Prédica: Mateus 10.26b-33
Autor: Martin N. Dreher
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/1987
Proclamar Libertação – Volume: XII
l – Sugestão de Tradução
(Não temais, portanto, a eles)
v. 26b: Nada está encoberto que não venha a ser descoberto, e nada oculto que não venha a ser revelado.
v. 27 : O que vos digo na escuridão, dizei-o na luz!
E o que ouvis (dito) no ouvido, proclamai-o sobre os telhados.
v. 28 : E não temais os que matam o corpo, mas não conseguem matar a alma.
Temei, muito mais, aquele que pode destruir alma e corpo na geena.
v. 29 : Não se vendem dois pardais por um asse?
E nenhum deles cai sobre a terra sem vosso Pai.
v. 30 : Por outro lado, também os cabelos de vossa cabeça foram todos eles contados.
v. 31 : Não temais, portanto. Valeis mais do que muitos pardais.
v. 32 : Todo o que me confessar diante dos homens, também eu confessarei diante de meu Pai, que está nos céus.
v. 33 : Todo o que, porém, me negar diante dos homens, também será negado por mim diante de meu Pai, que está nos céus.
II – O texto e seu contexto
Nosso texto faz parte de um contexto maior do Evangelho de Mateus (Mt 9.35 – 11.1), no qual se fala da incorporação dos discípulos na atuação de Jesus (Grundmann). 9.35-38 nos dizem dos motivos dessa incorporação: A colheita é grande, mas poucos os operários. No entanto, logo a seguir, após dar poderes aos discípulos (10.1-4) e de fornecer-lhes instruções (10.5-16), Jesus torna claro aos discípulos que serão ameaçados por seres humanos (10.17-25): sereis entregues, sereis flagelados (17), conduzidos à presença de governadores (18); sereis odiados (22), sereis perseguidos (23). Agora, em nosso texto, surgem palavras de consolo e de promessa.
Ill – O texto
Com exceção de 26a, todo o nosso texto é paralelo ao de Lucas. 26a é composição de Mateus, com a qual ele prepara a passagem de uma perícope para a outra. Os demais comentários ocupam-se com as diferenças entre os dois textos. Nós não precisamos fazer isso.
Com sua introdução em 26a, Mateus cria uma tripla admoestação ante o temor (26.28.31). A esta tripla admoestação são acrescentadas as palavras a respeito da confissão a Jesus.
V. 26: A admoestação ante o temor prepara a continuação do discurso de Jesus e refere-se às pessoas das quais falara no v. 17. Base para a admoestação é a palavra de que tudo o que está encoberto virá a ser descoberto. No contexto específico do Evangelho de Mateus, a palavra pode significar: seja qual for a perseguição a que vierem a ser submetidos os enviados de Jesus, a mensagem a eles dada não permanecerá encoberta, oculta.
V. 27: Os enviados têm a missão de proclamar nos telhados o que lhes foi dito em silêncio, no ouvido. A proclamação é a obra dos discípulos, melhor: a obra de Deus através dos discípulos.
V. 28: Como consequência da missão, da incumbência que receberam, aumenta o perigo para os discípulos. Tanto mais veemente é, por isso, a admoestação ante o temor. Deve-se temer mais aquele que pode destruir alma e corpo no inferno do que os homens. O texto não é claro quanto a quem seria o que pode destruir alma e corpo no inferno. Pode ser o diabo, mas também pode ser Deus (Cf Tg 4.12(1), Mt 7.23; 18.34; 22.13(1); 24.51; 25.41-46). Neste caso todo o temor cabe a Deus e nos encontramos ante o 1o mandamento. Este mandamento nos fala do temor que é a confiança total em Deus, como nos mostra o v. 29. Mateus, aliás, não dá poderes descomunais ao diabo. A palavra alma não deveria ser entendida em seu sentido platónico, mas como vida.
V. 29: O temor a Deus é, no mais profundo sentido da palavra, confiança. Temendo a Deus, o ser humano busca refúgio nele. Isso se evidencia nas imagens usadas por Jesus. O pardal é o pássaro mais comum do Oriente e, por isso, também o mais barato. Compram-se muitos deles por pouco dinheiro. É, mesmo assim, cada um deles é um pardal amado por Deus (Deissmann, 197-198). Nada acontece ao pardal sem o consentimento de Deus, do Pai do enviado.
V. 30: Nada, nem mesmo aquilo que o ser humano não consegue contar, permanece oculto aos olhos de Deus. Aquele que se preocupa com pardais, preocupa-se com os seres humanos (Cf. o Salmo 139!).
V. 31: Por isso, os mensageiros não tem qualquer motivo para temer. Filhos que são, valem mais que pardais. Se um pardal não perece sem o conhecimento de Deus, quanto maior não será o cuidado do Pai pelos filhos?!
V. 32-33: A confiança em Deus leva à confissão a Jesus. Por quê? Porque ele liga os seus a Deus como seu Pai, transformando-os em seus mensagei¬ros e suas testemunhas. Jesus que antes designa a Deus de vosso Pai, fala dele agora como sendo meu Pai. Com isso, o confessar a Jesus passa a ser confessá-lo como filho do Pai, através do qual os discípulos se tornam filhos. Ele, o confessado, confessa serem os confessantes seus irmãos, porque eles o confessam diante dos homens. Aqueles que o negam não são seus, pois ele não advoga a causa deles diante do Pai (Cf Rm 8.34!).
Os discípulos são chamados a não temer. A igreja de Mateus conhece situações de temor. No entanto, ela sabe que o temor ante às pressões de fora se reduz, quando centramos nossos temores naquilo que vale a pena ser temido: o próprio Deus. Na única pergunta realmente digna de ser perguntada: Como é que Deus se posiciona em relação a nós? – nessa pergunta se respondem as perguntas relativas a nossa vida e a nosso bem-estar. Nossa confissão a Cristo tem por base a promessa de que, como nosso advogado, ele se coloca a nosso lado. Por isso podemos dizer na luz e proclamar sobre os telhados o evangelho do Reino, de que Deus nos aceita misericordiosamente, em Cristo.
IV – Para meditar
1. Não temer! A ordem para que não temamos é consolo e fortalecimento. E palavra dirigida à comunidade de discípulos, à comunidade que está a caminho, anunciando o Evangelho do Reino, da salvação e da paz, da bem-aventurança para toda.a humanidade e para toda a criação.
Anunciai, dizei, proclamai!! Aqui temos o tema da Reforma luterana: a palavra e seu ensino. Tudo o que fiz e que ensinei também o faze e ensina, diz Cristo em um dos hinos de Lutero (HPD 155.10). O hino nos lembra que o pregar da palavra não se limita ao ensino oral, mas engloba o fazer, o viver a esperança do Reino.
Os discípulos pregam por incumbência de Cristo. A palavra não é deles, ela parte de Jesus e deve atingir seres humanos, por isso tem que ser pregada sobre os telhados (v. 27). Sobretudo, porém, é a palavra que vos digo (v. 27)! O que a Igreja ensina procede de Cristo. Não há outra palavra que ela deva ouvir; nem a palavra do mundo, nem a palavra do coração, mas a palavra de Cristo, pois nele o próprio Deus se revelou. Cristo é o ponto da história, no qual a fé recebe aquilo do que ela vive. É em Cristo que a fé recebe a palavra que é proferida hoje. Por isso, toda a pregação deve ter sua origem em Cristo, encarnado.
A palavra é a palavra do próprio Cristo. A palavra pregada não é apenas palavra de Cristo no sentido de que transmitamos o que ele disse. Ela é palavra, porque ele fala através de nós. Na pregação e através dela. Deus fala a nós através de sua santa palavra. Nós respondemos com oração e canto de louvor. Como palavra do próprio Cristo, esta palavra vai além de nossas próprias paredes. Ela é proferida sobre os telhados. A casa palestina tinha telhado plano, cercado por muro baixo. O que era anunciado sobre este telhado ia para além das quatro paredes. A Igreja está chamada a subir ao telhado, a pregar para que o próprio Cristo seja ouvido, mesmo que isso possa parecer perigoso, por causa da sua situação minoritária.
2. Vivemos sob sua proteção. Nenhum discípulo se põe a caminho sem que os olhos de Deus triúno o acompanhem. É impressionante como a confiança e o temor a Deus estão entrelaçados nesse texto. O temor dos homens é vencido pelo temor de Deus. Talvez o Dia da Reforma nos convide a exemplificar isso em Lutero. Cuidado, porém! Que não se transforme Lutero em herói. Lutero era bas-tante tímido, medroso até. Quando encontramos destemer nele, este destemer tem sua origem na descoberta de Lutero: temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas, levar Deus a sério. A timidez e o medo, relativamente à segurança de sua vida exterior, eram suplantados pela pergunta por sua situação diante de Deus, o qual, segundo o v. 28, pode salvar, mas também deixar-nos perecer no inferno. Lutero temia a Deus. Terá ele esquecido que era cristão? Não. Interessante é a observação de Schniewind de que é um erro julgar-se que o discurso sobre o temor de Deus seja algo não cristão. Também ele aponta para Lutero e demonstra que a mensagem do Novo Testamento somente fala de nossa filiação e de nosso direito a essa filiação sob o pano de fundo do temor de Deus, sempre de novo testemunhado no Novo Testamento, (cf. Schniewind, p. 132s). Fé evangélica não denuncia o discurso sobre a ira de Deus como alarme falso, mas afirma que podemos refugiar-nos nos braços do Deus misericordioso (cf. Lm 3.22-26, 31-32).
Os olhos de Deus nos seguem. Ele nos acompanha, nos questiona, nos carrega. Vivemos seguros, seguros demais, porque os olhos de Deus não nos são visíveis e porque não estamos conscientes de tudo o que ele vê em nós. Ali, po¬rém, onde eu despertar e vir minha condição humana, minha situação diante de Deus será altamente inquietante:
Das profundezas clamo a ti:
Senhor, meu Deus, ó escuta!
O vê a culpa em que caí,
meu fraquejar na luta!
Pois, se julgares, meu Senhor,
os atos do homem pecador,
quem ante ti subiste? (HPD 147.1)
ou:
Fui prisioneiro de Satã,
a noite me envolvia.
A minha vida, triste e vã,
nas trevas se esvaía.
Abismo horrível me tragou,
o mal de mim se apoderou;
perdi-me no pecado.
As obras nunca poderão
livrar-me do pecado
O livre arbítrio tenta em vão
guiar o condenado.
Horrível medo me assaltou
ao desespero me levou,
lançando-me ao inferno. (HPD 155.2-3)
Então, os pesos mudam. Surge outra pergunta, mais importante: como posso subsistir diante de Deus? Vou estar inseguro, mas obterei uma nova certe¬za. Vou viver da e na dependência dele. Não viverei mais na dependência do imperador, que pode matar o corpo. Se ele tomar o corpo, mesmo assim não poderá tomar a vida, pois está centrada na graça de Deus, que recria o que o imperador mata.
O verbo eterno vencerá
as hostes da maldade.
As armas, o Senhor nos dá:
Espírito, Verdade.
Se a morte eu sofrer
se os bens eu perder:
que tudo se vá!
Jesus conosco está.
Seu Reino é nossa herança. (HPD 97.4).
Estas palavras sempre deveríamos cantar envergonhados de nossa descrença e covardia. O mesmo vale do hino 160.1! O Deus está comigo é oferta, não é compromisso imposto a nós: Valeis mais do que muitos pardais. Onde eu sou um dos pardais, o pecador diante de Deus, posso entender toda a profundidade dessa palavra. Aí sou o justificado, guiado pelo Pai: Visto que foste precioso aos meus olhos, digno de honra, e eu te amei (…) (Is 43.4). Pode ser que um pardal caia na terra, mas ele não cai sem a vontade de Deus. E, essa vontade de Deus significa vida para nós.
3. Vivemos da intercessão de Jesus. Ele é o nosso confessor. Os discípulos são enviados ao mundo para confessar seu Senhor, i.é, seus contemporâneos devem notar que eles, os discípulos, são pertencentes a Jesus. Seu compromisso é o de que ninguém tenha dúvidas quanto a isso. Silenciar seria trair, negar. Jesus quer discípulos que representem a causa de seu mestre e que a tornem compreensível para outros. Seu posicionamento frente aos discípulos vai depender do fato de nós nos colocarmos a seu lado ou não. O que nega não quer conhecer a Jesus; assim, Jesus também não o conhecerá no juízo. Será que Jesus quer apenas assustar? Não recebemos a salvação comendo bergamotas ou laranjas, mas na decisão consciente da fé. Não precisamos trazer nada, mas a salvação temos no seu nome e este deve ser confessado em fé.
Diante do Pai, Jesus vai confessar os seus. Esta é a promessa. Ele, o juiz, é ao mesmo tempo advogado. A cena é impressionante: no auge do julgamento, no tribunal, o juiz deixa seu lugar, vai ao lugar onde está o acusado, e afirma: Ele é meu amigo. Essa ação não depende de nós termos feito algo de especial por ele, ela depende do propter Christum, do por causa de Cristo, de ele ser o nosso intercessor, de ele estar a nosso lado. Como haveríamos de temer?
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, neste dia lembramos a reforma de tua Igreja. Ouvimos a pregação de teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, de maneira renovada: O tempo está cumprido e o Reino de Deus se aproximou. Fazei penitência e crede no Evangelho! Ao comemorarmos, permite que, de maneira especial, reencontremos o caminho para essa penitência, para que reconheçamos e confessemos o que temos errado e deixado de fazer, o que ficamos devendo à tua obra de unidade. Dá que tenhamos olhos abertos para o futuro e aceita nossa confissão penitencial, para que nos tornemos mensageiros de teu Evangelho. Perdoa-nos nossa culpa! Amém.
2. Oração de coleta: Senhor, eterno e santo Deus, nós te suplicamos: Preserva tua Igreja de doutrina falsa. Permite que ela viva apenas de tua graça. Dá-lhe o teu Verbo. Ouve-nos por Jesus Cristo, que contigo e o Espírito Santo nos ensina a Verdade. Todo poderoso Deus, tu és princípio e fim dos tempos, de eternidade a eternidade. Amém.
3. Oração final: Pai e Senhor, teu mundo tem muitas feridas e dores. Tu no-lo deste intacto e íntegro; nós seres humanos não entendemos a incumbência que nos deste, e agora experimentamos as consequências das guerras, os temores e solidão, os erros e desesperos. O mundo tem muitas feridas e dores, e em toda a parte seres humanos esperam por esperança, pão e amor, aqui em nosso país e, lá fora, em outros países. Permite que tua Igreja se transforme em mensageiro de auxílio: junto às crianças excepcionais, junto às vítimas da sociedade industrial, junto aos solitários, idosos e doentes, junto aos que não podem ter paz e que estão em perigo, junto aos famintos e ansiosos. Permite que também em nossa comunidade surjam novas forças e ideias, para que participemos, nos oferecendo para encontrar caminhos diacônicos. Senhor, pedimos-te: concede-nos teu Espírito Santo, por Jesus Cristo, teu Filho, a quem queremos seguir. Amém.
VI – Bibliografia
– DEISSMANN, A. Licht vom Osten. Das Neue Testament und die neuentdeckten Texte der hellenistisch-römischen Welt. Tübingen 1908.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Matthäus. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. v. 1. 3. ed. Berlin 1972.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Matthäus. In: Das Neue Testament Deutsch. v. 1. Göttingen 1968.
– VOIGT, G. Meditação sobre Mateus 10.26b-33. In: Die geliebte Welt. Göttingen, 1980.