade civil da mesma forma.
Jesus certamente não está propondo que não mais se agradeça ou se reconheça a quem faz alguma coisa. Ele também não está propondo quo o serviço cristão, quando de tempo integral (ou quase integral), não traga os seus frutos para o sustento da própria vida (neste contexto seria bom ler a discussão do Paulo em 1 Co 9). A crítica de Jesus tem na mira tudo aquilo que vai além do sustento e que serve para bajular, para se engrandecer e sobretudo, a tendência de apresentar a Deus as contas do que se fez (ou deixou de fazer). Tudo o que faço, já o faço porque sou de Deus, porque sou seu servo. Tudo o que eu fizer tendo em mente conquistar alguma coisa para mim, vai usar o outro como meio, como objeto. A proposta de Jesus é que todo o empenho para levantar sinais do Reino de Deus, todo o empenho por uma vida de fé, sejam espontâneos e desinteressados. Como isso acontece podemos descobrir no próprio Jesus mas também em muitos daqueles que, no decorrer da história, foram servos úteis.
IV – Sugestões para a prédica
A leitura do texto poderia acontecer depois de uma introdução na qual poderiam ser mostradas algumas cenas comuns em que as pessoas correm atrás de recompensas e de prémios. Deve-se lembrar que isso vale também para os cristãos, tanto para os mais como para os menos convertidos.
O texto, por si só, já coloca o leitor (o ouvinte) com os pés no chão. É aconselhável explicar que Jesus, usando a escravidão como modelo para a sua parábola, não está sancionando a escravidão como tal. Não se trata de ir em defesa de Jesus (ele certamente dispensa esse tipo de coisa!) mas de evitar que pessoas sejam levadas a pensar com mais intensidade e convicção ainda que é vontade de Deus que uns tenham muito e outros pouco ou nada, que uns estejam por cima e outros estejam por baixo e que isso tudo é assim porque Deus assim o quer e assim o estabeleceu.
O texto, criticando a postura das pessoas que, no passado tentaram relacionar sua boas obras diante de Deus, está criticando uma postura idêntica que assumimos ainda hoje. Mas é bom lembrar que o texto não fica somente na crítica, mas ele é, simultaneamente, um desafio. Neste particular é muito sugestivo o título que a Bíblia de Jerusalém apresenta para o trecho: Servir com humildade. Servir com humildade é a proposta e é o desafio que Jesus coloca. Este servir com humildade nada tem a ver com a afirmação romântica segundo a qual o serviço a Deus acontece sempre com um sorriso sincero nos lábios. Os textos de Isaías que o digam; Jeremias em sua oração desesperada (Jr 20.7ss) o ilustra e melhor ainda o ilustra Jesus orando no Getsêmani (Mt 26.36-46) e seu grito de desespero na cruz (Mt 27.46). Dietrich Bonhoeffer em uma carta ao seu cunhado coloca a questão nas seguintes palavras: Se é Deus que determina o lugar em que devo ser encontrado, será então um lugar que não me agradará: é a Cruz (apud Loew, p. 140). Note-se que ele disse estas palavras em 1932, portanto bem antes do seu calvário pelas prisões do nazismo.
O pregador deverá encontrar propostas e exemplos concretos de servir. Este lugar pode ser a comunidade cristã como tal, mas não deveria ser somente ela. Servir com fidelidade é atirar-se no mundo e estar com aqueles que por si só vão perder a vida que Deus lhes deu, vão perdê-la porque toda uma situação e toda uma realidade não permitem outra coisa.
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Confessamos, Senhor, que muitas vezes queremos conseguir o teu amor e a tua consideração através das pequenas e poucas coisas que fazemos. Esquecemos que tu nos convocas a servir sem pedir recompensa por isso, mas simplesmente porque tu já nos ama muito antes de fazermos qualquer coisa. Mas somos egoístas até quando te servimos ou quando dizemos que te servimos. Pedimos, Senhor e Deus, perdoa o nosso pecado e dispõem-nos a servir com alegria. Tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Queremos ouvir, Senhor, o teu chamado ao serviço. Queremos lembrar todos aqueles que servem com alegria e, muitas vezes, com sofrimento. Queremos pedir que tu insistas continuamente a fim de que os cristãos todos entendam que o servir é fruto de gratidão. Ajuda-nos a servir com desprendimento e coragem, pois somente desta forma o teu Evangelho será pregado e entendido pelo mundo. Por Jesus Cristo que, contigo e com o Espírito Santo, vive e reina eternamente. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Agradecer pela palavra que tira da sonolência cristã e do acomodamento sobre os supostos méritos. Pedir que Deus arranque a cristandade da postura de se sentir bem dentro de si mesma e consigo mesma. Pedir que Deus coloque sua cristandade a caminho do servir desprendido. Interceder por todos aqueles que, muitas vezes de forma anónima, servem sem esperar qualquer recompensa ou reconhecimento. Pedir que Deus nos dê bons exemplos de serviço que procura preservar e melhorar a vida que ele deu. Interceder por todos aqueles que estão decepcionados com o serviço dos cristãos e interceder da mesma forma por todos aqueles que têm dificuldades em servir. Pedir que Deus abençoe todo o serviço que acontece para o seu louvor e o bem-estar das pessoas.
VI – Bibliografia
– BAUER, W. Wörterbuch zum Neuen Testament. 5. ed. Berlin, 1958.
– CARREZ, M. Artigo: Escravo. In: v. ALLMEN, J. J. (ed). Vocabulário Bíblico. São Paulo, 1963, p. 97-98.
– LOEW, J. Vocês serão meus discípulos. 2. ed. São Paulo, 1981.
– MESTERS, C. A missão do povo que sofre. Petrópolis, 1981.
– MÜNDERLEIN, G. Meditação sobre Lc 17.7-10. In: Breit, H. et Goppelt, L. (ed). Calwer Predigthilfen. v. 7. Stuttgart, 1968, p. 132-139.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lc 17.7-10. In:___. Die geliebte Welt. Göttingen, 1979, p. 123-129.